Por Alberto Murta
Como testemunhar, mediante estas páginas que se seguem, a atualidade deste texto freudiano: Além do princípio de prazer? Neste ano, estamos comemorando o centenário desse texto no qual aparece o coroamento da abordagem de Freud sobre as pulsões. É sabido que o fundador da Psicanálise sempre se serviu de um dualismo irredutível para explicitar o conflito pulsional. Agora, especificamente em Além do princípio de prazer, temos: pulsão de vida versus pulsão de morte. Toda a construção de Freud se insere, nesse momento do seu texto, nestes termos: “Nossa concepção foi, desde o início, dualista, e hoje ela o é mais rigorosamente do que antes, depois que nomeamos os opostos não mais de pulsões do Eu e pulsões sexuais, mas de pulsões de vida e pulsões de morte”[1]. Como ler este dualismo pulsional nos dias de hoje? Qual é o estatuto da compulsão à repetição infiltrado nesse dualismo?
Impressiona que Freud, em Além do princípio de prazer, já desenvolve a compulsão à repetição como efetivamente existindo e decidindo o destino dos seres humanos. Com ele, aprendemos que essa compulsão remete às experiências do passado que não comportam nenhuma possibilidade de prazer. Surge aí um além em que a pulsão de morte se consolida. A compulsão à repetição é atrelada a uma fixação psíquica no trauma. Essas considerações freudianas podem ser testemunhadas na compulsão à repetição que emerge nos sonhos da neurose traumática. Portanto, o apoio que tomo sobre o Além do princípio de prazer orienta minha investigação ora em curso.
Assim, na citação que se segue, emerge o exame de um material clínico em que a regulação dos processos psíquicos pelo princípio do prazer é eminentemente criticada. Freud aborda a formação onírica pela neurose traumática, propiciando-nos isolar uma marca inerente ao trauma. Nesta citação, uso tanto a versão brasileira quanto a alemã.
Pensamos que uma evidência da força da impressão que a experiência traumática deixou seria justamente o fato de ela impor-se ao doente sem cessar, até mesmo no sono. O doente estaria, por assim dizer, psiquicamente fixado no trauma. Essas fixações na vivência que desencadeou o adoecimento (…).[2]
Man meint, es sei eben ein Beweis für die Stärke des Eindruckes, den das traumatische Erlebnis gemacht hat, daß es sich dem Kranken, sogar im Schlaf immer wieder aufdrängt. Der Kranke sei an das Trauma sozusagen psychisch fixiert. Solche Fixierungen an das Erlebnis, welches die Erkrankung ausgelöst hat, (…).[3]
Destaco, na versão alemã, os seguintes termos: die Stärke des Eindruckes[4]. Com essas palavras, Freud explica o produto do trauma como die Stärke des Eindruckes. Na versão brasileira temos a seguinte tradução para die Stärke des Eindruckes: força da impressão.
Parece-me que ocorre uma homofonia neste termo alemão, Eindruck. Ressoa nele uma outra palavra que pode ser lida como uma marca. Se exploro essa ressonância é na medida em que o termo Eindruck mudou de sentido. Sendo assim, Há-um em Eindruck. Ora, podemos ler esta uma marca como inerente ao próprio corpo? Quero sustentar que sim, já que o trauma a produz e repete sem cessar. Isolo também, com Freud, que essa marca se impõe “ao doente sem cessar”[5]. Portanto, nessa perspectiva aberta, o acontecimento traumático faz marca no corpo.
Em outros momentos do Além do princípio de prazer, podemos isolar algumas passagens que evidenciam a infiltração da pulsão de morte na compulsão à repetição manifestada durante o tratamento. Freud diz: “No caso do analisando, (…) fica claro que a compulsão em repetir na transferência os acontecimentos do período infantil de sua vida ultrapassa o princípio de prazer de todas as maneiras”[6]. É preciso perceber, nessa passagem, a transformação surpreendente operada por ele sobre a pulsão de morte. Ela, a pulsão de morte, passa a ser operante em alguns fenômenos clínicos ligados à compulsão à repetição e que repercutem no além do princípio de prazer.
