Por Jacques-Alain Miller e Éric Marty
Domingo, 21 de março de 2021
Éric Marty – Le sexe des Modernes.
Pensée du Neutre et théorie du genre
Paris, Seuil, coleção Fiction & Cie, março de 2021
Jacques-Alain Miller:
Caro Éric Marty,
Pensei em um pequeno speech, para começar. Recebi seu livro na quarta-feira passada com uma dedicatória que não pude decifrar, folheei-o por vinte minutos e pensei na frase de Marx em A Sagrada Família, a propósito da recepção, por seus contemporâneos, de o Ensaio sobre o Entendimento Humano, de John Locke, sobre o qual fiz minha dissertação de filosofia com Canguilhem: “Ele foi acolhido com entusiasmo, como um convidado impacientemente esperado.”
Seu livro me fazia falta, dei-me conta disso desde que ele foi publicado. Sem sabê-lo, eu o esperava. E antes de tudo porque nunca entrei na obra de Butler, na qual Zizek, então meu aluno em Paris, tentara me interessar desde a publicação de Problemas de gênero, em 1990. Muitos analistas, dentro e fora da Escola de a Causa Freudiana, desde então exploraram os labirintos da teoria de gênero, eu não.
Ora, a dita teoria é, doravante, um fenômeno mundial. Você começa seu livro com uma frase enfática: “O gênero, gender, é a última grande mensagem ideológica do Ocidente enviada para o resto do mundo”. O tom é “romântico”, para usar uma palavra favorita de Butler, mas, aos seus olhos, estigmatizante.
Sua frase é excessiva? Em todos os casos, é indiscutível que as idéias dos sectários do gênero, para dizê-lo com as palavras do presidente Mao, penetraram nas massas e se tornaram uma força material. Essas ideias se impõem nos Estados Unidos, elas pesam sobre a evolução dos costumes em todas as democracias avançadas, para chamá-las assim, elas inspiram a legislação de vários países, dentre eles a Argentina, onde a influência de Lacan é tão marcante na vida intelectual. Na Europa, uma lei semelhante à lei argentina está sendo discutida atualmente na Espanha. Os discípulos do gênero são ativos na França, eles conheceram seus momentos mais ricos no tempo em que Najat Vallaud-Belkacem era Ministro da Educação.
Penso naquela frase de Foucault, citada por você na página 389, na qual ele revela sua esperança de produzir “reais efeitos na história presente”. Pois bem, esta Judith Butler conseguiu isso. Digo: “é de se tirar o Chapéu pra ela!” E ainda – por que não? –: “Bem cavado, velha toupeira!”
De saída, fiquei irritado pelo fato de Butler usar o vocabulário de Lacan a torto e a direito, com grande descaramento e de maneira bizarra. Você me diz que não é nada disso. Seu uso, o uso indevido dos termos que ela toma emprestados de Lacan e de tantos outros corresponde, nela, a um verdadeiro método, um método de “desfiguração” devidamente reivindicado, que consiste em se apropriar dos conceitos para desviá-los de seu sentido inicial, a fim de utilizá-los para outros fins. Você a cita na página 74: We actively misappropriate the term for other purposes. É um gesto utilitarista que não é sem grandeza, nem sem topete. Para dizer topete, os americanos têm uma palavra em ídiche, a Chutzpah. Butler não o exerce apenas em Lacan, mas em Derrida, em Bourdieu, em Foucault e em tutti quanti. Você diz que quanto mais conceitual é um termo, mais ela busca raptá-lo e explorá-lo, decorre daí uma atitude em relação aos teóricos que você qualifica como predatória, ver página 77. Através de suas múltiplas obras, você a rastreia, segue as pistas das reutilizações, deslocamentos, desvios, divagações, mutações, reconfigurações e você projeta uma luz crua sobre sua maneira de fazer, sempre engenhosa e imaginativa, mesmo que por vezes enrolada e confusa. Assim, você se entrega a uma minuciosa “desconstrução”, para usar a famosa palavra de Derrida, da teoria do gênero, desconstrução que respeita seus meandros, mas é severa quanto às suas inconsequências. Enquanto esta ideologia suscita de bom grado sarcasmos e rejeições sem rodeios entre os conservadores, os reacionários, os partidários do senso comum, você a estuda, desdobra tranquilamente toda a sua complexidade, expõe seus paradoxos, aponta seus impasses teóricos, embora eu tenha pensado, ao lê-lo, na célebre máxima de Spinoza comentada por Nietzsche: Non ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere.[1] Você não zomba do gênero, não deplora nem detesta, você compreende e faz compreender. Por fim, aqui e ali, a ironia irrompe.
É preciso, por certo, depor as armas diante da palavra, senão do conceito de gênero, gender. Ele não teria esse eco, não teria se tornado, para muitos a um só tempo, um slogan e uma evidência se não estivesse em simpatia, em sintonia, em ressonância com o que opera no momento presente de nossa civilização, com seu “mal-estar”, segundo a palavra de Freud, com “o que caminha nas profundezas do gosto”, como diz Lacan.
Não, a “teoria do gênero” não é um complô, não é uma impostura, ela diz algo muito profundo sobre nossa atualidade, modernidade ou pós-modernidade. É ainda mais fascinante ver, lendo-o, que essas ideias, hoje triunfantes, se originaram de uma espantosa bricolagem teórica, em equilíbrio instável, onde o paralogismo disputa com a fantasia.
Dir-se-á que você arruína, sem volta, a construção do conceito de gênero. Mesmo assim, alguns, inclusive eu, serão sensíveis à potência da empreitada. Judith Butler soube impor o gênero “quase universalmente como um significante insuperável”, página 487, ela é inventiva e retifica suas conclusões sem barganhar, até finalmente evacuá-las sicut palea, como esterco, palavras de Tomás de Aquino no final de sua vida, lembradas por Lacan.
Você de fato me ensinou que Butler foi sagrada Queen of Gender, em 1994, por aquela que poderia ter sido sua rival, Gayle Rubin, a quem você apresenta na página 38 como “antropóloga, ativista queer, lésbica, grande amiga de Michel Foucault, com quem ela compartilha um mesmo tropismo S / M ”. Todavia, desde o ano anterior, Butler censurou-se por ter feito do gender “um local prioritário de identificação às custas da raça, da sexualidade, da classe ou do funcionamento das posições geopolíticas”, ou também “em detrimento dos subalternos, nova categoria alternativa criada por Gayatri Spivak”. O pensamento interseccional, que privilegia a raça, ganhou, desde então, você o escreve na página 365, um lugar quase hegemônico em Butler. É de se acreditar que, para ela, o gênero durou apenas pouco mais do que duram as rosas, antes de murchar.
Ao mesmo tempo, você faz compreender que há como um destino caótico do pensamento de gênero, que o interdita de algum dia se fixar, que o conduz a diversificar-se e a fracionar-se sem trégua, de modo que seu campo intelectual e militante parece devastado por uma guerra de todos e todas contra todas e todos. Este é também o momento de lembrar que a denominação de “teoria de gênero” resulta de um forçamento, já que aquelas e aqueles que trabalham na disciplina a desqualificam. Segundo eles, ela resulta de uma concepção unitária, autoritária, hegemônica da atividade intelectual, que eles e elas abominam, preferindo dedicar-se à multiplicidade cintilante, pululante, sem lei, dos studies. O Um está morto, viva o Múltiplo! O gênero não reconhece nenhuma Rainha. De algum modo, e certamente poder-se-ia sustentá-lo, essa dinâmica está em conformidade com a lógica dita do “nãotodo”, que Lacan veio a formular como própria à posição feminina e que, hoje, prevalece por toda parte na civilização, pelo menos na nossa.
Esse parti-pris do Múltiplo-sem-Um faz do campo dos estudos de gênero um labirinto, melhor ainda, um matagal, uma selva e eu me perderia nela, ou melhor, nem mesmo entrava, se você não tivesse me levado pela mão, como Virgílio. Minha Butler será, até nova ordem, a de Eric Marty. Espero que seu livro seja traduzido nos Estados Unidos, ficarei curioso para ver como a interessada reagirá ao seu trabalho e também seus irmãos e irmãs de armas. Prestarão a você a homenagem (hommage) ou a mulheragem (femmage) de uma controvérsia argumentada?
No entanto, seu livro não é apenas uma desconstrução sensacional do gênero, segundo Judith Butler. Ele oferece também um panorama inigualável, até o momento, pelo menos que eu saiba, de uma fatia notável da vida intelectual na França na segunda metade do século passado. Naquela época, todo mundo falava do estruturalismo, fosse para desprezá-lo ou por pretender ultrapassá-lo. Você lança, em particular, olhares entrecruzados sobre Barthes, Deleuze, Derrida e Foucault, sobre sua cumplicidade e suas querelas, abafadas ou explosivas, período muito intenso e fecundo se o compararmos com a atonia atual das trocas intelectuais, mal mascarada por uma agitação de má qualidade, aquela que disse, semana passada, a uma ardilosa, sagaz observadora das mídias, Eugénie Bastié, jornalista do Le Figaro, que “nosso debate público é caracterizado pelo relativismo (cada um com sua verdade) e pela intolerância (minha verdade não pode ser contestada)”. Muito gender, essa situação.
Ao longo de sua desconstrução do gênero, você faz esses quatro grandes nomes retornarem muitas vezes nos eruditos entrelaçamentos que, por vezes, se transformam em emaranhados. Gostaria de retomar um a um desses nomes com você, se você assim o quiser.
E enfim, há Lacan. Ele inspira Butler, cujo trabalho ele não conheceu, pois faleceu em 1981. Ele é muito presente para os nossos quatro Grandes, também os inspirou e os leu, os convidou, considerava o que escreviam. Mas seu livro faz aparecer até que ponto ele se distingue do Quarteto. Eu, pelo menos, não vejo nele nenhum traço desse “pensamento do Neutro” que você detecta nos quatro para opô-lo à teoria do gênero.
De todo modo, depois de 1968, quando Derrida, Deleuze e Guattari, sem esquecer Foucault, tomaram a empreitada de tornar a psicanálise demodê, obsoleta e, para dizê-lo sem cerimônia, arruiná-la na mente do público, Lacan lançou-lhes uma rede, uma túnica de Nessus, o que chamou de “o discurso da Universidade”, distinguindo-o severamente do “discurso do Analista”. Houve, então, uma divisão das águas. Entre os lacanianos, deixou-se de ler “os universitários”. E esses se afastaram cada vez mais de sua antiga camaradagem com o psicanalista que os mantivera tão ocupados.
É isso, terminei. É um grande livro, muito rico, muito espesso, 500 páginas, um afresco, um carnaval com seu cortejo de castrati e travestis, sado-masocas e pseudo-esquizos, a um só tempo festival US e desfile French Pride. É uma epopeia conceitual de tirar o fôlego. Em suma, uma obra que, aposto nisto, ficará memorável.
