Esse texto se propõe abordar alguns pontos candentes do livro de Pierre Naveau O que do encontro se escreve, estudos lacanianos[1]. Publicado pala Escola Brasileira de Psicanálise, por ocasião da XXI Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise – Minas Gerais, o livro se mostra absolutamente atual, uma vez que aborda os temas mais fundamentais que estão em discussão hoje no Campo Freudiano.
Um saber sobre o encontro
A bela frase presente no título, O que do encontro se escreve… se propõe como uma tese a ser demonstrada: algo do encontro se escreve. Dois termos se distinguem aí: encontro e escreve. Mas de que encontro se trata? Numa palavra: trata-se do encontro amoroso. Naveau coloca em cena, esse é o seu tema, a estrutura do drama vivido pelos amantes, o drama do amor, sem excluir, evidentemente, a questão de como gozo e desejo se articulam a esse amor. Na leitura de seu percurso, somos conduzidos para dentro de obras da literatura e do teatro, e sem nos darmos conta, estamos sempre nas bordas de uma poética. “Poética do impossível de dizer”[2] é, aliás, o título da terceira parte dessa obra.
Por outro lado, Naveau aborda com rigor a lógica lacaniana do encontro amoroso. Na “Introdução”[3] – depois de fazer referência ao “verdadeiro encontro que houve com o discurso de Lacan”, depois de ter “ouvido” e “lido” vários Seminários de Lacan – Naveau confessa: “alguma coisa me intrigou: por que foi necessário que Lacan passasse pela lógica para falar das relações entre os homens e as mulheres e, mais precisamente, do encontro?”[4]. Essa questão é um “ponto vital” justamente porque o que é da ordem do encontro, tal como sua elaboração o mostra, é o que coloca em questão toda e qualquer lógica. Voltaremos a esse ponto vital.
O livro de Naveau aborda, de modo abrangente, “a articulação entre o saber e o encontro”[5]. A questão que daí se formula é: o que se pode saber sobre o encontro? Certamente, há os encontros que acontecem, mas “o que acontece na ocasião de um encontro”? Por outro lado, há também os encontros que acabam por não acontecer. Destes últimos, Naveau nos mostra que há muito o que dizer.
Dois casos da clínica de Naveau – “a mulher que diz não”[6] e o caso de “anorexia e bulimia feminina”[7] – são investigados com acuidade, finura e sutileza com o objetivo de evidenciar que esses dois falasseres femininos – essa mulher que diz não e essa mulher bulímica – estão absolutamente fechados ao encontro. Não por acaso, estes dois casos fazem parte da segunda parte do livro intitulada “Clínica da recusa”. A eles se juntam uma análise da “Dora” de Freud, que é descrita como aquela que, ao seu modo, “insiste em evitar o encontro”[8]. Naveau acrescenta à série dessa clínica da recusa uma análise sobre o modo como aconteciam os encontros amorosos do romancista e poeta Louis Aragon, segundo seus próprios relatos. Acrescenta também uma abordagem do drama do amor não correspondido de “Ysé”, a personagem de Claudel em Partage de midi[9]. São todos casos de encontros fracassados, sabotados e também, de modo mais sutil e discreto, se desvela, em todos esses casos, cada um ao seu modo, uma recusa ao feminino.
Por outro lado, há os encontros que acontecem. Eles são abordados na parte final do livro. O caso mais importe é sem dúvida o encontro amoroso entre os personagens de Stendhal: a Sra. de Chasteller e o jovem Lucien Leuwen. Voltaremos a eles.
Pois bem, a tese de Naveau pode assim ser resumida: os encontros que acontecem deixam “rastros no corpo”, “marcas”, que testemunham que algo se escreveu. Mas o que se escreve” é também o que é sempre possível de acontecer, ainda que haja condições para isso. Eis o que é demonstrado neste livro, sobretudo em seu ponto culminante, na última parte, intitulada “O que acontece na ocasião de um encontro”[10].
