Por Luiz Fernando Carrijo
AME – EBP/AMP
Quando recebi o convite para tomar a palavra nesta atividade, feito por Lucíola Macedo, a quem agradeço a oportunidade, brevemente em nossa conversa ao telefone, me servi de um pensamento rápido através de uma questão que Lucíola tomou como uma das perspectivas a ser desenvolvida aqui. A pergunta era: – Como este “real a céu aberto”, a que o momento exorta, “presentifica-se nos sonhos”?
Naquele momento não encontrara a palavra que mais refletiria minhas elaborações e “real a céu aberto”, embora o tenha utilizado, não me parecia o mais adequado. Em outras palavras, o real, não necessariamente, se conforma em ser recoberto pelo termo “tempos obscuros”, ainda que a abertura para a pulsão de morte esteja em cena. “Os tempos obscuros” diz respeito à realidade “político-sanitária” que atravessamos. Do lado politico, a ameaça à democracia e do lado sanitário, a pandemia – ambas com suas vicissitudes e, mais ainda, enlaçadas intimamente, vêm dar um tom mais dramático, especialmente no nosso país. Entretanto, os “tempos obscuros” nomeia, por assim dizer, o mal-estar contemporâneo ao qual a civilização está submetida. Se no campo da política os corpos já estão afetados através da incidência do discurso da época em que o capital e a ciência dão as mãos, afetando o cotidiano de cada um, funcionando como uma máquina ansiogênica diante da oferta irrefreável de consumo, de opiniões, de cada um com seu palanque fugaz nas redes sociais, culminando com as chamadas “Fake News” e outras idiossincrasias mais. Esse imperativo de consumo e seu corolário vêm dar mostras da “precariedade simbólica” que, ao instituir-se nesta lógica, comprova o fracasso em tratar o real em questão. É como se estivéssemos num curto-circuito entre o “instante de ver” e o “momento de concluir”, sem chance alguma do tempo para compreender…
Do lado das questões sanitárias, o imperativo do confinamento, a contagem de mortos diariamente, o número de vagas em UTIs e, de longe, a expectativa do surgimento de uma vacina. Entre números e falsas promessas de cura, entre o negacionismo e as cifras da ciência, concretiza-se de maneira insólita, a perda na crença, já vacilante mesmo antes do surgimento da pandemia, no futuro. Não que o futuro estivesse, em tempos outros, garantido e consolidado. Os semblantes aí podiam dar, não a garantia, mas o que poderíamos chamar aqui de possibilidades de se projetar um futuro possível. Hoje, o que temos é uma ameaça real à vida, e cada um que se cuide.
Mas todo esse panorama, essa crise, ao nosso ver, não é o real em si mesmo na medida em que, ainda que precariamente, temos um discurso para tentar a mediação. Para o psicanalista interessa a pergunta sobre o que há de real em tudo isso!
O “real da pandemia” não é o real da psicanálise, ele está mais do lado das ciências biológicas. Nesse sentido, só podemos legitimar, através do discurso analítico, uma incidência real na vertente do “parlêtre” com seu corpo afetado.
Partimos do que, na ordem das coisas até então estabelecidas, a crise “político-sanitária” vem fazer “furo” no discurso. Se há contingência, há real em jogo. A questão é localizá-lo e a presença do analista poderá fazer a diferença.
A “perda da crença no futuro”, talvez mais até que a ameaça de morte dos corpos, está intimamente ligada à precariedade simbólica. Lá onde a eficácia simbólica permitiria uma aliança com o Outro pelo viés da “esperança”, ainda que como um mito, os tempos que correm não admitem essa configuração. Não é a primeira vez que a humanidade passa por esse percalço. Já tivemos pandemias, crises políticas, ameaça e perda dos direitos, etc. O que é inédito, é a ordem do discurso sobre o qual isso atravessa. Isso veio fazer “furo” no laço social até então vigente e é por esta razão que a “perda da crença no futuro” se processa de maneira tão dramática.
Freud, em seu texto “Reflexões para os tempos de guerra e morte” (1915), no primeiro ensaio intitulado “A desilusão da guerra”, sublinha dois fatores preponderantes na aflição psíquica: 1. O que a guerra provoca de desilusão e 2. Uma modificação forçada da atitude diante da morte. Podemos ler essa elaboração de Freud à luz da história, constatando que tanto um fator como o outro foram modulados a partir do discurso que, à época, estava marcado pela transição entre o “discurso da tradição” e aquele que caracterizaria o século XX e que, com a ascensão da ciência e dos mercados internacionais, redundou em nossos dias, até momentos antes da eclosão da pandemia, como o que J-A. Miller nomeou de “discurso da hipermodernidade”. Não saímos dele, claro. E é mesmo por sua incidência e persistência que o “futuro não é mais como antigamente”. A “desilusão” aqui não marca simplesmente um antes e um depois, ao contrário, ela está inserida como efeito próprio do discurso vigente. Não há Outro que possa sustentar um mínimo de laço através da esperança.
Até aqui tentei dar um contorno ao termo “tempos obscuros” e em última instância, sublinhei o que considero a “perda da crença no futuro” como um corolário do discurso do mestre contemporâneo. Portanto, retomo em outros termos, tentando dar uma volta a mais e não mais tomar esse estado de coisas como “um real a céu aberto”.
Me deparei com um termo que me pareceu ser mais próximo do que eu mesmo havia pensado: O termo “antecâmara”, que aparece no primeiro número dos “Papers” da Escola Una visando o Congresso da AMP onde Bernard Seynhaeve em seu texto “A injeção de Irma, um sonho de passe de Freud” privilegia esse termo para ali bem localizar o real que se trata no sonho, cito: “No sonho da injeção de Irma, é o momento onde o mundo do sonhador está mergulhado no caos, momento onde ele perde a cabeça e que, ultrapassado certo limite, uma letra fora do sentido vem se escrever. Tal significante é da ordem da borda do real…precisemos aqui que Miller faz uma marcação que a letra não é o real, mas a antecâmara do real, a última muralha antes do real”.