Lacan e o gender
Éric Marty:
Obrigado, estou muito emocionado com suas palavras. Eu lhe dizia, antes de começarmos a gravar, que, para mim, você é um dos leitores ideais deste livro, por sua história, pelo seu papel, por seu lugar também que é, digamos, ligado ao de Lacan. Lacan, que é para mim um dos mestres do jogo, do jogo de xadrez, do bridge ou do pôquer, que meu livro põe sobre a mesa, e dos quais propõe algumas partes. Há outros mestres do jogo: LéviStrauss, por exemplo, de quem não teremos tempo para falar. Mas Lacan é de fato o mestre do jogo em relação ao Quarteto: Deleuze, Barthes, Derrida, Foucault. E essa dominação de Lacan é muito importante para trazer à luz o quanto os herdeiros – deleuzianos, derridianos, foucaultianos – penam, hoje, para pensar seu próprio objeto na época que foi lacaniana e para perceberem as posições de uns e de outros em relação a Lacan. Mestre do jogo também no que concerne ao que se passa do lado do gênero, por ser tão apaixonante reconstituir a relação e as estratégias de Butler em relação ao corpus lacaniano, de um rigor surpreendente em sua lógica de deformação, de rivalidade também, muito assumida. É igualmente a essa reconstituição que me dedico. E depois, porque Lacan, como alguns de seus contemporâneos, deparou-se com o gênero antes de este se tornar um conceito dominante. E observo, desde o início do meu livro, que, se Lacan encontra a palavra gênero em sua versão original de gender junto ao psiquiatra americano Stoller, e se ele a identifica como um significante, ele, porém, não faz nada com ela. Tem-se a impressão de que, hoje, muitos psicanalistas se enraivecem por não terem estado entre aqueles que fizeram da palavra “gênero” um significante central para sua própria clínica ou para sua própria teoria.
J.-A. M.: Ah, sim? Você conhece alguns psicanalistas que se enraivecem por isso?
É. M.: É uma impressão muito difusa que se traduz de forma anedótica pela adesão de um certo número de analistas ao vocabulário geral dos gender, mas, acima de tudo, há esse sentimento muito tenaz, a ponto de valer como certeza, de que o significante “gênero”, desde o seu surgimento, tomou o lugar de um significante-mestre, um significante indispensável a qualquer sujeito falante e que o intima a se perguntar como se fazia antes para falar sem ele.
J.-A. M.: Você tem razão, Lacan não fez do gênero a palavra principal de seu ensino. Ele foi, sem dúvida, o primeiro a divulgar Stoller na França…
É. M.: Certamente.
J.-A. M.: …e a indicar a leitura de Sex and gender, que é de 1968. Ele falou sobre isso, você deve se lembrar, em seu Seminário: de um discurso que não fosse semblante, dedicou-lhe várias lições. Seguindo seu rastro, seus alunos escreveram artigos sobre transexualismo na revista da Escola Freudiana, Scilicet, em Ornicar?, revista que eu dirigia no Departamento de Psicanálise de Paris VIII. Catherine Millot, que era sua analisante, sua aluna e, como ela contou em um livrinho charmoso, sua amante, desde 1983 dedicou ao transexualismo uma obra que deve ser lida, intitulada Horsexe. Então, Lacan, os lacanianos, não deixaram de se dar conta de Stoller. Mas nem por isso adotaram o conceito de gênero.
Não tenho de modo algum a sensação de que perdemos algo com isso. Importado por Judith Butler, esse conceito é feito para uma coisa: minimizar, pluralizar, deteriorar, apagar, fazer esquecer a função da diferença sexual, o fato de haver um sexo e um outro, o que faz dois, e não pequeno n sexos, como Deleuze e Guattari o queriam desde O Anti-Édipo, muito antes de o gender aparecer. Fazer esquecer também que não há, em lugar algum, relação pré-programada entre esses sexos, que são dois.
Entre os gametas macho e fêmea, sim, há uma relação programada, ou seja, uma fórmula cromossômica que pode ser posta preto no branco num papel, e que traduz a maneira precisa como os dois se fusionam no momento da fecundação para criar o zigoto. Sim, há uma relação biológica entre o espermatozoide e o óvulo, bem como entre as gônadas de um e do outro sexo. Só que, no patamar superior, onde somos pessoas sexuadas, “seres” e não órgãos, células ou cromossomos, não há fórmula universal.
O homem, a mulher são, enquanto tais, distintos de seus órgãos assim como de seu organismo. Eles são almas? São exatamente significantes, pois, no nível em que se trata dos seres, é necessário, para que se estabeleça um laço, passar pelo Espírito Santo, quero dizer pela fala, por um discurso, pelo sentido. Definitivamente, entre esses seres falantes e falados, esses “falasseres” (parlêtres), neologismo de Lacan, pode-se tecer alguma coisa que se assemelha a uma relação, mas isso nunca será mais do que uma peça juntada, uma ligação contingente, singular, instável, revogável, que se estabelece sempre de esguelha. As mitologias, as religiões, as sabedorias, as tradições, mas também os romances, os filmes ou as canções se oferecem para lhes fornecer contos, cerimônias, momices que fazem suplência à relação em falta, que a “remuneram”, nas palavras de Mallarmé.
Ora, os gender studies, até onde eu saiba, embora desdenhem a diferença entre os sexos, nem por isso se resignam à inexistência estrutural da relação sexual que é, no entanto, constitutiva da humana condição. Por conseguinte, via de regra, eles elucubram artimanhas que desembocam sempre em alguma utopia da relação sexual, utopia que é, hoje em dia, muito frequentemente, anti-patriarcal. Esse exercício decorre, a meu ver, da literatura fantástica. Por que não? Mas a maioria dessas utopias está longe de ser apetitosa. Você não acha?
É. M.: Para mim, a questão não é determinar se faltou ou não a Lacan o significante “gênero”, aliás, não mais do que a propósito de Barthes, que também utiliza a palavra “gênero” a partir do castrato balzaquiano, ou ainda a respeito de Derrida com a “lei do gênero”, sobre a qual ele medita baseado em Blanchot. A eles, não faltou nada. Eu me cito: “Se Lacan e Barthes – poderia ter acrescentado Derrida – deram um lugar à noção de gênero, obviamente eles não ocuparam um lugar nela”. Além disso, a ideia de que a Barthes, a Lacan ou a Derrida teria faltado o gênero como significante-mestre de seu discurso introduziria dolorosos problemas epistemológicos, porque, no outro sentido, o significante gênero não lhes falta. Eles, contrariamente a nós, hoje, podem falar, discorrer sem que sua ausência faça furo. Continuamos a lê-los e ouvi-los sem nos surpreendermos com a ausência da palavra “gênero” em seu discuso. O que me fascina nessa emergência de um significante novo é a ruptura de época assinalada por ele e a cuja evidência devemos nos render: essa palavra, precisamos dela hoje em dia.
Mas sua observação apresenta um outro problema de tipo epistemológico. Será que o melhor dos anos 1960-1980 não reside em outro lugar que não nos significantes-mestres que surgiram então? Será que os significantes novos que proliferaram durante essa sequência – palavras-valise, neologismos, palavras desviadas – não eram algo inteiramente diferente dos significantes-mestres? Este é também um aspecto do meu livro, especialmente na terceira parte: explorar a modernidade sob o ângulo da incrível inventividade linguageira do pensamento do Neutro, de Barthes, com o monograma do castrato, S/Z, até Derrida com a invaginação ou o “perverformativo”, passando por Deleuze com o “CsO”. Esses não são de forma alguma significantes-mestres e, além disso, esses significantes permaneceram sem herdeiros. O significante-mestre supõe um significante que estabeleça a unidade do significante e do significado e garanta que o sujeito seja idêntico ao seu próprio significante. Talvez seja por isso que o conceito de gênero – como significante-mestre – traga tantos problemas. Parece-me que se há significantes novos que surgiram neste fascinante corpus da sequência moderna, eles obedecem a jogos de enunciação, jogos de escrita que, no fim das contas, os constituem como materiais ou joias de uma obra, já que cada um dos protagonistas do meu livro produziu – negativa ou positivamente – uma obra. O que não é de modo algum o caso de Butler e que, aliás, não é de forma alguma sua ambição.
Portanto, não acho que a Lacan tenha faltado a palavra gênero. Não é isso o que digo. Digo que, hoje, na opinião intelectual atual, mas também entre alguns psicanalistas, tem-se a impressão de que as coisas teriam sido mais simples se a palavra gênero, em vez de vir de Butler, tivesse emanado do campo psicanalítico. Não foi o caso. Eu faria, portanto, esta distinção, válida também para Derrida ou para Barthes: a Lacan não faltou o conceito de gênero, neste, porém, ele não ocupou um lugar.
J.-A. M.: Sim, concordo. Mas, de minha parte, eu o parabenizo.
É. M.: Concordo.
J.-A. M.: Mesma coisa no que concerne ao self, promovido por Winnicott em sua época. Lacan apontou o termo no momento de sua aparição, mas evitou cuidadosamente utilizar uma noção que considerava ardilosa.
É. M.: Dito isso, não é por acaso que Lacan encontra a palavra gênero a propósito dos transexuais. É como o anúncio do clash epistemológico, mas também cultural, simbólico, político, que opera hoje entre a questão trans e o conceito de gênero. Veja nas páginas 492-502.
J.-A. M. : Sim, você o mostra em detalhes no final do livro e é muito esclarecedor. Compreende-se o seguinte: o transexual verdadeiro não pega leve. Para ele, o gender fluid muito pouco. É na diferença entre os sexos que ele acredita ferrenhamente e nos estereótipos imóveis de gênero que, a seus olhos, caminham juntos. Reivindica esbravejando passar para o outro lado, modificar suas características sexuais secundárias, até mesmo primárias, e não hesita em mobilizar, para esse fim, Mister Bistouri e Milady Hormone. Quando acontece de ele ou ela não estar muito seguro com o que fez, tudo então dependerá dos interlocutores que ele ou ela terá, dos praticantes que se apresentarão. Hoje, não faltam psis que adoram bancar os empuxo-ao-crime (les pousse-au-crime), mesmo quando se trata de crianças muito pequenas.
França-América
É. M.: De todo modo, estou muito contente com sua leitura, porque o lugar que você ocupa no campo intelectual – para falar como Bourdieu – permite à minha proposição um certo tipo de desenvolvimento, pois você tem uma posição panorâmica e, ao mesmo tempo, um conhecimento do detalhe daquilo que relato, conhecimento que é excepcional. E o detalhe importa no cuidado que tive ao exercer o que se poderia chamar de “uma erudição no presente”, ou uma erudição do presente e do passado muito recente. Minha intenção não foi de forma alguma fazer uma história das ideias, porque esse tipo de história tende a sínteses, sempre mais ou menos factícias. Queria que a minha “história” passasse essencialmente pelos textos, porque eles dizem muito mais do que as ideias que veiculam. Disso decorre a dimensão filológica, muito forte em minha proposição, atestada pela importante proporção de notas de rodapé, a justaposição onipresente do francês e do inglês, em que se joga a questão essencial da língua como um espaço de tensão entre enunciação e peso da ideologia, a datação sistemática de proposições, o rastreamento dos “roubos de conceito”, das falsas citações. Por vezes, senti-me foucaultiano na minha abordagem epistemológica, isto é, arquivista e, portanto, também um pouco borgesiano.
