A edição do Fórum Zadig Doces&Bárbaros de 2021, dedicado ao tema Trans:Leituras, ocorrido em 01 de julho, reuniu uma parte importante de nossa comunidade analítica em torno do tema da transexualidade, proporcionando uma escuta e uma discussão revigorantes neste ano que Jacques-Alain Miller nomeou de “ano trans”.
Um dos pontos notáveis foi a entrevista feita a Are Bolguesi, conduzida por Angelina Harari. Ao longo de pouco mais de 10 minutos, Are relatou, de maneira clara e direta, o seu processo de transformação, iniciado pouco mais de um ano antes da entrevista. Are conta que em um tempo anterior, ser trans era se alojar em uma das duas alternativas: ser um homem trans ou uma mulher trans. O que ela mostra como uma marca contemporânea é a descoberta dos movimentos de “não binarismo”, de outras formas de expressão, de fluidez de gênero, onde ela refere ter se encontrado. E aponta para uma possibilidade de ser trans sem que seja necessário apelar às cirurgias e sem resvalar para o binarismo de gênero. Are também enfatiza como o seu interesse pela moda, considerada por ela como uma arte do corpo, tem feito a função de “vestir a sua pele” de maneira suficiente e libertadora.
A partir deste recorte da entrevista citada e diante da profusão de temas que esta edição do Fórum Zadig ensejou, destaco um deles que, apesar de não ser estrangeiro ao nosso âmbito, merece ser posto na ordem do dia: a clínica com os transexuais tomada como uma clínica das soluções sinthomáticas.
Éric Marty, em entrevista concedida a J-A Miller, já anuncia que a questão trans operou um “clash epistemológico, (…) cultural, simbólico e político[2]” em relação ao conceito de gênero. Em seu livro, “Le sexe des modernes”, Marty aborda também a ampliação do significado envolvido no termo trans nos dias atuais: “pode ser um transgênero pós-op, pré-op e não-op, onde a transitioning – o próprio processo de transição – substitui-se ao resultado: se ele pode envolver um tratamento hormonal, uma preparação para as cirurgias (mamas, laringe, vaginoplastia, faloplastia, terapia de redesignação) … pode-se também prescindir dele. A transição – o passing – se torna em si mesma o seu próprio objetivo (…). Passamos, então, do transgênero para trans: o prefixo se tornou o conceito[3]“.
Por este prisma, poderíamos tomar o trans como o portador de uma solução não estanque, como qualquer falasser? Ansermet nos mostra que, quando se trata do sexo e do gênero tudo muda mais rápido do que nossa aptidão para nomear: “Quando se toca no vivo, toca-se também na linguagem, realçando seu impossível casamento. As oposições significantes já não funcionam. Onde estamos? Não sabemos mais[4]”.
Ansermet se questiona a respeito de como devemos nos orientar em relação à transexualidade, tal como ela se apresenta na clínica contemporânea. E questiona a posição clássica que é a de se referir à psicose: “O que está, portanto, em questão para o psicanalista em relação à clínica transexual, sob transferência, é, antes de tudo, abrir-se para as características da solução sinthomática de cada sujeito, sem cair na armadilha do discurso comum: seguir antes as vias cada vez singulares e novas invenções que não cessam de nos surpreender, ou até mesmo facilitar esses achados que protegem o sujeito de um real impossível de suportar[5]”.
No final da década de 1990, quando iniciei meu percurso de formação em um programa de residência para psicólogos no Hospital das Clínicas em São Paulo, tive a oportunidade de acompanhar os pacientes candidatos à cirurgia de redesignação de gênero. À época, chamava-me a atenção o interesse compartilhado por todos(as) de se inserirem no gênero ao qual se sentiam pertencentes, mas não sem amputar e extinguir todas as características do gênero anterior, por meio de incontáveis tratamentos cirúrgicos e hormonais. O tom da voz e o pomo-de-adão eram verdadeiros estorvos. Talvez seja importante levar em conta essa ampliação em torno do “ser trans” nos dias atuais, ainda que muitas vezes apoiada em questões discursivas e identitárias que sabemos serem frágeis, uma vez que estas podem apontar para soluções que podem prescindir do expediente da intervenção no órgão, pois “isso não é suficiente para que um corpo comece a falar outra língua[6]”.
Em sua conferência na EBP-SP em 2017, Brousse retoma alguns trechos do seminário de 1973-1974, Les non-dupes errent, onde Lacan afirma que pode haver um número ilimitado de Nomes-do-Pai e define o naming como o realismo do nome, qualificado por ele como um real eficaz. “Cada amarração em número indefinido, cada sintoma, portanto, funciona na medida em que ele dá existência ao que não existe – a relação sexual, no ser falante. Todo nó permite acreditar na relação sexual e, portanto, faz limite ao gozo, obstáculo ao que dela não se pode escrever. Todos os Nomes-do-Pai limitam, ordenam, dão uma versão do gozo[7]”. Cabe ao analista contemporâneo, ao ser dócil ao trans, poder recolher o que esta política do sintoma nos ensina. Pois o ato (ou a passagem ao ato) de vestir a pele com as roupas do outro gênero, as terapias hormonais, bem como a escolha de um outro nome próprio, em sua vertente pulsional, acusam no corpo “o eco do fato de que há um dizer[8]”.