O encontro como o avesso do “não há relação sexual”
Mas essa tese de que “há encontros” só recebe o seu devido valor quando é abordada a partir de um “não há” fundamental: aquele estabelecido por Lacan em seu Seminário 20 que determina que “não há relação sexual”. Naveau analisa a lógica lacaniana da sexuação na quarta parte do livro, a mais extensa, intitulada “Variedade dos gozos, leitura dos Seminários 16, 17, 18, 19, 20 e 22”[11]. A inexistência da relação sexual aponta para o real de uma fissura intransponível entre os amantes. Do lado masculino, Naveau lembra que temos um “gozo do idiota”, que é coordenado pela fantasia, que condena o sujeito a um gozo autoerótico. É neste ponto que a análise que Naveau faz de Luis Aragon é paradigmática dessa estrutura masculina do gozo. O que se revela dos relatos do próprio Aragon é que, em suas aventuras, que eram mais perversas do que amorosas, prevalece “o falso encontro, e até mesmo o mau encontro”. O caso de Aragon permite entrever que “a fantasia é a causa do não encontro” (p.116).
Do lado da mulher, por sua vez, constatamos, no que diz respeito à inexistência da relação sexual, sua solidão. Como diz Laurent no belo “Prefácio” ao livro de Naveau a respeito do gozo feminino: “Na relação com seu/sua parceiro (o que indica que não estamos no terreno da anatomia, mas no campo de uma separação dos modos de gozo), uma mulher permanece sozinha a experimentá-lo” (p. 27). Laurent formula também, com precisão, o que está em jogo em O que do encontro se escreve:
O avesso dessa impossibilidade [a impossibilidade da relação sexual], desse “não há”, é que há relações contingentes, não necessárias entre os homens e as mulheres. E este livro de Pierre Naveau explora a consequência imprevista, inesperada, que é a outra face do “Não há relação sexual…”. Há encontros entre homens e mulheres, ou sujeitos do mesmo sexo, e, nesse nível, alguma coisa pode se escrever.”[12]
O real do encontro como orientação para o tratamento analítico
A pergunta a ser formulada aqui é, seguindo a investigação de Naveau, como compreender essa aparente contradição entre o “não há relação sexual” e o “há encontro”? Naveau se apoia nas fórmulas lacanianas do “necessário”, do “impossível” e do “contingente” para formular sua resposta. O necessário e o impossível estão intimamente vinculados. O necessário se caracteriza por ser a estrutura simbólica que determina o circuito de gozo próprio da repetição, ele se traduz pelo “o que não cessa de se escrever” formulado por Lacan em seu Seminário 20[13]. E o impossível, por sua vez, é “o que não cessa de não se escrever”, ele diz respeito ao real do “não há relação sexual”. Mas aqui vale lembrar da observação que Jacques-Alain Miller, em seu Curso O lugar e o laço[14] sobre esse real impossível:
O real do qual dizemos que é o impossível está estritamente determinado pelo simbólico, é o real visto desde o simbólico… O impossível é uma modalidade lógica, e quando circunscrevemos o real dessa maneira, procedemos então pelos caminhos que dependem do simbólico.
Essa referência de Miller me parece ser fundamental para se compreender o que está em jogo na construção de Pierre Naveau. O real que se define pela impossibilidade, o real do não há relação sexual, não é o real que há no encontro contingente. Para Miller o real enquanto impossível está regulado pelas leis da lógica, já o real próprio ao encontro contingente diz respeito ao “real sem lei”[15]. É curioso que a fórmula “o real é sem lei” não seja abordada em detalhe por Naveau em seu livro. Aliás, ao reler o livro agora, leitura rápida, não a encontrei ipsis litteris. Digo que é curioso porque seu estudo sobre “o que acontece na ocasião de um encontro” não é outra coisa senão um rico e generoso trabalho sobre o que é da ordem do real sem lei lacaniano, tal como suas coordenadas nos foram dadas por Miller.
“A necessidade do encontro impossível”
Vejamos o modo como Naveau toma o necessário e o impossível no caso Dora de Freud. Ambos são vistos como as estruturas que impõem ao sujeito o seu modo de gozo. Naveau retoma a análise do segundo sonho de Dora, aquele em que ela entra em uma floresta a qual, na interpretação de Freud, evoca o sexo da mulher. Na véspera desse sonho Dora havia visitado uma exposição e contemplara um quadro que representava uma floresta espessa que deixava entrever ao fundo ninfas. “Essas ninfas são os pequenos lábios do sexo feminino… que se encontram no plano de fundo da floresta espessa dos pelos pubianos”[16]. Eis porque “para Dora, é necessário que o encontro seja impossível”[17]. A estrutura do que não cessa de se escrever em Dora tem como um de seus pilares o “seu interesse pelo sexo feminino”[18]. O seu desejo está fixado aí, impondo um sentido gozado irredutível. Naveau nos conduz a localizar, por consequência, o que representa para Dora aquele que gostaria de ter com ela um verdadeiro encontro amoroso, o Sr. K.: “o Sr. K. representa para Dora a necessidade do encontro impossível, a necessidade da impossibilidade da contingência, se poderia dizer, enodando as três modalidades temporais”[19].