Freud, em sua especulação extrema, faz valer uma repetição na psicanálise que não se enquadra em um tipo de adaptação ou em um repouso tranquilo. Dito de uma outra maneira, aqui não se trata de um eterno retorno ao mesmo prazer, que muitas vezes é indicada por uma interpretação biológica das pulsões. A atualidade da psicanálise faz valer que a pulsão não é redutível aos dados biológicos e culturais. Resumindo: ler a pulsão de morte em termos biológicos torna-se um erro interpretativo. Quero dizer que a repetição nos impele ao encontro sempre faltoso. Trata-se mesmo de um rateio inerente à repetição desse encontro. Desta maneira, esta modalidade de encontro nos incomoda, na medida em que o encontro é, no fundo, estabelecido com o gozo. Entra aí em jogo um contorno do real traumático.
Enfim, sob a lógica deste encontro fracassado, inerente à repetição, passo a sublinhar a distinção promovida por Freud quando, em seu texto, emerge uma relação em circuito na qual mostra o surgimento do fator pulsionante. Ele não só identifica a insistência da pulsão recalcada em querer uma satisfação completa, mas indica a diferença como produto “entre o prazer de satisfação encontrado e o exigido”[7]. A diferença é a responsável pela emergência do fator pulsionante. Parece-me que o surgimento desse fator em Freud estrutura a pulsão à luz de um modelo de rateio. Trata-se de seguir aí as consequências, as incidências da articulação que Lacan desenvolve entre a topologia das superfícies e a pulsão, propriamente dita. Por que a orientação lacaniana, desconstruindo o dualismo, promove um certo retorno ao monismo ao abordar à pulsão?
Sublinho que a força de uma marca que se repete é a solução singular encontrada pelo falasser para responder ao encontro traumático. Ela se impõe, nos termos de Freud, “sem cessar”[8]. Nessa indicação freudiana há repetição, repetição do trauma, orientando esta modalidade lógica: o necessário. Sob essas condições, o momento de surgimento do trauma se inscreve enquanto contingente. O Real em jogo aí empurra para a repetição sinthomática.
Por sua vez, há uma satisfação da pulsão no sinthoma. Afinal, ocorrendo infiltração da pulsão no sinthoma, é possível ainda manter o binarismo freudiano? Do lado da Posição do inconsciente, Lacan concebe este monismo quando afirma: “Por isso é que toda pulsão é virtualmente pulsão de morte”[9]. O que se torna necessário, nesse momento do ensino de Lacan, é tirar as consequências do advento deste monismo pulsional quando entramos nesta zona do sinthoma. Um outro ponto que quero indicar é a evidente aproximação entre o sinthoma e o monismo pulsional à luz da modalidade lógica do necessário.
Como acréscimo, parece-me prudente isolarmos o que Lacan define como pulsão no seu ultimíssimo ensino: “as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer”[10]. As ressonâncias no corpo, os ecos no corpo da lalíngua nos toca com um dizer onde a fala é tomada, “materialmente, ou seja, no caso, foneticamente”[11]. Vemos bem como, a esse respeito, Miller procede com os elementos que retira da lalíngua, quando afirma que ela, lalíngua “se abre àquilo com que Lacan se encantou, ela se abre a todos os equívocos”[12].
Na perspectiva aberta por Lacan, podemos ler a repetição do trauma em Freud como repetição do Real que faz sinthoma. Sob essas condições, a modalidade lógica do necessário coabita com o funcionamento do sinthoma. Então, no seu funcionamento, o sinthoma não cessa de se inscrever.
No que se convencionou chamar de Ultimíssimo Ensino de Lacan, Jacques-Alain Miller propõe que o acontecimento de corpo também implica uma marca. Logo, o acontecimento traumático fazendo um acontecimento de corpo nos orienta para as fincadas de lalíngua no corpo. Essa batida deixa vestígios duradouros, enquanto fixação. Lendo de uma outra maneira: um acontecimento, que é um sinthoma, traz as marcas de um corpo que testemunha o real de gozo inerente ao corpo.
Eis o que quero sustentar: sim, é verdade que Freud nunca abriu mão da proposição dualista inerente ao conflito pulsional; sim, a pulsão freudiana e, especificamente, a pulsão de morte, sempre esteve presente no fazer valer o acontecimento traumático e, por conseguinte, essa pulsão repercute-se na compulsão à repetição. Ora, o que foi desenvolvido logo acima, possibilita-nos destacar a incidência da formulação freudiana da pulsão do Além do princípio de prazer no funcionamento do sinthoma. Realiza-se, nessas condições, um declínio do dualismo pulsional quando fazemos valer a emergência desse declínio no Ultimíssimo Ensino[13] de Lacan, como uma inflexão em direção ao sinthoma.