Como você disse, é por essa razão que o livro pôde ter uma dimensão épica, até mesmo romanesca. E é muito importante poder integrar no trabalho de interpretação sobre os textos a objetividade do olhar do romancista sobre todos os seus personagens, os quais ama com igualdade. Assim, não subscrevo o combate de Butler, ou pelo menos seu ethos intelectual, não sou sensível à sua escrita, não sou sensível à sua cultura, não sou sensível à sua silhueta, à sua abordagem, às suas maneiras de fazer. Contudo, considero-a um bom personagem desse romance intelectual que tentei contar e, nesse sentido, digo a ela: “é de se tirar o chapéu!”, como você fez, sobretudo por sua incrível energia. Além disso, eu aprecio muito o fato de ela não ser filósofa, mas, devido à sua profissão, ser professora de retórica. Ela introduz na teoria não apenas figuras de retórica, o que ela chama de “tropos” – catacreses, metalepses, metonímias –, o que ela também chama de “poder das palavras”, mas, por via da retórica, ela joga muito com os textos, com as culturas, com os corpus, arriscando-se a fazer usos sofisticados das citações, da argumentação, muito distante dos usos filosóficos tradicionais. A seu respeito, poderíamos falar de ativismo retórico.
Nessa dimensão épica que minha proposição pode ter, há um outro elemento, o de uma rivalidade recíproca e intensa no domínio da teoria entre o pensamento americano e o que os anglo-saxões designam sob o termo, por vezes desdenhoso, de pensamento continental. Ou seja, nós, os europeus. E essa rivalidade toma um aspecto particularmente rico no campo dos gender, cujo emblema é essa figura totalmente paradoxal, até perversa, da French Theory que Butler, com uma honestidade cruel e talvez um tanto sorrateira, dá a última palavra explicando que é uma pura “construção americana”: há nisso muitos quiprocós, ressentimentos, vinganças e jogo de tolos que me empenho em esclarecer. Sem falar que há, do lado dos franceses, entre alguns deles, não uma americanofobia grosseira, mas um jogo de agressividade ou de desdém mais ou menos mascarado.
J.-A. M.: Como você sabe, o ressentimento para com os EUA é uma constante na França desde a ascensão deles ao poder após a Primeira Guerra Mundial. O antiamericanismo é a sala dos passos perdidos da ideologia francesa. No século XX, gaullistas e comunistas ali se cruzaram, extrema esquerda e extrema direita, nacionalistas e intelligentsia. Quem enganchou o vagão França no trem atlântico e nos Estados Unidos? Foi em 1949, com a criação da OTAN, a dita “Terceira Força”, que era tanto de direita como de esquerda, prefigurando, em suma, sob a Quarta República, o atual “bloco burguês” macroniano. A hostilidade declarada de Lacan ao American Way of Life, tanto quanto à americanização do freudismo, contou muito para Althusser e para nós, seus alunos, quando ele trouxe Lacan à Escola Normal, em 1964, e que este ali proferiu seu Seminário: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Com toda a sua fúria contra os promotores da psicanálise à americana, Lacan chegou até a escrever um dia que achava justificada a prevenção que a psicanálise encontrava no Leste. Enorme! Estávamos extasiados.
É. M.: Butler é muito sensível a isso, ela vê claramente como Lacan considera que a transferência da cultura freudiana para os Estados Unidos decorre de uma espécie de decadência, da qual, aliás, a categoria do falo é a primeira vítima, diminuído como ele o foi pela promoção dos objetos parciais. Ela não hesita em ver na centralidade do falo, em Lacan, uma espécie de nostalgia francesa. De todo modo, para Lacan, é claro que deixar de lado os grandes conceitos freudianos ligados à castração e ao falo resulta de uma ruptura com a cultura europeia …
J.-A. M.: …em benefício da cultura US fundamentalmente não histórica e que só jura pela adaptação.
É. M.: Exatamente.
J.-A. M.: Adaptação, o grande tema de Heinz Hartmann, pilar da Psicologia do ego com Ernst Kris e com Rudolph Loewenstein, um polonês que foi analista de Lacan antes de se estabelecer em Nova York. Mas, se quiséssemos fazer a arqueologia do antiamericanismo “teórico-cultural” de Lacan – ele não tinha nada contra a pessoa dos americanos e americanas, ele não era nada xenófobo –, seríamos obrigados a implicar nisso o próprio Freud.
M.: A esse respeito, descobri um livro, com o qual fiquei completamente impressionado e que confirmou minha leitura: é o pequeno texto de Adorno que cito longamente no final do livro. Chama-se La psychanalyse révisée, Die revidierte Psychoanalyse,[2] e data de 1946.
J.-A. M.: Não li.
M.: Ele mostra como, nos Estados Unidos, os psicanalistas adaptam o pensamento freudiano ao ralador da ideologia americana, substituindo os processos psíquicos e simbólicos por fatores socioculturais, para fazer deles uma psicossociologia adaptativa. Encontramos isso em Butler, no uso que ela faz dos conceitos de empowerment ou de agency, todo este léxico que vem da gestão, do discurso gerencial. A ideologia do self-making, por exemplo, que está profundamente ancorada nela e que, aliás, ela assume, confirma a leitura feita por Adorno, já em 1946, da ideologia americana presente no espaço psicanalítico.
Do outro lado, diferentemente daqueles que se mantêm à distância do campo americano, Barthes, Lacan e mesmo Deleuze, há os “viajantes”, aqueles que fizeram a viagem, notadamente Derrida e Foucault.
J.-A. M.: Não sei se Lacan se manteve à distância. Ele havia ido ao Congresso de Baltimore na Universidade Johns Hopkins, em 1966, quando dois universitários americanos decidiram importar para os States o “estruturalismo francês” que, na época, arrebentava a boca do balão. Eles deram umas voltas por Paris para fazer suas compras. Lévi-Strauss não quis se comprometer. Barthes, Deleuze, Foucault se passaram por doentes. Lacan e Derrida fizeram a viagem. O público, formado por professores de literatura, à frente dos quais Paul de Man, de Yale, fica perplexo diante do psicanalista, mas tem uma síncope diante do jovem filósofo. Foi uma verdadeira epifania coletiva, um êxtase. Eles imediatamente começaram a falar derridiano e continuaram nesse embalo por décadas, sem disporem de forma alguma da considerável erudição filosófica do jovem mestre. Ainda vejo Derrida, em seu retorno à rue d’Ulm, onde eu preparava minha agregação em filosofia com ele para caïman – que significa “repetidor (répétiteur)” na gíria local –, dizendo-me, rindo, que ele havia sido tão bajulado que poderia, se quisesse, prosseguir nesse elã pela vida afora e repetir indefinidamente para os americanos, com algumas variações, a mesma conferência que foi em seguida compilada em seu livro A escritura e a diferença com o título: “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”. Esse texto foi como a Marcha das Trombetas, em Aida, conotando a entrada em cena do que mais tarde seria chamado de “pós-estruturalismo”. Aliás, Lévi-Strauss não podia suportar Derrida. Os americanos fizeram de Derrida seu tesouro nacional, mas isso não quer dizer que seu pensamento tenha se americanizado. Né?
M.: Sim, mas ele poderia ter sido ambíguo nesse ponto. Em todo caso, e isto é o essencial, ele evidencia que a teoria não quer dizer nada nos Estados Unidos, que ali se está no império neoliberal da mercadoria do saber.
J.-A. M.: Você assinala muito bem em seu livro que Derrida vê na theory “um artefato puramente norte-americano”, cuja multiplicação sob a forma dos studies é o efeito de uma “estratégia do free market e do pluralismo liberal”. Derrida sempre se manteve muito francês, muito à esquerda, certamente não “sessentaeoitiano”, mas comunizante. Quando ele ainda era desconhecido, em 1962, um professorzinho assistente na Sorbonne, e eu seguia suas aulas com dileção, ele vinha todas as quartas-feiras, Le Canard enchaîné nas mãos, antes de nos iniciar na mais elevada metafísica.
M.: E depois, há Foucault, que é o que chamo de “o pós-europeu”, aquele que, do Quarteto, foi o único que realmente teve um movimento de transferência das questões intelectuais.
J.-A. M.: Sim, com ele, houve uma autêntica americanização. Certamente você leu o livrinho que acaba de ser lançado em francês, Foucault en Californie, que é muito fofo.
M.: Sim, é um livro muito interessante desse ponto de vista, e quase caricatural – mas de maneira simpática – da cultura dos câmpus americanos e da maneira extraordinariamente sedutora com a qual Foucault se adapta a essa cultura da espontaneidade, da não mediação, de uma certa relação com o corpo, com as roupas, com os acessórios do cotidiano.
J.-A.M.: Reconhece-se plenamente Foucault, sua gentileza, sua disponibilidade, sua curiosidade, sua simplicidade, sua alegria, seu brio, sua ironia também e, ao mesmo tempo, seu lado aventureiro, seu tônus muito homo, experimentando o LSD no Vale da Morte com desconhecidos, saltando sobre tudo o que se apresenta, desabrochando em um mundo de jovens bronzeados. Há um momento em que ele diz: “É muito bom, Paris VIII, Vincennes, mas, na verdade, há muitas garotas”.
M.: “Havia tantas garotas”. Um pouco como Barthes descobrira, durante sua estadia na China com o grupo Tel Quel, em 1974, que havia mulheres demais. Podemos rir, como estamos fazendo agora, podemos também ficar chocados, como imagino que poderia ter sido o caso, mas podemos igualmente levar a sério o que talvez não seja, da parte de Barthes ou de Foucault, senão um enunciado próprio do código homossexual. Essas palavras podem nos levar ao conceito e, notadamente, a essa noção foucaultiana importantíssima e que passa despercebida por Butler, a de “monossexual”, que abordo na quarta parte do meu livro e no epílogo. A comunidade monossexual aparece em Foucault como o espaço onde a diferença sexual pode ser suspensa e, portanto, o dispositivo de sexualidade moderna. Mas voltaremos a isso, uma vez que é tão importante.
J.-A. M.: Oh sim ! Não sabíamos dos detalhes no Quartier Latin, mas corria o boato de que Foucault nos amava menos e que ficou doido pela Califórnia, que era para ele o ideal, o futuro, o paraíso. Você o percebe através de seus últimos ditos e escritos. Ele realmente sofreu uma mutação, ele foi um mutante.
M.: Exatamente. Falaremos sobre Foucault um pouco mais tarde. Digamos, para encerrar a questão França–Estados-Unidos, que, de fato, a partir do início dos anos 1970, Foucault considera que a França não é mais um espaço histórico plenamente vivo ou plenamente contemporâneo, que é preciso liquidar tudo o que pesa como um peso morto e, antes de mais nada, a literatura. Há nisso uma operação em que ele é exceção em relação a todo mundo na França e que se traduz, em particular, por sua reaproximação com a filosofia anglo-saxã, a filosofia analítica.
J.-A. M.: Lacan não se reaproximou da filosofia analítica, não, mas utilizou muito a lógica matemática que se tornou uma referência capital para ele.
M.: Com toda certeza. Mas é na lógica que Lacan se interessa, ao passo que Foucault adere à ideologia mesma da filosofia analítica e também ao pensamento neoliberal, um neoliberalismo muito americano. Por que a América? Porque lá, a Lei é menor, a norma é quase tudo. Eu não compartilho absolutamente de seu gosto pela filosofia analítica, mas admiro muito sua energia, sua vitalidade. Seu desejo de ir mais além.
