Por Ruth Helena Pinto Cohen
O sujeito do tecnopatriarcado neoliberal que a Covid-19 fabrica não tem pele, é intocável, não tem mãos. Não troca bens físicos, nem toca moedas, paga com cartão de crédito. Não tem lábios, não tem língua. Não fala diretamente, deixa uma mensagem de voz. Não se reúne nem se coletiviza. É radicalmente indivíduo. Não tem rosto, tem máscara. (Paul Preciado. Aprendendo com o vírus – 28/03/2020)
Nada será como antes, durante e pós-pandemia. O automaton, das séries que escreviam a rotina nossa de cada dia, se romperam. Uma cratera se abriu, dando espaço ao indecidível, já que não se pode afirmar se é verdadeira ou falsa a origem de um vírus mortal e as noticias que pululam e invadem os meios de uma suposta comunicação em rede. Presos, nessa fratura do real pandêmico, só sabemos que ele se apresenta com sua precisa lei de transmissibilidade e, que para de não se escrever, na contingência de um possível encontro com um organismo hospedeiro. Esse é o discurso da ciência que nos afeta e está tão presente no comando do para todos ” x, o universal. Mas por outro lado, Lacan nos ensina que o todo repousa na exceção[i] e mesmo que a pandemia seja para todos, ainda é possivel recolher, das análises à distância, o singular que não se oferece ao universal. Inquieta-nos, entretanto, o desafio sobre o que sustenta e sustentará daqui pra frente o discurso analítico. Com que formato de espaço e tempo podemos fazer suplência a esse furo e, com que tecido vamos suturar a ferida que se abriu?
Na Orientação Lacaniana somos advertidos que o inconsciente deriva do corpo falante e o homem fala com seu corpo.[ii] Miller lembra que o falasser é uma entidade ôntica, pois tem necessariamente um corpo, uma vez que não há gozo sem corpo. Estamos às voltas com o organismo da ciência e o corpo para a psicanálise, que traz o impacto do material da linguagem, que faz de um sujeito um ser de fala. Como operar entre esses dois campos do real, aquele que a psicanálise se ocupa, sem lei, e esse tão bem orientado, sem vida, mas que como num conto de ficção cientifica toma conta de toda a humanidade?
No exílio nosso de cada dia, floresce uma flashguerrilha, termo cunhado por Miller em 2014, para indicar que mesmo via internet, as imagens oferecidas pelas redes eletrônicas, só têm poder pelo viés do discurso e no vínculo com o corpo. Essa ideia traça um caminho para a psicanálise e as questões colocadas por Lacan na Direção do Tratamento retornam com toda força: Quem analisa hoje? Qual o lugar da interpretação? Em que ponto estamos na transferência? Como agir com seu ser? Essas perguntas ecoam em nossas escutas via tela que vela, mas também petrifica quando nos deparamos com a imagem congelada pela máquina, ou na voz dissonante, dodecafônica que se faz presente.
Do tempo confinado talvez possamos, só depois, recolher o que pode ser decantado, extraído do que restou dessa tarefa de recolher o lixo espalhado pelo campo devastado e desertificado de um mundo que se deixou levar pelo casamento da ciência com o capitalismo. Desse enlace, nasceu uma sociedade de consumo digital, com sua economia imaterial, os bitcoins e novas formas de controle dos corpos. Como exemplo paradigmático, temos os drones (zangão do século XXI) que servem para vigiar, advertir e controlar, como uma nova modalidade de animal metálico, dentre outros objetos do ciberespaço.
O momento exige uma reinvenção do laço social e, consequentemente, do discurso da psicanálise. Os remendos, as tentativas de suturar essa grande fenda que se abriu na Terra irrompem nas invenções dos cidadãos, dos analistas e pacientes. A tela do celular ou do computador, que supostamente nos protege do contágio, indica que agora devemos transformar nossas casas em consultórios/bunkers. Os espaços clínicos, onde pelo menos dois corpos se encontravam estão vazios, lá somente o silêncio. O lugar da fala agora emerge na intimidade dos quartos, na voz sussurrada dos pacientes, que não podem se deixar ouvir por seus familiares.
Como oferecer imagem e voz, por exemplo, a uma criança cuja psicose não impede que retire seus pais do quarto na hora da sessão, ou ameace quebrar o celular, porque precisa da presença viva do analista e não essa imagem em anamorfose.
O que resta da psicanálise inventada entre guerras? Estaria novamente ameaçada, como na época de Freud, desta vez não pelos nazistas, mas por um objeto invisível a olho nu? Lembremos que, também como uma peste, a psicanálise continuou se disseminando a despeito de todos os percalços.
O vírus produz uma falta “de ar” que vem sendo fabricada há muito tempo, pela máquina de Estado em exercício do poder. Frente a esse desafio, a urgência subjetiva pede resposta imediata, mas terá um moroso tempo para compreender e, quiçá, concluir. O vírus traz à cena, na política brasileira, por exemplo, uma nova forma de inexistência, o morador das ruas sem cadastro, sem registro. Uma multidão de espectros, saídos dos campos de concentração urbanos, clama para serem contabilizados, para receberem, talvez uma mísera cota de existência, sua cifra, seu valor de resto. A grande população dos excluídos ex-sistem exilados no laço social. Serão incluídos na pandemia, enquanto se amotinam nas filas dos bancos ou dos hospitais, para a contabilidade dos mortos? O necropoder[iii] já fez suas escolhas, já definiu quem vive ou morre. O vírus é invisível, assim como os que habitam as ruas, mas se faz presente com seu poder de identificar o ser vivo e, assim, nos expõe a um novo panóptico, na regulação dos corpos. O que nos ensinarão esses seres falantes que a Covid-19 fabrica?