Portanto, quanto ao desejo inconsciente de Dora, não se trata de supor, como fez Freud, que ela tomasse o Sr. K. como objeto desejado, pois, verdadeiramente, ou, por assim dizer, necessariamente, ela desejava a Sra. K. O desejo pelo Sr. K., para florescer em Dora, dependeria da contingência própria ao encontro que, como sabemos – apesar dos passeios bucólicos no lago, do arroxo na loja com o pênis em ereção e de tudo a que o Sr. K. se dedicou com tanto empenho – não aconteceu. Quanta intimidade houve entre esse casal! Mas Dora, sempre fria, ou frígida, não foi tocada, ou melhor, não se sentiu tocada. A bofetada na cara do Sr. K., no passeio derradeiro, revelou sua posição.
Naveau se pergunta pelo motivo que leva Lacan a sustentar que “na histeria há uma recusa pelo corpo”[20]. O autor, busca a resposta se valendo do romance de Ian MacEwan, Sur la plage de Chesil, onde nos é narrado o encontro fracassado, o “fiasco”, de Florence, com Edward justo em na noite de núpcias do casal. A repulsa e o nojo invadem Florance quando ela é surpreendida pelo que Naveau diz apenas de maneira delicada e indireta: uma ejaculação precoce. A relação da histérica com o gozo sexual, diz Naveau, é dividida. De um lado ela está diante um homem comum, do Sr. K., de Edward, cujo gozo está sempre atravessado por uma impotência, por uma falha que o rebaixa. De outro lado, ela localiza “o gozo absoluto”, que é “o gozo do Pai”. “A histérica se apaixona pelo gozo absoluto”:
Quando Lacan indica que a histérica “promove” o gozo absoluto ele quer dizer com isso que ela tem a tendência a se desviar dos gozos finitos e a se voltar para esse gozo mítico que é o gozo infinito. A histérica “prefere” o infinito ao um. O que é inacessível prevalece sobre o que, se ela cedesse, se ela se deixasse levar, seria totalmente acessível. Encontramos aqui, uma vez mais, o real da duração de um não[21].
As condições para que o encontro aconteça
A estrutura da histeria pode ser expressa pelo triunfo do necessário e do impossível sobre a contingência do encontro. No entanto, há aí um “se ela cedesse”, “se ela se deixasse levar”. Isso é possível a uma histérica? Afirmamos que a abertura dessa possibilidade é o que cabe a um tratamento analítico promover. A direção do tratamento analítico é, assim, a abertura do real do encontro. Mais ainda, é nessa dimensão que, diz Naveau, está a experiência com o feminino. Assim, o movimento que anima o livro de Naveau pode ser visto como o movimento do próprio tratamento psicanalítico: “Desse modo, o movimento que anima esta coletânea de ensaios, ao longo de seu percurso, vai do não em direção ao sim do encontro…”[22]. Para que haja um encontro, diz Naveau, “é preciso por nele algo de seu. A clínica mostra que o encontro abala a posição do ser, “perturba a defesa”[23]. Como atender às condições que propiciam um encontro sem a experiência de uma análise? Difícil, pois, as exigências para que haja um encontro são radicais:
É preciso não se deixar deter pela fantasia. O encontro supõe, com efeito, que se esteja aberto a seu acontecimento e que se esteja disposto a correr um risco. Uma certa audácia é requerida. Há alguma coisa a fazer – um primeiro passo, por exemplo. De fato, é preciso ousar, uma vez que se trata de uma aposta.[24]
O rubor como acontecimento de corpo