J.-A. M.: Ele era irresistível.
M.: Completamente. Para concluir sobre esse ponto, o que ainda é impressionante quando nos detemos no Quarteto que você mencionou, o que é fascinante é o amor deles pela inteligência e pelo pensamento. Mas também a maneira como eles se lêem ou não se lêem, como, por exemplo, Deleuze e Derrida, em particular, lêem Lacan corpo a corpo.
J.-A. M.: Sim, Barthes estava mais distante, não se sentia em rivalidade com Lacan, tinha por ele uma verdadeira simpatia, mesmo que Lacan o amedrontasse um pouco. Ele recebia ecos regulares dos Seminários. Você sabia que ele quis, por um tempo, nos anos 1970, analisar-se com Lacan? Ele nunca quis destituir a psicanálise na mente do público como Deleuze ou Foucault o tentaram. Ao mesmo tempo, tanto Foucault quanto Barthes sempre protegeram o Departamento de Psicanálise de Vincennes, isolado na universidade francesa, ao passo que Deleuze e Lyotard se coligaram abertamente contra mim, quando fui o instrumento da retomada do Departamento por Lacan, em 1975. Eles se prestaram ao ridículo de censurá-lo por não ser um universitário e conseguiram ser derrotados em campo aberto durante uma votação do Conselho de Vincennes.
O sexo e o gênero
J.A.M.: Vamos iniciar o programa. Gostaria de levá-lo, num primeiro momento, a retomar sua análise da obra de Judith Butler. Você diz, desde o seu prólogo, que o gênero é “uma nova evidência universal”. Sem dizer a palavra, você procede a uma desconstrução. Você concorda com isso?
M.: Inteiramente.
J.-A. M.: Você quer mostrar como se montou o que você chama de “um aparelho de pensamento que apresenta uma grande unidade”, mas que é, ao mesmo tempo, muito bricolado. O termo bricolagem não tem mais nada de pejorativo, depois que Lévi-Strauss lhe deu sua dignidade. E você certamente conhece o pequeno texto cáustico com que Pontalis, que muito amou Lacan antes de renegá-lo, apresentou o próprio Lacan como um grande fazedor de bricolagens, refinando seu ensino a partir de fragmentos de Freud, de Heidegger, de Jakobson, de Lévi-Strauss, etc.
Quanto ao gender, ninguém entra em acordo sobre o que é. A palavra chega a Lacan vinda de Stoller, embora já tivesse sido empregada, como você notou, em uma tese de 1952 sobre os hermafroditas, por um conhecido John Money, tese que contém as noções de gender role e sexual orientation, a serem distinguidas de sexual preference. Lacan parabeniza Stoller por sua descrição clínica de casos que apresentam transtornos da identidade sexual, enquanto o critica por não os situar no âmbito da psicose. Hoje, se você pronuncia a palavra psicose a esse respeito, há um alvoroço danado, não se discute, processam você nos tribunais e a Amazon se recusa a divulgá-lo, está escrito preto no branco em um comunicado da empresa que foi divulgado o mais tardar na semana passada.
O que caracteriza os autores de gender – gostaria de saber se você concorda com esta ideia, mas creio que sim, pois eu a encontrei expressa em seu livro – é a recusa, a negação, a anulação da oposição masculino/feminino, da diferença sexual. Compreende-se assim por que o transexual é um verdadeiro obstáculo epistemológico para eles, já que ninguém acredita mais na diferença sexual do que um transexual verdadeiro. Obviamente, isso contrasta com o que você chama de “a proliferação, em princípio sem limite, das possibilidades de gênero”, tal como com a fluidez do gênero.
Você explica também que o gender não é o substituto da noção de sexo, que o social não vem substituir o biológico, pois, você o diz, se esse fosse o caso, o gender não modificaria o funcionamento normativo da sociedade e das atribuições identitárias. Gostaria de ouvi-lo comentar essa ideia de que o gender não é o substituto da noção de sexo.
M.: O que o gender gostaria de suscitar é uma espécie de proliferação infinita das possibilidades de gênero, das combinatórias. E o que determina essas possibilidades é a prática sexual. As práticas sexuais são o terreno, o humo onde essa proliferação pode ocorrer.
J.-A. M.: Os gêneros são, inicialmente, as três grandes orientações sexuais: gay, lésbica, bissexual, LGB. A partir daí, os gêneros começam a proliferar, a se subdividir. Em contrapartida, o T faz mancha, pois, com o transexual, não se trata de uma prática sexual e sim de uma mudança de identidade sexual. Mister Bistouri está no horizonte, trata-se de uma eventual transformação do próprio organismo. Ao lado disso, o gênero fluido é bagatela, se assim posso dizer. É por essa razão que os partidários do gender preferem embolar as coisas falando em “transgênero”, ou simplesmente “trans”, e o transexual verdadeiro é então posto de lado como uma espécie de caso limite da categoria.
M.: O que eu gostaria de dizer, de imediato, para responder à sua pergunta é que, na realidade, se o gênero não é sexo, é porque o gênero, uma vez colocado, deve ele mesmo ser des-feito (dé-fait). Do ponto de vista epistemológico, é preciso fazer de modo que a noção de gênero substitua a de sexo e ocupe todo o lugar, mas, assim que esse lugar é ocupado, é preciso des-fazer o gênero. Essa é talvez uma das primeiras dificuldades trazidas pela própria palavra gênero e, sobretudo, o seu uso no discurso.
J.-A. M.: Para tentarmos nos achar nisso, vou dizer-lhe como se poderia ver a coisa. Você me dirá o que pensa disso. O que eles chamam de um gender é frequentemente o que nós chamamos de “modo de gozar”.
M.: Certamente, mas veremos que não é tão simples assim…
J.-A. M.: Como se faz proliferar os gêneros? Dizer a alguém que ele é um fetichista, já não é uma nominação muito ampla? Então, por que não distinguir o fetichista por sapatos de mulher e o fetichista pela calcinha da estudante como dois “gêneros” diferentes? A cada um, seu modo de gozar, Trahit sua quemque voluptas. Tantas maneiras de gozar, tantos gêneros. Pode-se dizer isso do gênero?
É. M.: Sim. Mas, apesar disso, há aqui uma espécie de embrulhada muito difícil de identificar. Na verdade, a teoria do gênero se sente um pouquinho prisioneira da palavra “gênero”: ela a impõe para destruir a noção biológica de sexo e deve, portanto, torná-la uma palavra absolutamente incontornável. Porém, ao mesmo tempo, ela gostaria de largá-la quase que de imediato, porque um mundo “generado (genré)” reproduz uma binaridade insuportável.
J.-A. M.: O gênero tende a reproduzir a binaridade sexual?
É. M.: Sim. Recentemente, fiquei chocado com uma coisa. A prefeitura ecologista de Lyon, acreditando que faria um bem, quis apresentar, no começo de março, um budget “generado” e…
J.-A. M.: O que é um budget “generado”?
É. M.: Ele consiste em distribuir as despesas municipais de maneira igualitátia entre os gêneros. Por exemplo, a construção de uma pista de skate aparece como uma despesa que tende mais para o lado dos meninos, então é preciso fazer algo equivalente para as meninas. Obviamente, o contrassenso é completo. O que a teoria do gênero aspira substituindo o sexo biológico pelo gênero é colocar em evidência que o gênero é uma construção social normatizada e que, portanto, ela é convocada a ser “problemática”, como diz o título de Butler, Problemas de gênero, ou, melhor ainda, a ser desfeita. Desfazer o gênero, diz finalmente Butler.
Portanto, a palavra “gênero” é um significante-mestre, como vimos, mas, como frequentemente ocorre com os significantes-mestres, ela é enganosa. Se posso me permitir uma comparação muito incerta com o que já foi outrora um outro significante-mestre, como o “proletariado” no espaço teórico do marxismo, reencontramos aqui o mesmo tipo de obstáculo: a função final – teleológica e até mesmo escatológica – de um tal conceito é que não há mais proletariado… Contudo, como é que um significante pode ser, a um só tempo, esclarecedor pela clareza que ele introduz, ali onde só há obscuridade, e ser votado a anunciar o desaparecimento daquilo que ele nomeia? Portanto, seu próprio desaparecimento. O conceito de gênero traz clareza ali onde só há obscuridade, visão naturalista e biologizante dos corpos, mas essa clareza que ele difunde ao evidenciar o caráter socialmente construído de nossas identidades de gênero o destina, precisamente, a desaparecer.
J.-A. M.: Enfim, escute, simplifiquemos. A vocação do conceito de gênero é, mesmo assim, se não me engano, apagar o de sexo.
É. M.: Sim.
J.-A. M.: A ambição dos gender é passar do regime do Um fálico e da díade sexual ao múltiplo “generado”. Do limite ao ilimitado. Do fixo ao fluido. Portanto, há, de fato, substituição. É um regime no lugar de um outro. Mas não é um decalque. É tudo exceto um decalque.
É. M.: Exatamente.
J.-A. M.: Por que não dizer que entre sexo e gênero há uma substituição de tipo metafórico, no sentido de Lacan?
É. M.: Poderíamos dizê-lo, mas espero que você especifique.
J.-A. M.: A metáfora, no sentido de Lacan, conota uma mudança de mundo. Quando se trata, por exemplo, da robusta “metáfora paterna” que, para ele, em seus começos, formaliza o Édipo freudiano, passamos, de maneira muito ou até mesmo demasiadamente simples, do mundo imaginário infantil dominado pelo desejo da mãe para a ordem simbólica que é androcêntrica, falocêntrica e patriarcal. De um regime ao outro, muda-se completamente de registro e de coordenadas. Pois bem, chamemos de “metáfora generada” a passagem de um mundo centrado, hierarquizado, fechado e congelado, o da diferença sexual, para o mundo descentrado, estendido, ilimitado e fluido do gender.
M.: Com certeza, desde que funcione o que você entende por metáfora, que haja nela uma “mudança de mundo”, ou seja, acesso a uma simbolização outra.
J.-A. M.: Ao dizer isso, penso no livro mais importante e verdadeiramente crucial de Koyré, Do mundo fechado ao universo infinito. A ideia de cosmos prevaleceu até o surgimento da física de Galileu. Esta desfez o mundo da tradição, ordenado e limitado, ela o infinitizou e transformou em um universo. Choramos em vão pelo mundo aristotélico, renovado por São Tomás de Aquino na Idade Média e também promovido, no século passado, por Sua Santidade Leão XIII, o papa sequestrado das Caves do Vaticano. Claro, temos muitas razões de lamentar termos perdido aquele mundo e de exaltar as virtudes e o conforto do limite, como fazem, por exemplo, os jovens intelectuais católicos tão simpáticos, reunidos na revista Limite. Mas, que se há de fazer, o que não tem remédio remediado está, o discurso da ciência está em marcha desde o século XVI, ele avança inexoravelmente, mesmo que o progresso engendrado por ele não nos diga nada que preste. E sangre o coração dos mortais, se assim posso dizer.
Eu também sei ser romântico.
