Sônia Vicente
Entendemos que as reflexões às quais os psicanalistas de orientação lacaniana se dedicam têm como objetivo fazer ampliar o debate sobre o conceito de uma Escola de psicanálise buscando como estruturar uma comunidade analítica adequada à orientação pelo real.
O que é próprio da Escola é o trabalho de manter e expandir o discurso analítico. Nessa tarefa estão implicados o ensino e a transmissão. Há, assim, na comunidade analítica, uma tensão entre o saber exposto e o saber suposto.
É preciso ressaltar que não há ensino da Escola, o ensino é feito por conta e risco, ou seja, o que é para ensinar é a produção elaborada por cada um e como tal colocada em questão na comunidade analítica, ressaltando, assim, que o ensino é produto de um saber fazer com o impossível.
É nessa via que Lacan põe seu ensino a serviço de uma transferência de trabalho que ele apresenta como via de transmissão da psicanálise. O que se transfere é o trabalho de cada um, estando em jogo na transmissão aquilo que o analista pode comunicar da singularidade das análises que conduz e o que o analisando pode transmitir da sua própria experiência para que a atemporalidade do inconsciente possa emergir na temporalidade da Escola. Lacan fundamenta a autoridade analítica no Passe e regula o estudo e as pesquisas no Cartel, os dois pilares da sua Escola.
Foi já na Ata de fundação da Escola Freudiana de Paris (1964) que Lacan promoveu o avanço do trabalho do psicanalista ao propor o dispositivo do Cartel como órgão de base da Escola, seguindo os princípios da clínica e visando a transmissão da psicanálise. Para tal dispositivo, apontou cinco pontos estruturais: quatro se escolhem e devem realizar um trabalho que resulte numa produção, esses quatros se reúnem em torno de um mais-um que deve provocar a elaboração. A permutação deve ser, no máximo, em dois anos, só se espera a exposição dos resultados bem como das crises e o sorteio assegurará a renovação e tentará evitar o efeito de cola.
Assim, podemos dizer que em um Cartel elabora-se a perda tanto dos laços imaginários como do escrito que em si só comporta a perda, confrontando o sujeito ao furo da estrutura.
Foi fundamentado nessas indicações que a Seção Bahia, no ano de 2019, depois de algum período de insucesso com o funcionamento dos Cartéis, seguindo Lacan de uma forma mais fiel, escolheu fazer diferentes usos do Cartel na sua transmissão. Começou pelo seu Programa no qual optou por convocar os membros da EBP-Ba para trabalharem em Cartel o tema escolhido para seu estudo anual “Tempo de Interpretar”. Foram pensados cinco subtemas sobre os quais girariam as Jornadas e os Cartéis. Assim, foi perguntado aos membros quem gostaria de ser mais-um e/ou participar dos Cartéis se comprometendo com a apresentação da sua produção.
Hoje, são esses Cartéis que sustentam teoricamente o Seminário de Formação Permanente, apresentando seu tema, mantendo as conversações, assim como prepararam a comunidade para a XXIV Jornada garantindo a apresentação de trabalhos.
A Especialização em Teoria da Psicanálise de Orientação Lacaniana também se utiliza dos Cartéis no que denomina Cartéis relâmpagos, formados com uma finalidade específica, a saber, uma estratégia metodológica, e se dissolvendo após a exposição de seu produto.
Um outro uso importante para a formação que ocorre na Seção Bahia é sua utilização na Rede de Psicanálise Aplicada no que diz respeito ao seu funcionamento. Os praticantes da Rede são convidados a formar Cartéis, cujos integrantes são sorteados entre os mesmos e os mais-um escolhidos entre os membros que declaram seu desejo de aí estar. Nesses Cartéis há o estudo teórico/clínico dos casos atendidos e mensalmente são apresentados numa reunião específica da Rede. Cabe aqui ressaltar que no Encontro de Cartéis que esse ano, também, inovamos ao propor uma conversação, para a qual enfocamos as produções que poderiam ser: de uma frase, uma questão ou um parágrafo a um trabalho mais formal, mas não enviados previamente, que contivessem uma questão teórico clínica e/ou reflexões sobre o funcionamento dos Cartéis.
Foram apresentadas dezesseis produções, das quais dez eram de Cartéis da Rede, que foram agrupadas pelos temas enviados em quatro blocos e sobre os quais realizamos a conversação, discutindo-os durante todo o dia, fazendo assim uma continuidade entre os temas. Em “segredo” alguns membros foram convidados para sustentar a conversação e eles foram uma peça fundamental nas interlocuções. Um trabalho rico que produziu ressonâncias e efeitos de formação. A aposta em colocar a céu aberto as inquietações, as discussões iniciadas nos Cartéis, dando a possibilidade de escrever e falar sobre isso numa Conversação, tornou a Seção viva com a participação ativa dos associados, renovando o “desejo de saber que perpassa a formação do praticante da psicanálise”.
Apostamos na surpresa, no novo e, dessa forma, que uma Escola não é o que ela sabe mas o que ela sabe que não sabe. No dizer de Lacan, na Escola, o regime de saber é fundado na transferência. A Escola deve ser instituída como Sujeito Suposto Saber. Sendo assim, tudo nela é da ordem do analítico. Assim, Um a UM na sua solidão, instituem uma Escola, não fazendo outra coisa senão subjetivá-la. Uma Escola vai para onde a levamos, nascida do discurso de seus membros. Enfim, os cartelizantes ensinam com suas elaborações singulares, produzindo transferência de trabalho e trazem a evidência de uma Escola vibrante, fazendo pulsar o desejo pela psicanálise. Comprovação de que o Cartel é realmente o órgão de base da Escola.