Mas, afinal, o que acontece na ocasião de um encontro? Para Naveau o encontro é a ocasião, o momento, em que a temporalidade lógica que governa nossa rotina é suspensa por uma palavra que é dita. No encontro “há alguma coisa a dizer”. E o que é dito nessa ocasião rompe com a frigidez mortificadora que domina na rotina do falasser. O corpo é tocado, marcado, e, por consequência, vivificado. Tais efeitos produzidos no corpo estão, para Naveau, intimamente ligados ao que pode se tornar para o falasser “um sinthoma, no sentido do que Lacan diz sobre em seu texto “Joyce o Sintoma””[25]. Aqui não nos encontramos mais no campo da experiência pura e simples com os objetos a, os quais se revelam para Lacan “um falso real”[26]. No encontro, para além do objeto a, estamos no campo dos acontecimentos de corpo. A tese de Naveau, no clímax de uma sutileza, é que o acontecimento de corpo, sintomático, pode ser um simples ruborizar-se. Ou seja, Naveau propõe “o rubor como acontecimento de corpo”. O exemplo clínico que ele nos dá é lapidar:
Gostaria de dar o rubor como exemplo de acontecimento de corpo […]. Uma paciente me relatou que, quando criança, ruborizava no momento em que uma advertência lhe era endereçada, notadamente por seu pai, na presença de outras pessoas. Ela ficava mais perturbada ainda pelo fato de ruborizar, o que atraía os olhares. Ela, então, fez um lapso e disse: “Eu era transbordada por meu rugido (rugissement)”. Eu lhe disse: “Sim, você enrubescia (rougissiez) em vez de rugir (rugir) como um leão”. Ela reconheceu que não conseguia dizer sua revolta contra a palavra que fere a não ser ruborizando. Podemos assim observar que o afeto que, aqui, toca o corpo, assinala o recalque de uma fala sufocada, retida, morta. Ele assinala que uma palavra do Outro teve o mesmo efeito que uma bofetada. Isto é – um rastro no corpo.[27]
Eis o acontecimento de corpo desvelado. Eis também o que permite, na análise, dar voz ao que acabou por receber um destino de sufocamento, emudecimento e mortificação. O gozo sintomático dessa mulher subsiste sob a forma de um ruborizar-se que recalca um rugido, uma revolta, entalada na garganta. Eis o real sem lei que a análise deve visar, ou melhor, “liberar”. Caso contrário, o acontecimento de ruborizar–se, permanecerá, nessa paciente, enclausurado numa repetição mortífera.
O acontecimento de corpo na história de Stendhal, o encontro amoroso entre ”Bathilde” a ”Sra. de Chasteler” e o jovem ”Lucien Leuwen”, ocorre livremente, por assim dizer. Quando finalmente, numa festa, eles se encontram, o que se diz deixa marcas que são atestadas, igualmente, pelo rubor. Na conversa, ela acaba, de forma indireta e sem querer, por revelar seu amor por Lucien. Ultrapassada por suas próprias palavras – Naveau cita Stendhal – “ela ruborizou muito, mas havia falado antes de refletir. Ela ruborizou profundamente”[28]. O texto de Naveau é, neste ponto, inundado pelo poético. Todavia, suas pretensões teóricas são claras: evidenciar que quando o encontro acontece o falasser não está condicionado por nenhuma lógica, pois nunca se sabe o peso que uma palavra dita terá. O encontro ocorre no campo do real sem lei, onde o acontecimento de corpo está intimamente ligado à experiência do sinthoma e do feminino. No ponto culminante dessa conversa entre apaixonados, o acontecimento de corpo domina:
“Os olhos da Sra. de Chasteller lhe dizem então: “Eu amo como você”. E Stendhal não deixa escapar o detalhe crucial: “Ela retornou como de um êxtase e, depois de um meio segundo, ela se apressou em desviar os olhos, mas os de Lucien recolhera, em cheio, esse olhar decisivo”. Esse olhar é decisivo porque ele constitui uma confissão.”[29]
Evidenciar que nesse campo do encontro amoroso, “rebelde ao hábito”, uma palavra pode ser decisiva pode “provocar um corte, despertar o desejo, pode mudar o mundo. Então, com certeza, dependo do real”[30]. Essa dependência do real sem lei atesta que o livro de Pierre Naveau pode ser visto como sua resposta à convocação feita por Jacques-Alain Miller a respeito da necessária “redefinição do desejo do analista”. Sim, pois O que do encontro se escreve, não podemos negar, decorre de “um desejo de alcançar o real, de reduzir o Outro a seu real e liberá-lo do sentido.”[31].
Cristiano Alves Pimenta. Membro EBP/AMP