É uma forma de compreender a ressonância extraordinária dessa aventura de gênero no momento contemporâneo: o gender, apesar, ou melhor, por causa de todas as suas dificuldades conceituais, de todos os seus problemas, paralogismos, gafes, de seu caráter contraditório e inapreensível, presta-se maravilhosamente a todos os usos, é um abridor de latas universal e não se afina mal com o universo infinito de Koyré, assim como com uma sociedade que intima constantemente o Dasein a escolher entre múltiplas “opções”.
É. M.: Exatamente. Somos convocados a esse infinito com uma espécie de entusiasmo ligado aos modos de vida contemporâneos. No entanto, não é evidente que os gender possam sair completamente da oposição…
J.-A. M.: …do masculino e do feminino ?
É. M.: Isso!
J.-A. M.: Disso eu estou persuadido.
É. M.: Porque, para operar a metáfora de que você fala é preciso, sem dúvida, operar a partir de um pensamento do simbólico, onde a ordem simbólica desempenha um papel fundamental suscetível de comportar a possibilidade de uma metáfora. Ora, o gênero não é de modo algum visto como uma construção simbólica, é, como Butler não cessa de o repetir, uma construção social. Voltaremos a isso, porque é crucial. Mas o que se deve notar de imediato é que a oposição do masculino e do feminino retorna, precisamente, retorna um pouco de toda parte e em todas as direções, por exemplo, com a escrita inclusiva, que é um caso típico disso, porque, de certa forma, ela nos obceca com o gênero.
J.-A. M.: A ideia da escrita inclusiva conta com a diferença sexual.
É. M.: É exatamente isso. Este é um exemplo, entre outros, das dificuldades apresentadas pelo conceito de gênero, tal como Butler o elabora. Típico também é aquele exemplo que vimos com o ato falho dos ecologistas de Lyon que, partindo do conceito de gênero, desembocam no exato inverso do infinito, ou seja, em um budget com duas colunas.
J.-A. M.: Seria preciso acompanhar em detalhes por quais vias chegamos à ideia de exorcizar a língua a todo custo e expulsar dela o demônio do patriarcado. Claro, a língua sempre foi, e particularmente na França, uma questão política maior. Mas, de acordo com Racan, Malherbe fez com que Henrique IV se curvasse diante do uso, “tirano das línguas”, diz o provérbio. Nossos pedagogos despertos, woke, sonham em curvar o uso da grafia à lei de seu desejo. Pensamos no Humpty-Dumpty de Alice no País das Maravilhas. Em nome da igualdade de gênero, eles se mostrariam de bom grado bem mais ferozes do que o era o mestre antigo, androcentrado, em nome do pai.
É. M.: Talvez deva ser acrescentado, entre parênteses, que a própria história da “teoria” de gênero é bastante complicada. Seu universalismo de hoje tem, na realidade, como ponto de partida, pequeninos ambientes, muito restritos, que são os ambientes lésbianos, californianos, com frequência SM… É dali que tudo parte e que tudo se constrói. Do ponto de vista histórico, pode-se também levar em conta as incríveis mediações que foram necessárias para passar do minoritário ao planetário.
J.-A. M.: O Cristo, Maomé, segundo a lenda, não procederam de modo diferente.
É. M.: O cristianismo era uma pequena seita de judeus dissidentes que, passando por Roma, consegue…
J.-A. M.: Isso está perfeitamente ilustrado de forma romanesca por Emmanuel Carrère em seu Royaume. Tudo começa sempre com uma enunciação singular. As palavras novas, ou as palavras dotadas de uma significação inédita são, no começo, da natureza do chiste ou do lapso cometido por alguém. Quando a palavra acerta na mosca, ela é adotada e repercutida pelo entorno e, pouco a pouco, vai ganhando a língua, até vir a ser lexicalizada no dicionário. Torna-se uma norma.
É. M.: Essa enunciação é, aqui, o significante “gênero”. Mas há um momento em que, precisamente, para que o movimento tenha acesso ao universal, é preciso que a enunciação se torne mais tímida, se torne sensata, se estabilize, que o significante-mestre surja, que a doutrina se imponha e que a escatologia, em especial, também se torne sensata, a fim de que a Igreja funcione.
J.-A. M.: Acho muito falante o seu exemplo da municipalidade de Lyon, que se pavoneia para estar na moda, e que um leitor do gender, cobra no assunto que nem você, manda de volta aos seus fogões como uma matuta.
É. M.: Sim, eles fazem um contrassenso. Acreditando que estão se saindo bem ao falarem de budget “generado” eles, na verdade, estão apenas reproduzindo as normas heterossexuais, heterocentradas.
J.-A. M.: Em suma, no campo do gênero, sempre se gira por mais gender do que si mesmo.
É. M.: Certamente.
J.-A. M.: E isso culmina nesta guerra geral da qual eu falava. O universo intelectual do gênero me parece hobbesiano, por assim dizer. Como se, uma vez que o Nome do Pai foi retirado, uma vez que o Leviatã foi desatado e disperso, o único laço social que restava era a luta universal até a morte.
Um sociologismo inflexível
É. M.: É hora de chegar a este ponto essencial do pensamento butleriano, a saber, que o gênero é construído socialmente, que é uma construção social. Com Stoller, é em relação ao pai, ao casal parental que o gênero se constrói, ao passo que, com Butler, o substrato da construção do gênero é social. O gênero pertence à socialidade, ao socius.
J.-A. M.: Você precisa me explicar isso muito bem, porque é diferente do gênero como modo de gozar.
É. M.: Completamente. Essa é uma nova dificuldade própria ao conceito de gênero, ou seja, o sociologismo inflexível de Butler. Sua visão é a de um universo socialmente construído sem exterior, sem alternativa, sem escapatória. Nenhum sujeito pode escapar da performatividade social do gênero. É apenas por meio de operações de disfuncionamentos sociais que o gênero se esboroa, pode variar, se revirar.
J.-A. M.: Onde se introduz o social?
É. M.: Ele se introduz simplesmente pelo fato de a identidade de gênero ser produzida socialmente. Ela não tem outra realidade senão a social.
J.-A. M.: E o “modo de gozar” íntimo?
É. M.: A questão do íntimo está fora do sujeito no corpus butleriano. Estamos em um espaço de pensamento que considera obsoleta qualquer referência ao sujeito, à subjetividade. É claro que há uma tensão aqui também. Por um lado, há a proliferação anárquica, talvez muito prazeirosa, das possibilidades de gênero. Este é um ponto de fuga do conceito de gênero. Mas a realidade do gênero não é essa. Sua realidade é que ele é uma produção social.
J.-A. M.: Dê-me um exemplo, para que eu compreenda bem a produção social do gênero.
É. M.: Um exemplo? Butler nunca deixa de falar do problema, da dificuldade em produzir exemplos que formariam o material da teoria de gênero… Mas podemos considerar que a disforia ou a melancolia lesbiana se deve ao domínio social, que é feito de modo a não deixar espaço ao sujeito para forjar essa…
J.-A. M.: Mas, positivamente, é o socius que faz a lésbica?
É. M.: Não, o socius faz mais o heterossexual.
J.-A. M.: Quem faz a lésbica?
É. M.: Um disfuncionamento do socius, da performatividade, quando esta não se realiza. Falhas, fracassos possibilitam a lésbica.
J.-A. M.: A homossexualidade feminina é um falha? Uma teórica lésbica sustentaria que o lesbianismo é uma falha do sistema?
É. M.: Não, não. A questão não deve ser abordada nesses termos e certamente não por meio de uma ontologia do lesbianismo, ou de sua essencialização. Digamos que, se em uma sociedade heteronormatizada existe a possibilidade de desvio, por exemplo, de desvio lesbiano, isso se deve, de certa forma, aos enfraquecimentos ou falhas dos performativos normativos, de seus fracassos.
J.-A. M.: Vamos precisar falar do performativo no sentido butleriano.
É. M.: Existem falhas na performatividade social que se produzem quando esta não consegue produzir um sujeito conforme ao ideal da norma. Esses fracassos, essas fraquezas são de ordem mecânica, má transmissão, fracassos da repetição performativa.
J.-A. M.: Não encontrei isso em seu livro.
É. M.: Citemos a própria Butler: “A injunção a ser de um certo gênero produz necessariamente falhas – produces necessary failures –, uma variedade de configurações incoerentes que, por sua multiplicidade, excedem e desafiam aquela mesma que as faz acontecer”.
J.-A. M.: Hann?
É. M.: Não se trata de determinismo no sentido tradicional, mas de um processo de regras que, em seu excesso de rigidez ou em suas incoerências internas, não podem se reproduzir performativamente sem introduzir variações, falhas, fracassos. Você encontra isso nas páginas 119-123 e 134-137. Portanto, de um lado, há em Butler uma tensão entre o anarquismo eufórico e proliferante das possibilidades de gênero, que é uma desregulamentação do sistema e, do outro, um sociologismo inflexível, imperativo, no qual o gênero é socialmente construído por enunciados performativos. Os elementos de perturbação não estão ligados a desejos individuais, subjetivos ou a imaginários, mas a um descarrilhamento ou disfuncionamento próprio à interação social entre o indivíduo e a comunidade, o meio ambiente, a família, todos os aparelhos sociais nos quais o indivíduo é capturado. Mas em nenhum momento há espaço, digamos, para uma subjetividade brilhante que aspiraria a produzir uma espécie de arlequinada sexual, onde alguém pudesse ser isto ou aquilo, ou isto e aquilo…
J.-A. M.: O queer é banido.
É. M.: O trabalho de Butler se desdobra no espaço de uma “pós-soberania” do sujeito. Com ela, estamos em um puro jogo de interações. É uma leitura pragmática do mundo social. Isso funciona mal porque, de fato, a heteronormatividade é tão rígida que não pode ser repetida de maneira exata. É um pouco como os vírus: eles sofrem incessantes mutações a fim de se reproduzir. Pois bem, o performativo social é disfuncional devido ao que ela chama de fenômenos de iteração – de repetição –, de compulsão iterativa, levados a fracassar, mais ou menos. Mas, para ela, não se trata do fato de que um sujeito se extraia da esfera social – à maneira como Georges Bataille o vislumbra, por exemplo – para ali introduzir “um corpo estranho”, ou uma categoria que exceda essa esfera. É por essa razão que Butler não vislumbra um mundo, nem mesmo uma comunidade que excluísse o falo, pois isso suporia escapar do socius, escapar da esfera e, nessa soberania subjetiva ilusória, de apenas reformular um discurso de poder. Esse ponto de vista vai muito longe. No debate que agitou o movimento lésbico em torno da exclusão, por algumas lésbicas, dos trans MtF, Male to Female, de homens que se tornaram trans, mas não se operaram e que, portanto, reintroduzem o pênis em um mundo que é not penis inclusive, Butler defendeu a possibilidade de uma intrusão do pênis no espaço lesbiano, porque, diz ela, o constrangimento das mulheres ao verem um trans MtF, ou seja, portador de um pênis, penetrar num espaço feminino, não é senão uma fantasia de medo que não corresponde “a nenhuma realidade social”, páginas 501-502. Tudo está dito. De saída, esse “individualismo do gênero” que você…
J.-A. M.: …que eu inventei…
É. M.: …que você inventou, está excluído. No entanto, ocasionalmente ele pode ser exaltado. Isso por razões ideológicas, porque as minorias são obviamente objeto de uma grande aprovação e de uma leitura eufórica. Embora, como pode ser visto a propósito da questão suscitada pela coabitação das lésbicas e dos trans, a posição de radicalidade minoritária lesbiana seja dificilmente defendida. É verdade que isso é em benefício de uma outra minoria, os trans, porém é mais em nome da social reality que é penis inclusive.
