Marcelo Veras
Comecemos pela anedota contada por Freud no livro dos chistes. Um encontro. Dois judeus se encontram em um trem. Eles se conhecem e um pergunta para o outro:
Para onde você vai?
Resposta: Vou para Lemberg
Ao que o outro retruca: Porque você me diz que vai para Lemberg para que eu pense que você vai para Cracóvia quando de fato você vai a Lemberg?[1]
Essa anedota, se tomada em pleno momento de guerra entre Rússia e Ucrânia, mostra o avesso do chiste, ou seja, a face mortífera de uma anamorfose. Os poucos mais de 300 quilômetros que separam as duas cidades, uma na Polônia e outra na Ucrânia, representam a possibilidade de fugir da destruição e aniquilamento para uma esperança de vida longe das ameaças da guerra. Lemberg – Lviv – é hoje uma cidade sitiada pelos russos, fazendo ressurgir o horror vivido na segunda guerra mundial.
Porém, assim como na anedota, sabemos que o Outro sempre pode nos enganar. Perdidos no trem, os que conseguem fugir se tornam imigrantes e serão sempre um outro para a terra que os acolhe. Não é possível fundar uma certeza na palavra do Outro pelo fato de que um significante sempre remete a outro significante. Retomo aqui as palavras de Miquel Bassols:
Há, em primeiro lugar, uma segregação estrutural, inerente à linguagem como operação simbólica que exclui necessariamente alguma coisa em seu exterior para constituir um interior limitado. Nenhuma ordenação simbólica se dá sem deixar algo fora dela, mesmo que esse algo seja posteriormente simbolizado no interior, precisamente como ausente[2].
Sabemos que na Ucrânia, tal como no Brasil, houve uma rápida proliferação de grupos extremistas neonazistas nos últimos anos. É mais fácil, contudo, identificar as causas deste aumento no país do Leste Europeu. Uma delas foi a anexação da Crimeia pelos russos, há oito anos, fazendo emergir do lado ucraniano grupos nacionalistas com forte inspiração antissemita. Diante de uma ameaça, o mais importante é delimitar um outro agressor. Alguns desses grupos neonazistas, como o Pelotão Azov, se exibem livremente para o mundo participando ativamente do treinamento de civis ucranianos para enfrentamento dos russos[3].
Então não são apenas dois judeus na estação de Lemberg, milhares se amontoam e esperam por uma oportunidade de pegar o trem em direção à Polônia. A história da psicanálise deixou evidente um fato: ela é uma ameaça ao nazismo, por isso ter sido prioritário queimar os livros de Freud na Alemanha do Reich. Os nazistas consideravam a psicanálise como uma criação judaico-marxista. Nas palavras de Laura Sokolowsky, nossa colega da ECF, “para se identificarem com o totalitário, tinham que obter a rejeição do pensamento: tinham que parar de pensar na divisão interna do homem. Diante desta exaltação desarrazoada do Um, o significado eminentemente político da descoberta freudiana teve que ser erradicado a todo custo”.[4]
Apenas superficialmente pode ser difícil identificar a raiz da onda de células neonazistas no Brasil que acompanha a ascensão do totalitarismo no próprio governo brasileiro. Seria mais correto falar de um despertar, e não de um surgimento. O Partido Nazista teve presença em 17 estados brasileiros e chegou a manter 57 núcleos organizados que somavam quase 3.000 membros. Nos anos 30, o Brasil foi sede da maior filial do Partido Nazista fora da Alemanha. “O Partido Nazista teve expressão no Brasil, o que não quer dizer que o Brasil foi nazista, mas que existe uma raiz histórica, um passado sobre o qual é possível construir uma linguagem e um apelo ideológico”, avalia a historiadora Heloísa Starling, professora titular da UFMG em entrevista recente[5].