O autor toma o sonho da “Injeção de Irma” desde a perspectiva do passe destacando o que o sonhador encontra ao cruzar o umbral do sentido encadeado pelos significantes. O encontro com a “letra”, a fórmula da trimetilamina, escreve a inexistência da relação sexual e delimita o que há de real no sonho.
Gostaria de sublinhar, ainda com Seynhaeve, o termo por ele utilizado como “momento onde o sonhador perde a cabeça” que nos remete, brevemente ao “furo da pulsão”, onde haveria razões de sobra para que o sonhador despertasse nesse ponto – mas Freud vai além porque ele quer saber! Nos lembra o autor. Um ato de coragem? No mínimo a possibilidade de circunscrever nessa ultrapassagem o “ato analítico”.
Ao contrário de outro sonho abordado por Freud na “Interpretação dos sonhos”, o “Pai, não vês que estou queimando?” e que Lacan recupera no Seminário 11, apontando ali que a aproximação do real produz o despertar do sonhador. Neste não há uma letra, o sonhador não vai além, ele desperta antes, mas não deixa de evocar também uma ante- câmara na medida em que o corpo se encontra afetado.
Minha intenção aqui é aproximar o “caos” deflagrado pelos “tempos obscuros” ao que se produz no sonho. Ademais, seguindo as indicações de Lacan, a realidade e o sonho seguem um mesmo curso. Jamais se desperta, acordamos para continuar sonhando. O corpo só se entrega ao despertar absoluto quando encontra a morte, nos ensina Lacan.
Ora, nossas reflexões sobre “sonhar em tempos obscuros” não podem negligenciar a afecção dos corpos que daí se depreendem. Cada um toma esta realidade e a elabora com o “pouco de simbólico” que há; mas esse pouco de simbólico permite a ultrapassagem do limite que a palavra portadora de sentido comporta.
Mas o sonho, em sua função protetora do sonhador, como nos ensina Freud, estaria presente em cada “parlêtre” independentemente do discurso que modula sua realidade e sua relação com o significante mestre. Freud também explicita, no texto “Neuroses de guerra”, que o sonho se produz tanto quanto na neurose comum. Apenas que o trauma da guerra atualiza aquele já inscrito no inconsciente. No mesmo movimento, verificamos que os “tempos obscuros” promove o mesmo naqueles que seguimos seu tratamento analítico. A intensidade e a frequência desses sonhos estão notadamente aumentadas mas, num certo sentido, o despertar deixa seu resíduo de angústia cujo manejo apresenta dificuldades dadas as condições de atendimento a que tivemos que recorrer. A ausência dos corpos não é sem consequências, ainda que tenhamos que forçar a criatividade para que a “presença do analista” possa ser operativa.
Ao nosso ver, o impacto observado desde o início da crise está em decréscimo… a “falta da crença no futuro” está aos poucos dando lugar a uma espécie de adormecimento, como se tudo fosse ser retomado sem nenhum obstáculo! – “E o analista bem que poderia continuar atendendo de maneira virtual depois que a pandemia acabar” – me diz um dos pacientes – Um sonho reparador, sem dúvida que inclui o estabelecimento de um “novo normal”! Não se trata de uma função de desconhecimento, mas da instauração de um certo empuxo ao “cinismo coletivo” que não deixa de operar no nível subjetivo.
Lacan nos fala da função do tempo em uma análise quando, no início do seminário “Momento de concluir”, diz que uma psicanálise, embora seja feita do tecido da linguagem e por aí implica também nos desvios que ela promove, ela, a psicanálise, diz alguma coisa. Cito Lacan:
“O que quer dizer “dizer”? Dizer tem algo a ver com o tempo. A ausência do tempo é algo que se sonha, é o que se chama eternidade e esse sonho consiste em imaginar que se desperta. Passa-se o tempo sonhando, não se sonha somente quando se dorme.”
Lacan constrói aí uma série considerando o sonhar em tessitura com o discurso de vigília acrescentando a “eternidade”, mas não articulada à infinitude do tempo e sim à sua recusa, uma vez que coloca o despertar no horizonte. Ou seja, ele procede uma reversão no que é comumente concebido como “eternidade”. Por essa vertente, Lacan faz do tempo “um real” onde Um dizer se aloja.
Ora, a pandemia em seu modo “explosivo” de aparecimento em nosso tempo, produziu, naquele momento, uma certa interrupção do “eterno” e, também naquele momento, instaurou como contingência, como o que cessa de não se escrever, um certo deslocamento dos significantes mestres vigentes ainda que sob os auspícios do horror. No entanto, o atrelamento à crise política tecida pelo fio da negligência pode levar ao sonho onde o protagonista bem pode ser uma representação da persistência do horror, ao modo inverso daquele que Goia postulou como o sonho da razão. E a “eternidade” como o “novo normal”, escamotear o real, até que uma nova pandemia surja.
Não há o que interpretar da pandemia, senão no que ela produz de um corte na história fazendo vacilar a certeza do futuro bem como a aproximação da morte e, como disse, ela, a pandemia, produz o real da ciência onde o saber fica num horizonte não vislumbrado dadas as características inéditas da doença provocada pelo vírus. Ela ficará marcada na história, como as anteriores, pela sua cifra reduzida ao número de vítimas e o saber configurará nos anais da ciência que, com certeza, contará a história de sua própria resiliência.