J.-A. M.: Portanto, se eu concebesse uma teoria baseada na equação gênero = modo de gozar, eu traria o conceito de gênero para a psicanálise de uma forma a um só tempo honrosa e inédita? Isso poderia me abrir perspectivas.
É. M.: A ideia butleriana é que, na verdade, o indivíduo é isotópico ao socius. Assim, os processos sociais de transgressão – a palavra é forte demais –, de desregulação são internos à própria norma. A desregulação da norma não vem de fora dela, não é o fato de um sujeito todo-poderoso, é coextensivo a ela. A construção social ou os “condicionamentos sociais” e a capacidade de agir, agency, decorrem de uma mesma totalidade. A desregulação da norma é interna à normatividade, pertence ao próprio processo normativo. Abordo isso em vários lugares do livro, no final da primeira parte, no terceiro capítulo da segunda e no epílogo. Nessa visão muito dogmática, Butler se vale de Foucault e, em meu livro, a parte dedicada a Foucault é a oportunidade de me debruçar sobre esse imanentismo da norma e essa positividade ou produtividade da norma. Voltaremos a isso um pouco mais adiante, sem dúvida. Seja como for, para ela, a norma não se situa diante de uma liberdade individual que viria para combatê-la. Portanto, é um mundo sem…
J.-A. M.: …sem liberdade?
É. M.: Sim. Ela é muito clara a esse respeito. Ela se opõe muito claramente a Sartre e ao existencialismo. Para ela, erigir-se como um sujeito global que pretende combater a norma não faz senão desdobrar o que ela chama de “estratégias imperialistas”, das quais é preciso, ao contrário, subtrair-se: aquelas em que o “sujeito” reproduz ilusoriamente os próprios esquemas da dominação dos quais ele é, de fato, apenas o espelho.
J.-A. M.: Pode-se dizer que Butler tem de lidar com um Grande Outro absoluto, o Outro das Normas, o Outro normalizado e normalizador, no qual o sujeito é veiculado como…
É. M.: Não, porque um Grande Outro suporia que há uma transcendência, que há uma diferença entre o indivíduo e o mundo, ao passo que, entre eles, há uma total identidade.
J.-A. M.: É um Outro, mas não transcendente.
É. M.: Por que chamá-lo de Outro se ele não é transcendente?
J.-A. M.: Mais uma elucubração minha: isso não é um pouquinho espinozista? Não poderíamos recodificar o butlerismo em espinozismo?
É. M.: Este é realmente o termo com que algumas pessoas apelidam Butler.
J.-A. M.: Ah é? Acertei em cheio?
É. M.: Pessoalmente, devo dizer que não compactuo com essa leitura.
J.-A. M.: Sim, mas você descreve o universo butleriano como uma espécie de inferno, com portas fechadas, regido por uma necessidade imanente absoluta, mas, à diferença de Spinoza, sem porta de saída, sem salvação pela fé ou pelo conhecimento e o amor a Deus.
É. M.: Não, não é de forma alguma um inferno, é um mundo que, ao lado dos traumas que inflige aos indivíduos, é também, como globalidade interativa, o palco onde a potência de agir do sujeito pode se desdobrar, the scene for the agency of the subject. Prossigamos e observemos que o que é produtor de traumas, a saber, a foraclusão, foreclosure, termo emprestado da teoria da psicose, de Lacan, e desviado por Butler, é simultaneamente o que torna possível a potência de agir. Isso está nas páginas 69-73.
J.-A. M.: Sim, você tem razão, ela tem de lidar com um Outro que fala e que comanda. Não é de forma alguma o Deus de Spinoza que, ele, cala. Seu Outro seria mais um Superego, este superego americano que não diz “Goza!”, mas sim Enjoy! Enjoy Coca-Cola!, e que Lacan dizia ter visto de sua janela, pela madrugada, em Baltimore, em 1966.
É. M.: Não há sujeito em Butler, mesmo que a palavra possa ser usada aqui e ali por comodidade. Há simplesmente interações entre os indivíduos e o espaço social.
J.-A. M.: O que é um indivíduo, no sentido de Butler?
É. M.: É você, sou eu, é tudo.
J.-A. M.: É raso.
É. M.: Não acho que ela tenha uma definição teórica de indivíduo. Aliás, ela nem sequer emprega a palavra “indivíduo”.
J.-A. M.: E qual é a palavra que ela emprega?
É. M.: O surpreendente é que ela nunca se refere a estudos estatísticos ou sociológicos que provariam por a + b que somos fabricados socialmente por imperativos que produzem nosso gênero. Isso é afirmado, mas não há validação.
J.-A. M.: Em ninguém? Em nenhum autor do gender?
É. M.: Não li tudo. Mas, em Butler, não há.
J.-A. M.: Ela afirma, mas não demonstra nada?
É. M.: Sim. Fico impressionado com ela pela ausência de exemplos, ao passo que os grandes teóricos franceses têm um gosto pelo exemplo construído, como o maravilhoso “Tu és um ladrão”, de Sartre, ou a interpelação em Althusser. Não são amostras, pesquisas feitas no local, mas exemplos forjados de maneira alegórica.
J.-A. M.: E ela também não se baseia em observações clínicas.
É. M.: Exatamente.
J.-A. M.: Ela desenvolve uma clínica especulativa, que é imaginativa, mas um pouco gratuita, para dizê-lo delicadamente. Sua invenção do falo lésbico é muito camp, no sentido de Susan Sontag. Isso não é clínica.
É. M.: Pois é. Para resumir o ponto de vista de Butler da maneira mais clara possível, citarei esta frase de Humain, inhumain: “Os condicionamentos sociais são as condições mesmas da potência de agir”.
J.-A. M.: Escute, é bizarro o quanto isso soa spinozista.
É. M.: Sim, mas não gosto de dizer isso. Se o gênero é um condicionamento social ao mesmo tempo em que é possibilidade de agir, isso poderia lembrar as grandes reflexões dos marxistas pós-stalinistas sobre a liberdade, na época em que era preciso refutar Sartre e suas proposições sobre o engajamento. Questionava-se seriamente para saber se o homem é livre ou determinado pelas infraestruturas. E se respondia recusando esse questionamento como sendo sustentado por um pressuposto dualista. Dizia-se, então: se não há oposição entre as determinações sociais e a liberdade, é porque, na realidade, elas constituem uma mesma totalidade. Pois bem, a resposta de Butler para a questão da liberdade é a mesma, e é por isso que a palavra liberdade se torna uma palavra inútil e que, na lógica do pragmatismo social, que é a dela, ela prefere falar de agency, que se pode traduzir como potência de agir, encapacitação, agencidade, agentividade, visto que o termo é basicamente intraduzível.
Estamos longe dessa imagem muitas vezes lisonjeira do gender baseada nos equívocos do queer dos anos anteriores, muito libertárias, muito urbanas, muito nova-iorquinas, muito elitistas, simbolizadas pelo Warhol que coloquei na capa do meu livro e que Butler ignora, nunca cita: demasiado esteta, demasiado dândi, demasiado perverso…
J.-A. M.: É o que você chama de seu puritanismo.
É. M.: Disso decorre seu puritanismo, é claro. O que também não deve surpreender, é ver que esse vocabulário sugido do pragmatismo ou do behaviorismo é, na verdade, aquele dos adeptos da gestão neoliberal, em que a empresa é esse espaço interativo no qual os “agentes” são pegos nos processos de gestão. Foi Butler quem introduziu no discurso LGBT termos que ali não estavam presentes antes dela, como empowerment, agency e outros, todos decorrentes do discurso empresarial de interação.
J.-A. M.: Quem são esses teóricos da gestão? Eu lhe pergunto para me instruir.
É. M.: Não há teóricos ou há mil deles, não são teóricos, são praticantes, aqueles dos slogans das Business schools: Empower your career now!
J.-A. M.: Judith Butler se refere a autores que tratam de gestão?
É. M.: Não, de jeito nenhum. É a língua que fala sozinha, poder-se-ia dizer: o anglo-americano. Mas notemos, mesmo assim, uma grande porosidade entre certas porções do discurso LGBT e a ideosfera neoliberal. Recentemente, fiquei impressionado com a leitura de um longo texto que foi publicado no Lundimatin sobre a questão trans que, de fato, poderia ser questionado como uma leitura neoliberal do fenômeno LGBT, do self-making e do indivíduo como “empreendedor de si”. Essa questão do neoliberalismo que, em minha opinião, é muito mal formulada, deveria ser retomada também com base no que escrevo nas páginas 419-432 sobre Foucault e sua relação com o neoliberalismo. Mas precisaríamos ir ainda mais longe e lembrar das acusações de neoliberalismo dirigidas a Deleuze por ocasião da publicação de O Anti-Édipo. É por isso que minha análise “ideológica” de Butler não tem nada de um processo, mas, antes, de uma fascinação pela impregnação ideológica que a “teoria” pode veicular de maneira geral. O que é fascinante, então, é a ambiguidade contida no inglês ou no anglo-americano de Butler. Se considerarmos um termo como care, cuidado, ele pode ser utilizado tanto por pessoas radicalizadas quanto pelo Exército da Salvação ou…
J.-A. M.: …ou entre nós por uma Martine Aubry.
É. M.: …ou por alguém da direita. Noções e palavras como empowerment ou agency são utilizadas também pelas minorias, para explicar como um Black deve recuperar sua dignidade encontrando sua potência de agir, assim como por empresas nas quais um funcionário deve, ele também, recuperar sua potência de agir, por grandes instituições internacionais para dizerem que um tal país em falência do terceiro mundo também deve recuperar seu empowerment. É por essa razão que o inglês é onipresente em meu livro, é a condição para tornar sensível na própria língua a pressão ideológica que nela se ativa.
J.-A. M.: Você está tentando extrair os lineamentos da “ideologia americana” em Butler?
É. M.: Quando Adorno analisa o funcionamento da psicanálise nos Estados Unidos, em 1946, ele nota que há, na maneira como os psicanalistas lidam com o sofrimento psíquico, alguma coisa que vai em direção do self-making, do indivíduo como “empreendimento de si”. Ele mostra que, nessa psicanálise revisada, a ideia de tratamento psicanalítico substitui os grandes fenômenos estruturais como o Édipo e a castração por “traumas sociais”, exatamente como Butler o faz. Ele decifra, nessa aspiração a otimizar uma posição do indivíduo em que todas as suas “aptidões sejam plenamente utilizáveis”, o mito capitalista do “pleno emprego”, do dinamismo social, que se pode reencontrar de um ponto de vista adorniano no empowerment butleriano. Encontro isso em Butler quando, por exemplo, ela fala dos travestis.
J.-A. M.: Sim, há toda uma passagem do livro sobre o travesti latino, negro, etc.
