Renata Mendonça
Membro da EBP e da AMP – Seção Minas Gerais
As questões raciais são uma questão no Brasil, uma luta desde o seu nascimento. O Brasil viveu a escravização dos negros, a fuga dos escravos para os Quilombos, as lutas constantes dos negros por uma equidade entre negros e brancos. Uma vida mais justa em que o fenótipo do corpo negro não seja definidor de lugares, salários e violência do Estado. Uma luta que mata os corpos e os sujeitos. Essa busca e luta constante, que ocorre desde sempre, teve avanços, mas, ainda está muito aquém do necessário.
Há 10 anos tivemos uma intervenção do Estado, fundamental na mudança desta história, uma lei que intervém na relação entre negros e brancos, essa intervenção foi a lei de cotas raciais nas universidades. Uma ação afirmativa que foi criticada e comemorada. Todo esse percurso e questões ligadas às ações afirmativas, ao Letramento Racial e ao conceito de Racismo Estrutural até pouco tempo, com poucas exceções, não entravam nos consultórios psicanalíticos. Sempre estiveram fora, também, desta teoria.
Sobre a história da psicanálise, vimos um interesse pelas questões da psicose e da luta antimanicomial, um interesse e trabalho nas questões da adolescência e, principalmente, sobre os adolescentes infratores… Mas as questões sobre a raça não foi um tema que vimos a trabalho na psicanálise, nem quando falávamos do adolescente infrator… quem eram esses adolescentes, se eram negros ou brancos não foi uma questão proposta de imediato. A raça não era um debate proposto.
Na atualidade a questão da raça se tornou um ponto importante de discussão. Quem morre nesse país? Quem estuda, quem ganha os melhores salários, quem pode usar turbante, ou rastafári… passou a ser uma pergunta constante de negros e brancos. A solidão da mulher negra e etc… Mas na psicanálise um dos pontos que fizeram os psicanalistas se perguntarem sobre a questão da raça foi algo que surge em nossos consultórios: pessoas negras pedindo analistas negros, ás vezes com maiores detalhes: “queria uma mulher negra”. “Uma mulher negra que fique atenta à questões raciais”. Não é uma demanda qualquer… Muitas vezes vindo com a seguinte queixa “não me senti escutada”, “achava que era paranoia”, “banalizou”.
Temos aqui duas questões: Como receber essa demanda como um analista negro? Como não banalizar sendo um analista branco?
Em um primeiro momento, a única coisa a ser feita, é acolher a demanda, mas, avisado que essa demanda não será de fato respondida, pois, é necessário ler como uma verdade/inverdade. Tal qual quando pedem analistas homens, mulheres, mais velhos, podemos e devemos receber os analisantes que querem psicanalistas negros. Não será possível, sem cálculo, fazer o que Lacan fez: indicar um analista egípcio para um judeu. Penso que a prudência pode ter aí um bom lugar. Como não indicaríamos um bolsonarista para alguém que tem em sua parede uma placa de Marielle. Fazer isso seria, provavelmente, colocar o analisante para fora do consultório.
Essa demanda, feita pelo analisante pode ser escuta de forma apressada como um pedido de compreensão, em que o psicanalista negro entra, nesse caso, como aquele que vai compreender melhor os problemas trazidos por aquele que quer fazer sua experiência analítica. No Imaginário do analisante, o analista, vai compreender o que se passa com ele, vai entender suas dificuldades, vai se identificar.
Podemos afirmar que não. Como nos lembra Miller no seu texto: Gays em análise. Ele pergunta se seria importante um analista gay para um analisante gay, uma mulher para atender outra mulher. Ele afirma que não, pois, o desejo do analista, sua prática e ética, não passa pela compreensão e nem pela identificação. Compreender um paciente não é o que orienta a psicanálise.
Essa é uma posição ética importante da psicanálise, mas, nesse momento, para estarmos mais próximos da subjetividade de nossa época, o que poderíamos acrescentar, verificar e nos perguntar para além da resposta dada por Miller? O que pode significar uma clínica que na atualidade passa por estas questões?