Não é tão simples transpor as motivações para o aumento de grupos neonazistas na Europa e no Brasil. Uma série de questões intimamente ligadas à colonização nas américas vem ganhando cada vez mais expressão nos debates, nos meios acadêmicos e na sociedade brasileira como um todo. Elas trazem a pergunta: como ler os eventos globais a partir de um olhar decolonial? Com efeito, não é a mesma coisa pensar o neonazismo em uma relação de vizinhança, como na Europa do leste, e pensá-lo em um país cuja identidade foi dividida pela colonização e que tenta apagar suas raízes quando estas não são eurocêntricas. Como afirma Lacan no Seminário XXI[6], na situação de vizinhança não se trata de dois, pois há sempre um terceiro, o real. Por isso toda situação de vizinhança envolve a topologia. São situações em que real, simbólico e imaginário podem sempre desatar, exigindo novas configurações de enodamento. Mas quando o Outro colonizador impõe seus significantes mestres sobre outras culturas distantes, como é a situação do Brasil, a violência é muito maior justamente por calar as vozes discordantes de povos africanos e indígenas que também deixaram marcas indeléveis no tecido social brasileiro. São significantes do colonialismo que determinam um modo de gozar como único possível para uma população extremamente heterogênea. Estamos diante de um impossível, impossível uma colonização sem os efeitos de segregação e racismo do choque de alteridades. Os fenômenos do racismo, como afirma Miquel Bassols, seriam “uma resposta limite à segregação social de um gozo diferente ao representado pelo universo simbólico do sujeito”[7] – acrescento: do colonizador.
Psicanálise e Decolonialidade
Nas últimas três décadas, o projeto MCD, Modernidade, Colonialidade e Decolonialidade, tornou-se um elemento incontornável para pensarmos a psicanálise no século XXI, sobretudo na América Latina. A pergunta é: como a psicanálise lacaniana pode reagir, interagir e deixar-se interpretar pelo movimento decolonial no Brasil do século XXI? Percebemos a necessidade de novas respostas. Isso porque as soluções encontradas pela comunidade europeia, com a promessa de livres barreiras entre os países afiliados, mostraram-se incapazes de deter os avanços da extrema direita em muitos destes países. Esses avanços confirmam o que disse Lacan sobre a ascensão dos mercados comuns e o aumento da segregação[8]. Ou seja, o projeto da União europeia encontra seu impasse na medida em que não é possível constituir um “nós” sem os “outros”, pois a alteridade é a maior força constitutiva dos povos e suas crenças. No final dos anos 60, Lacan denunciava o duplo movimento do colonialismo e a vontade de normalizar o gozo daquele que é deslocado, imigrado em nome de seu “bem”, como afirma Éric Laurent.[9]
A partir da obra do peruano Anibal Quijano, no final dos anos 90, tornou-se cada vez mais necessário no continente americano revisar a constituição histórica da modernidade situando a colonialidade como seu avesso[10]. No centro da questão está o emprego da raça como modo de segregar o saber do colonizado, restringindo a razão cartesiana exclusivamente ao branco europeu colonizador. Não deixa de ser irônico que tenha sido um negro, Juliano Moreira, um dos primeiros brasileiros a trazer Freud para o solo brasileiro. Em comum, a psicanálise lacaniana e o ubuntu – resgatado pelos movimentos negros[11] – promovem um descentramento do cogito cartesiano. Sou onde não penso, penso onde não sou, concluímos com Lacan. Ubuntu é uma palavra originária do idioma kibundu e não tem uma tradução exata para a língua portuguesa. A ideia é que a “minha existência está conectada a existência do outro”, não sou sem o outro.
Ubuntu é uma concepção de humanidade típica dos povos de matriz bantu que difere da concepção autocentrada de sujeito implícita no ideário Iluminista e, portanto, vai além da dualidade indivíduo/coletividade expressa em vários pensamentos ocidentais. Lacan aborda essa questão quando diz à sua audiência que a classe “Homem” não existe, pois ela é um conjunto aberto[12]. Esse ponto nos permite pensar uma alternativa à violência identificada por Freud no Mal-estar da civilização. Freud situa um dos fatores do mal-estar estrutural da condição humana na relação entre os seres humanos, sempre propensa à agressividade e necessitando mecanismos de controle. Já o ubuntu sinaliza que as existências humanas estão interconectadas, o ser como interação com o outro. Aqui, a condição humana seria uma existência coletiva.
No momento em que há expansão de células nazistas no Brasil, a psicanálise faz bem de se aproximar das alteridades silenciadas pela imposição colonial e que nas últimas décadas, sobretudo graças às vitórias na cultura e na política do movimento negro, ganham cada vez mais expressão. É na escuta e valorização de uma pluralidade de outros, que podemos combater o nazismo que sempre ronda a identificação ao Um do autoritarismo.