É. M.: É uma passagem importante porque nela se vê o quanto Butler é múltipla. Esses travestis, que são pessoas muito pobres dos subúrbios US, surgidos das minorias “raciais”, aparecem em um filme de Jennie Livingston com quem Butler se identifica muito por serem ambas judias, lésbicas etc., intitulado Paris is Burning. Ela vê na lésbica filmando os travestis um personagem completamente fantasmático, suscetível de metamorfosear esses travestis em mulheres por meio de sua câmera, que seria o suporte do que Butler chama de o falo lésbico.
J.-A. M.: Precisaremos voltar a falar disso.
É. M.: É absolutamente inacreditável. Mas, como ocorre frequentemente, depois de ela desenvolver essa visão alucinada, pois bem, ela retorna ao social que é seu verdadeiro terreno. Por fim, tudo o que está em jogo em sua leitura desses pequenos travestis latinos, negros etc., é precisamente a socialização deles. Ela gostaria que eles tivessem acesso a formas socializadas de empowerment, de agency e que constituíssem uma comunidade social estruturante. Ela repele a fetichização dos corpos à qual foi capaz de ceder em uma espécie de sequência alucinatória, decorrente do que ela julga ser uma simples lógica de fascinação, e retorna a uma posição pragmática, ao imperativo de que essas minorias de gênero, de raça e de posição social, tenham acesso a formas sociais de agency, de empowerment e de enabling, “encapacitação”.
J.-A. M.: Quem os capacita a fazer o quê, exatamente?
É. M.: Essas noções de encapacitação, de empowerment e de agency nunca têm conteúdos próprios, conteúdos subjetivos, nunca há explicação. É a potência de agir, ponto final: é a fluidez, a interatividade, o movimento. É nesse aspecto que estamos, de fato, no pragmatismo puro, nos fenômenos estritamente dinâmicos de potência, de interação e de modo algum nos imaginários individuais do sujeito. Para ela, isso não tem pertinência.
Tudo isso aparece em seu segundo livro, Corpos que importam, um livro interessante por ser muito compósito. A parte dedicada aos travestis é muito reveladora do funcionamento de Butler, é ali que ela é mais complexa. De um lado, ela encontra nesses travestis, por meio do lesbianismo, um espaço fantasmático. Ela experimenta uma espécie de desapego subjetivo, no qual há uma forma de delírio alucinatório. Ela acredita observar no travesti do filme um processo de metamorfose, estranhamente descrito por ela com um vocabulário místico cristão, como a transubstanciação, a sagração, a unção, depois de ter posto sobre o tapete o judaísmo e o lesbianismo que ela diz compartilhar com a cineasta Jennie Livingston. Do outro, ela retorna ao seu discurso comum, o da sociabilidade pura e do pragmatismo. Portanto, a noção de gênero parece, de um lado, caminhar para a proliferação, para uma ampliação quase infinita do espectro dos gêneros; do outro, ela é, ao mesmo tempo, extraordinariamente restringida pelo socius.
J.-A. M.: Restringida pelos estereótipos?
É. M.: Pelos estereótipos sociais, pela performatividade social, pela sociabilidade da qual a noção de gender é inseparável. Essa é toda a ambiguidade de Butler. Por um lado, ela parece fazer do gênero um elemento de libertação, mas, na realidade, não, é uma visão extraordinariamente…
J.-A. M.: …opressora, opressiva…
É. M.: …do processo de gênero. Mas a palavra “opressiva” não é a boa, é estranha à pragmática. Ou melhor, é demasiado parcial.
J.-A. M.: Pois bem, eu o parabenizo por ter desembrenhado esse discurso luxuriante e por tê-lo reconduzido a uma antinomia definitivamente bastante elementar: uma rotina social draconiana emitindo estereótipos de gênero, versus escapadas erótico-fantasmático-fantásticas, originais e barrocas. Paramos por um tempinho?
É. M.: Sim, Podemos parar.
J.-A. M.: Você deu muito de si. Eu lhe agradeço. Isso completa o livro.
É. M.: Você me impele a isso. O filme de Livingston se chama Paris is Burning, ele aborda os bailes de travestis e as competições de baile. É um filme absolutamente apaixonante.
(Pausa)
Depois do gênero
J.-A. M.: Foi bastante exaustivo, parece-me, o trabalho que você fez sobre Judith Butler.
É. M.: Sim, mas ainda está faltando o ultimíssimo Butler. Ela se tornou uma star. Existe agora um discurso butleriano forçosamente mais pessoal, menos dependente do ativismo de território ao qual ela estava muito ligada.
J.-A. M.: Isso modifica suas concepções?
É. M.: Modifica, sim. Sua posição como ícone necessariamente modifica seu discurso. Mas, se quisermos concluir sobre essas questões, poderíamos talvez dizer que o outro problema apresentado pela palavra gender é o seu quase abandono pela própria Butler ou, em todo caso, a dificuldade dela em fazer do gender um conceito que construa uma doutrina de longo prazo. Rapidamente, ela começou a se arrepender de ter dado um lugar central ao conceito de gênero e de tê-lo posto como predominante em relação a outras categorias, tais como: a raça, as posições geopolíticas – alusões aos migrantes –, as questões sociais. Encontramos a mesma tentação de abandonar a palavra queer, considerada demasiado comunitarista, demasiado singularizante, não inclusiva o suficiente, especialmente em relação às comunidades não brancas.
J.-A. M.: Pode-se então dizer que, depois dessa época, por volta de 2004, a teoria do gênero se desenvolveu independentemente de Butler?
É. M.: Isso é muito complicado. Não poderei responder a essa pergunta. Tome, por exemplo, aquele/aquela que foi seu/sua principal leitor/leitora na França, que se chama Sam/Marie-Hélène Bourcier. Ele/Ela considera que há duas Butler. A primeira é a gender, queer, subversiva, etc. A outra, notadamente a de Desfazendo o gênero, 2004, a “segunda Butler” é a do disempowerment, ela renuncia à potência e à autonomia do conceito de gênero, o qual…
J.-A. M.: …o qual corre mundo afora independentemente dela, a partir de então, como um Frankenstein?
É. M.: Sim, mas, de saída, com um quiprocó muito profundo. De fato, o gênero se impõe no mundo, ao mesmo tempo em que ela o relativiza, dá a ele um lugar menos importante. Portanto, o último limite do conceito de gênero, e que talvez seja o primeiro, é a autolimitação na qual Butler o colocou muito rapidamente, não vinte anos depois, mas muito rápido. Problemas de gênero foi publicado em 1990, Corpos que importam em 1993, e aí já começam os recuos sobre a centralidade do gênero. E pode-se pensar que, antes, já havia, por parte de Butler, uma inquietação com a autonomia conceitual do gênero, pois essa não é sustentável no interior da concepção sociologizante que é a sua. Parece-me que o problema não decorre de uma evolução, mas que ele ali está desde o início. Ao ancorar a questão do gênero a uma pura pragmática social, não somos levados a dissolver a questão do gênero no “social”? E, portanto, a perder o gênero naquilo que ele poderia ter de singular?
J.-A. M.: Aprendi, ao ler você, que ela explica em quê o gênero deve ceder a primazia à raça. O gênero desalojou o sexo, a raça deve desalojar o gênero. Deve-se passar do “generismo (genrisme)” ao decolonialismo. Chega-se, assim, a este wokism tão em voga hoje.
É. M.: É isso. Para Butler, a oposição originária não é mais entre homem e mulher, como o feminismo clássico postulara, mas entre as raças. Isso é muito contestável politicamente, mas, de um outro ponto de vista, não é totalmente desinteressante, pois nos incita a historicizar, de um ponto de vista antropológico, a questão da diferença homem/mulher. É assim que Barthes, em seu pensamento do Neutro, mostra que a oposição masculino/feminino não é a primeira nas línguas indo-europeias. A primeira oposição crucial é animado/inanimado. É apenas nas línguas que sucedem às línguas primitivas indo-europeias que a oposição homem/mulher ganha a precedência sobre a oposição animado/inanimado. E isto quer dizer o quê? A oposição masculino/feminino é certamente real. A humanidade não pôde escapar dessa diferença, mas, através da evolução das línguas, pode-se hipotetizar que outras diferenças puderam ser simbolizadas anteriormente.
Quando Butler diz: “Não é a oposição masculino/feminino que é a primeira, mas a oposição das raças”, para mim, isso é totalmente insustentável. A oposição das raças é, ao contrário, muito tardia e extremamente heterogênea, instável, reversível. Mas o que se pode reter de positivo nessa ideia é que, de fato – e aqui eu subscrevo totalmente essa posição –, a oposição masculino/feminino é simbolicamente histórica, simboliza-se na história. É isso.
J.-A. M.: Onde isso está no livro?
É. M.: Eu vou encontrar para você. Páginas 298-300. É a partir do inanimado que Barthes pensará o Neutro. O inanimado será precisamente o suporte do Neutro.
J.-A. M.: Isso me escapou. De fato, você escreve na página 299: “Seu Neutro abala o paradigma sexual em um nível inesperado, não de maneira comum desregulando a relação masculino/feminino, mas anulando-a. Barthes dá à categoria do inanimado um lugar inteiramente extraordinário, um ponto originário que ele busca compreender e cuja estrutura ele encontra nas formas mais primitivas da língua, o indo-europeu” etc. Você diz que Barthes, aqui, segue Meillet, e você remete a um artigo de Barthes de 1970, intitulado “Masculino, feminino, neutro”.
É. M.: Não sei se isso é exato no plano filológico, mas é interessante.
J.-A. M.: Sim, precisaríamos saber se é exato, mas é sugestivo.
É. M.: Muito sugestivo pensar que há uma história antropológica da emergência das estruturas simbólicas do masculino e do feminino. Cabe notar, no entanto, que essa proposição de Barthes aparece em um artigo que orienta claramente a questão sexual em uma perspectiva que nos aproxima de um questionamento dominado pela ideia de gênero.
J.-A. M.: Vou lhe dizer o que compreendi sobre o nascimento do gênero, lendo você, mas que você desfez falando como você o falou. Eu havia compreendido algo muito simples fundamentado em sua análise do “Tu és um ladrão”, no Saint Genet, de Sartre. Genet, vendo-se designado como ladrão por esse enunciado, retoma a designação por conta própria: “Eu serei, eu sou um ladrão”. Para Butler, isso significa, você diz, que o ostracizado inverte o valor do enunciado, “processo de ressignificação” que lhe permite recuperar “um poder constituinte”. É muito próximo, como você o assinala, do princípio paradoxal de Lacan da “mensagem emitida pelo receptor de uma forma invertida” em benefício do locutor. Lacan não o formulou ele mesmo, mas o colheu dos lábios de Benveniste, a quem ele explicava a coisa, em conformidade com o que o próprio princípio enuncia. Achei, portanto, que o que você chama de uma “reversão subversiva dos insultos” estava, para Butler, no fundamento mesmo da atribuição do gender. Então, diga-me em quê eu me enganei.
É. M.: Você se enganou porque, com Butler, o cenário que você descreveu é um cenário sem sujeito, sem nenhuma interlocução subjetiva à diferença do Genet de Sartre. Em seu esquema, há simplesmente injunções, injunctions, por exemplo: “Tu deves ser uma boa mãe”, “Tu deves ser um objeto desejável”, que podem também passar pelo insulto: “Negro”, “Pedê”, etc.