Primeiro: A raça
A raça mito criado pelo colonizador branco europeu “não existe enquanto fato natural físico, antropológico ou genético. A raça não passa de uma ficção útil, uma construção fantasmática” (MBEMBE). Assim como “as raças constituem um mito, criado por diversas manifestações de discursos dominantes” (SANTIAGO). Portanto, é possível afirmar que essa invenção mantém muitas pessoas subjugadas, mantidas à margem dos acessos de um modelo de civilização e de universalidade. Não gozam da mesma forma e não se estruturam com os mesmos significantes estabelecidos como belo e bom.
Na atualidade essas questões sobre a raça passaram a ocupar um lugar nas cidades, como questionamento e luta. Nossa hipótese é que a partir do declínio do Outro, em que os paradigmas do que é humano e civilizado foram se diluindo, o Outro do colonizador que nunca se pensou branco, mas, humano universal, se viu questionado. Esse modo de gozo que nasceu sob a égide da violência, segregação e desigualdade, precisa passar por uma releitura, ser revisto.
Podemos dizer que conceitos como o de racismo estrutural, letramento racial e interseccionalidade, precisam serem lidos e consideradas pelos psicanalistas de nossa época, pois, “que antes renuncie a isso, portanto, quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época. Pois, como poderia fazer de seu ser o eixo de tantas vidas quem nada soubesse da dialética que o compromete com essas vidas num movimento simbólico?” (LACAN). Ler o que é novo na cidade e se perguntar o que isso quer dizer no caso a caso da experiência analítica seria uma condição para psicanalistas negros e brancos.
Ler o que vem acontecendo na cidade e como o Simbólico e o Imaginário se fazem presentes e sustentando uma clínica que se orienta pelo Real, implica não estar desavisado do corpo do mestre que ao ser diluído, questionado, pode responder com o fascismo e a violência. Assim, não permanecer desavisado da própria fantasia quando se possui um corpo branco, o corpo do mestre, é igualmente não estar desavisados das armadilhas da identificação do corpo negro, que só estaria do lado do analisante, não do lado do analista.
O Inconsciente
Na clínica vemos que é necessário dar um espaço e um tempo a mais para que a palavra mostre que o inconsciente não ficou alheio aos significantes do mundo de hoje. Um mundo marcado pelos significantes e relações sociais do Racismo Estrutural.
O que seria possível?
Talvez, na atualidade, o analista precise ainda mais se apoiar na tripartição definida por Lacan para chegarmos ao que interessa à psicanálise: lermos o caso no universal, no particular, até chegarmos ao singular que cabe a cada sujeito negro ou branco. Incluindo as questões da raça e de quais corpos estamos falando, pois, “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, a lalangue e todos os significantes que podem marcar cada sujeito e seu modo de estar no mundo, ser um entre os homens e se apropriar de sua humanidade. Esses significantes carregados de afeto marcam os sujeitos e seus corpos, sabendo que o inconsciente não está exilado de sua época, fora do racismo existente, que pode ser opressor para uns e garantir lugares para outros.
Fragmentos
Um analisante falando de suas dificuldades na relação com o outro, diz à analista negra: “não entro em algum lugar que tenha entrado um negro”. Outro diz, não sem angústia, que um amigo que estava atrasado sai correndo e é parado pela polícia, o que o faz perder o exame. E acrescenta: “isso não aconteceria comigo” passando a relatar a negritude presente em sua família, uma cor negada e rechaçada por eles. Em uma conversação um rapaz conta que tinha um amigo que acordava à cinco horas da manhã para pranchar o cabelo: “quando crescer farei um implante de cabelo liso”. Cada um destes fragmentos nos conta do efeito do racismo e do racismo estrutural que atingem os corpos.
Podemos afirmas que o inconsciente não estava ileso, separado e protegido das questões raciais, mas é necessário que alguém, no caso um psicanalista, se interesse e queira escutá-las, dando lugar para essas questões. Isso para que possamos lê-las e sustentá-las em nossa época, a partir da ética e da política que interessa à psicanálise.