Por Maria de Lourdes Mattos
Procurando fugir do tema que nos acomete, neste tempo de confinamento, escolho rever um clássico do cinema italiano, “Morte em Veneza”, de Luchino Visconti, inspirado no livro de Thomas Mann, escrito em 1911. O filme, premiado no festival de Cannes de 1970, trata da paixão avassaladora e platônica de um homem de meia idade por um jovem rapaz. O tema amor e morte, atravessado pela pulsão escópica, tendo em vista que os dois personagens centrais não trocam uma única palavra, ao som da música de Mahler, fazem desse filme uma verdadeira obra prima.
Apesar de o filme trazer temas preciosos para a psicanálise, não pretendo fazer essa reflexão neste momento. O que me surpreendeu com a escolha, incluindo a falha da minha memória, foi a epidemia de cólera em Veneza. Procurando fugir da pandemia escolho rever um filme – é verdade que visto há muitos anos – onde uma epidemia é um tema importante!
No filme, a epidemia é guardada em sigilo pelas autoridades locais, para “proteger” o turismo. A história se repetindo – os interesses econômicos em detrimento das vidas! Neste caso, ilustrada por uma obra literária levada ao cinema. Pergunto-me: o que inspirou o escritor a constar em seu escrito de 1911 uma epidemia mortífera? Thomas Mann foi um defensor da democracia, que para fugir do nazismo se refugiou na Suíça e posteriormente nos EUA, de onde, no final da sua vida, foi expulso pelo macarthismo.
A publicação de “Morte em Veneza” é anterior à gripe espanhola, pandemia que se iniciou nos EUA e se alastrou para outros países, no final da primeira grande Guerra, tendo um índice de mortes cinco vezes maior que o da própria Guerra. Sem encontrar resposta para a escolha do autor em incluir uma epidemia em seu escrito, ressalto que os significantes – amor, cólera e morte – são marcantes nessa obra de arte.
Na história da humanidade, encontramos outras ocorrências de pandemias, sempre muito graves, com perdas irreparáveis. Cada uma tem sua especificidade, a começar pelo agente etiológico e, também, de acordo com o momento histórico do acontecimento. O que há de novo nesta que estamos vivendo, causada pela Covid-19?
Na época da gripe espanhola, o mundo era regido pelo liberalismo econômico, enquanto hoje temos o mundo globalizado, regido pelas políticas neoliberais, onde o capitalismo, em parceria com a ciência, acredita tudo poder. Como bem considerou Miller,[i] com a separação entre natureza e real, temos uma grande desordem, sem a garantia da ordem simbólica, o que tornou o real sem lei.
Como contribuição para compreensão dessa grande desordem do mundo globalizado, vale à pena retomar o dito de Lacan, “o inconsciente é a política”. Laurent,[ii] seguindo algumas reflexões de Miller sobre essa referência, considera que não é mais a política articulada ao pai, como via Freud, mas o acontecimento de corpo no inconsciente político, separado da identificação. O inconsciente é transindividual, ou seja, tem sua singularidade, mas sofre influências da cultura, do mundo globalizado.
Laurent refere sobre o estado de exceção, cada vez mais presente nas democracias atuais. Entre as reflexões de Miller, cita “a transformação da transgressão em novos direitos” e a elevação na civilização “ao zênite do gozo”, o que se apoia no último ensino de Lacan, “‘em que o termo essencial é o gozo, uma vez que não tem contrário’ e em que se trata de pensar no ‘nível da pulsão, a qual, à diferença do desejo, não está intrinsecamente articulada a uma defesa,’ (…) não há nada mais do que ‘arranjos e percursos de regimes de gozo’”.[iii]
Considero essas referências uma pista para entender o que vivemos hoje no Brasil. Como pode um apologista da barbárie ser eleito democraticamente e se manter no poder, nesta crise sanitária e política sem precedentes, com aproximadamente um terço de apoiadores?
Parcela significativa de uma classe dominante conservadora, representada no Congresso pela bancada BBB (bala, bíblia e boi), apoia a “necropolítica”[iv] comandada pelo Messias. Conseguem carregar consigo parcela da população desfavorecida socialmente.
O desprezo à vida, caminhando na contramão do isolamento dos corpos, preconizado pela orientação sanitária, se apresenta diariamente nos noticiários e manifestações de apoiadores. Entre as manifestações, que desprezam a gravidade deste coronavírus, assistimos atônitos algumas onde a morte pulsa sem “máscara” – são as simulações de enterros em praça pública!
Laurent comenta outra reflexão a partir do “inconsciente é a política”, nomeada como “as bolhas da certeza”, que corresponde ao enganche do sujeito num significante mestre qualquer, que “podem tomar a forma de um enganche em crenças fanáticas ou ainda aberrantes, como se vê nos partidos populistas, que rejeitam os discursos dos especialistas (…) ao preço de priorizar significantes mestres provenientes da magia ou da religião (…)”.[v]
No Brasil, o presidente Messias não tem partido, mas utiliza-se de um discurso autoritário populista, como, por exemplo, o discurso anticorrupção. Nega o saber dos especialistas em saúde pública, ao minimizar a gravidade do vírus e coloca em oposição vida e economia.
No filme, a epidemia é guardada em sigilo por razões econômicas, e nem por isso foi menor e protegeu o turismo e os turistas. No Brasil não tem sido diferente, ou melhor, a diferença está que não se trata de uma ficção, é da ordem do real!