J.-A. M.: Temos de lidar menos com atribuições do que com injunções e essas nos são marteladas pela sociedade. É isso?
É. M.: É isso. Estamos no behaviorismo. Há injunções como “Beba Coca-Cola!”, injunção a fazer, a ser, que funciona por meio de processos de repetição.
J.-A. M.: Pela sugestão.
É. M.: Pela sugestão. E não há de modo algum em Butler um processo do tipo daquele descrito por Sartre, um processo de construção subjetiva por meio de uma fala internalizada. Na cena descrita por Sartre, ninguém, de fato, diz ao pequeno Genet: “Tu és um ladrão”. A voz que enuncia essa frase vertiginosa vem do próprio Genet, não da sociedade. Em Butler, a sociedade diz coisas muito mais banais, mais comuns, que não têm o esplendor, a beleza extraordinária da frase “Tu és um ladrão”. Butler é contra a ideia de sujeito, contra a ideia de montagem subjetiva, porque, para ela, o eu (Je) não pré-existe ao indivíduo.
J.-A. M.: O sujeito lacaniano não é um sujeito que “pré-existe”. Ele é o “efeito do significante”. O significante precede o sujeito.
É. M.: Eu vou até o fim de nossa discussão. Num primeiro tempo, a ressignificação, ou seja, o retorno do insulto sob a forma de uma reivindicação parece aparentar-se com o exemplo do “Tu és um ladrão”. Mas, de fato, esse não é o caso, pois não há esse jogo incrível que Sartre traz à luz entre o “Tu”, do “Tu és um ladrão”, e o “eu (Je)” que assume essa fala. A diferença vai ainda mais longe, pois Butler, em sua lógica, não pode, como Sartre, fazer da significação um ato fundador, a founding act: não há senão processos iterativos que são bem-sucedidos ou que fracassam. Se dermos à significação uma função autônoma, o universo da pragmática social desmorona.
J.-A. M.: Então, num primeiro tempo, ela aceita, sob o nome de “ressignificação”, a noção de mensagem invertida.
É. M.: Sim. No início há, de fato, a mensagem invertida, o insulto se torna uma bandeira e queer, ao invés de ser um insulto, torna-se uma causa, um significante reivindicado. Mas tudo isso acontece a partir de uma interação entre o indivíduo e o social e não no espaço subjetivo, onde o Outro faz o sujeito ouvir sua própria mensagem de forma invertida como com o “Tu és um ladrão”. Invertido, aqui, no sentido de que, como em um espelho, o Tu é a forma invertida do Eu (Je). Aliás, como já foi dito e como deve ser dito novamente, pois é a consequência mesma do pragmatismo social de Butler, ela, muito rapidamente, depois de ter sido um dos porta-vozes desse tipo de ativismo, o põe de lado desde seu segundo livro, Corpos que importam; é levada a renunciar a palavra queer e, portanto, a tudo o que está ligado a essa palavra devido às “exclusões pelas quais ela é mobilizada”, the exclusions by which it is mobilized, páginas 119-137.
J.-A. M.: O que pode ter me extraviado é que você diz na página 124: “O ato que Sartre atribui a Genet constitui um modelo de ressignificação”. Você também diz: “Há estranhas semelhanças entre a análise de Butler e as páginas de Saint Genet. Tudo se passa como se Butler conhecesse perfeitamente a lenda de Saint Genet e só afastasse a lição existencialista para melhor retomar sua axiomática”. Acreditei ter encontrado aí minhas balizas e que Butler havia recorrido a uma “axiomática”, digamos, sartro-lacaniana. Agora, você me explica que não.
É. M.: Digamos que, nessas páginas de Problemas de gênero, Butler faz uma curiosa operação, a de rejeitar Sartre ao mesmo tempo em que lhe toma emprestado muitos elementos como, por exemplo, a retomada de uma mesma citação de Kafka, as mesmas alusões aos escravos negros etc. Em suma, ela retoma os materiais sartrianos, mas deslocando completamente seu valor. A cena magnífica, tão sutil, tão inventiva – quase um romance –, em que a criança Genet ouve “Tu és um ladrão”, cena construída por Sartre, torna-se, sob a escrita de Butler, um exercício um tanto behaviorista, uma injunção social desferindo violentos golpes de performativos nos indivíduos.
J.-A. M. : O que quer dizer “desferindo golpes de performativos”? As injunções butlerianas são performativos, agora?
É. M.: No sistema butleriano toda mensagem vinda da sociedade é performativa.
J.-A. M.: Vai ser preciso retomar essa questão em detalhes, para que aqueles que leram Austin recobrem suas apostas. O uso feito por ela do termo performativo é bastante distorcido em comparação com seu uso ortodoxo.
É. M.: Totalmente. É a ideia de que não há mensagem neutra na sociedade, todas expressam uma visão normativa e constroem os gêneros.
J.-A. M.: É uma opressão?
É. M.: Butler não está numa relação de negatividade com a sociedade. Para ela, a sociedade é algo muito bom. Não é um Leviatã. Ela vê ali as interações sociais que definem a realidade humana. A realidade humana é estar em um sistema onde se é interagido, produzido, performado.
J.-A. M.: É um mundo, diria o outro, sem Dasein.
É. M.: Sim, sem Dasein.
J.-A. M.: Visto que Butler é judia, isso apoiaria a tese recentemente descoberta nos Cahiers noirs, de Heidegger: a de que os judeus não têm Dasein. Já sei, estou fazendo uma piada de mau gosto. Você nos conduz até Desfazendo o gênero, Undoing the Gender, 2004. O que ela fez depois disso, em que direção sua reflexão se desenvolveu?
É. M.: Como disse há pouco, ela se tornou uma vedete, seu disurso ganhou uma dimensão mais pessoal. Ela é muito ativa no plano intelectual, político. Recebeu o Prêmio Adorno em 2012. Na ocasião, ela pronunciou uma conferência sobre “a vida boa”, que incide no discurso do care.
J.-A. M.: Pincei uma citação dessa conferência em seu livro: “Se devo viver uma vida boa, será uma vida boa vivida com os outros, uma vida que não seria uma vida sem os outros”. É, diz você, “lenificante”.
É. M.: Principalmente quando é dito por ocasião do Prêmio Adorno, que é suposto homenagear Adorno. Adorno, ao ouvir isso, teria ficado transtornado.
J.-A. M.: Se bem entendi, com uma das mãos ela desfia proposições muito aparvoadas, muito arranjadas. Com a outra, mantém sua conexão com os gender studies, fica à espreita quanto à vida universitária, continua sendo a madona da disciplina. Por fim, com seu terceiro olho, ela acompanha a atualidade do combate das minorias e, de vez em quando, mergulha ali um dedão do pé.
É. M.: Disso resulta o fato de ela não ter deixado a efervecência trans acontecer sem contribuir com uma espécie de acordo, que permaneceu, apesar de tudo, muito superficial. Butler tem um lado centrista. Ela está sempre no centro.
J.-A. M.: Ela está do lado de Chomsky em relação a muitos pontos de política geral, e ele não é exatamente um centrista.
É. M.: Depende. À esquerda de Butler, há coisas muito mais radicais do que ela.
J.-A. M.: Então, qualquer dia destes ela receberá a Medal of Freedom, de Biden? Ela terá um papel de destaque durante a nova administração?
É. M.: Por que não?
J.-A. M.: Você a apresenta como uma grande calculadora. É uma schemer?
É. M.: Não, porque há nela uma forma de generosidade. Nenhuma ingenuidade, a palavra passaria por condescendente, mas uma ausência de astúcia. Não há nada de perverso nela. Há honestidade intelectual e a preocupação com o bem comum.
J.-A. M.: Você faz um retrato dela contrastado, indecidível ou indecidido por você.
É. M.: Sim, você tem toda razão. Mas também cabe dizer que ela é a única mulher entre os protagonistas de meu livro e é muito menos astuta e ardilosa do que os protagonistas masculinos, os Deleuze, os Barthes, os Derrida. Ela mostra todas as suas cartas. Ela não se faz tola quanto ao mito da French theory. Ela não engana ninguém. Basta lê-la. Ela disse muito bem que isso é uma ficção puramente americana.
J.-A. M.: A propósito, quem divulgou isso? É uma construção coletiva?
É. M.: Os americanos. Mas Derrida foi um pouquinho cúmplice disso. Em Derrida, sim, havia uma forma de astúcia. Em seu livro de diálogos com sua amiga Roudinesco, ela o critica precisamente por ser demasiado conciliador com a violência do politicamente correto nas universidades americanas. Acredito que a French theory também foi muito apoiada pelos próprios franceses, que não fizeram grande coisa para destruir o mito. E tudo isso não se constituiu nos departamentos de filosofia das universidades americanas, mas nos de línguas e de literatura.
J.-A. M.: Você evoca o politicamente correto. Em minha opinião, ele não procede de Derrida, mas sim de Barthes e de seu enunciado memorável: A língua é fascista. Lembro-me muito bem de ter ouvido essa frase de sua boca, foi durante sua aula inaugural no College de France, em janeiro de 1977. Lacan foi convidado, eu também, estávamos sentados lado a lado. Quando Barthes soltou essa frase, nos olhamos um ao outro, os olhos no céu, constrangidos de tê-lo ouvido proferir uma enormidade. Lacan havia desenvolvido seu conceito de significante-mestre, Foucault, por sua vez, havia dissertado sobre o “saber-poder”, mas traduzir tudo isso por uma expressão tão rude, tão demagógica, foi realmente a única vez – e eu o conhecia há anos, desde meus 18 anos –, a única vez que encontrei Barthes… como dizer?…, abaixo dele mesmo.
É. M.: Essa seria uma outra discussão. Não sei se podemos associar essa frase ao politicamente correto. Para Barthes, é o caráter assertivo da língua que era insuportável.
Paramos por aqui? Qual é a programação para a próxima semana?
J.-A. M.: Continuamos mais um pouco ainda sobre o gênero, talvez?
É. M.: Já dissemos um bocado de coisas.
J.-A. M.: Eu lhe faço uma pequena conclusão sobre Butler?
É. M.: Eu lhe respondo e, depois, passamos a outra coisa.
J.-A. M.: Sim, passamos ao “pensamento do Neutro”, que você propõe face à teoria de gênero, portanto, passamos a Barthes, que foi o único a ter nomeado esse Neutro.
É. M.: De acordo. Mas, ainda sim, seria bom articulá-lo também a Derrida e a Deleuze.
J.-A. M.: Continuaremos com Barthes, Deleuze, Derrida. Foucault é um outro capítulo, uma outra história.
É. M.: Com certeza.
J.-A. M.: Falei com Ewald. Ele vai lê-lo. Está pronto para se juntar a nós através do Zoom, quando chegarmos a Foucault. Bem, nos divertimos muito. Eu aprendi muitas coisas. Você terá a transcrição e poderá corrigir todas as eventuais bobagens que você disse e eu também.
É. M.: Não apenas as bobagens, mas também proposições um pouquinho…
J.-A. M.: Você vai ajustar algumas coisas e melhorar a expressão, mas não muito.
É. M.: Essa é a lei do gênero.
Continua