Por Juliana Rego Silva[2]
Em setembro de 2019 vivenciamos um acontecimento no campo freudiano. O IX ENAPOL assim se caracterizou para mim – um acontecimento político que colocou psicanalistas a trabalho a partir dos significantes e das paixões Ódio, Cólera e Indignação e de uma localização, primordialmente, americana. Foram produções e transmissões de finezas incalculáveis. Há algo dessa localização política-subjetiva que ecoou de maneira muito bonita nas diversas salas de trabalhos: juntos, cada um com sua solidão, fazendo grupo de diferentes para transmitir algo de uma escuta americo-lacaniana, se assim me permitem nomear.
Dos afetos eleitos como orientadores desse encontro, escolhi a indignação como causa deste breve ensaio. “Um protesto da ordem do discurso”, assim ouvi em uma plenária. Como a circunstância frutífera que provoca a escrita e convoca ao trabalho. Entende-se aqui a indignação como esse afeto curioso que por definição[3] se apresenta como substantivo feminino pelo ato ou efeito de se indignar; pelo sentimento de fúria ou desprezo, geralmente provocado por algo considerado ofensivo, injusto ou incorreto e, ainda, por extensão, ira, ódio e raiva. O discurso analítico é rebelde, pois não sucumbe aos ideais da época.
Desde a psicanálise sabemos que a ordem social, qualquer que seja, é sempre opressiva e inadequada ao que seria uma relação sem falha do humano com a natureza e o sexo[4]. Essa é a condição sem a qual não é possível pensar em sujeito do inconsciente e que nos aponta para a relação intrínseca de expressar psicanaliticamente algo sobre a política. É daqui que partimos – dessa dimensão de escutar e dizer algo sobre os efeitos de estrutura. Os efeitos de verdade, efeitos de sujeito. A própria verdade e a política como efeito. Afinal, se quisermos fazer o exercício de discutir e produzir algo a partir do que ocorre hoje no Brasil e seus vizinhos não podemos esquecer do tempo necessário de escuta, trabalho e elaboração. O lugar do analista, antes de mais nada, é um local de escuta.
Exercer a psicanálise na atualidade, sob a ótica de se pensar os desafios para tal feito, exige pensar as implicações do mal estar de nossa época não apenas para os sujeitos, mas do mesmo modo para própria psicanálise e para a sociedade. Ódio, cólera e indignação de quem fala e de quem escuta. Desde as grandes guerras o estudo sobre a violência e os afetos que aí se enlaçam estão presentes na história da psicanálise. É com o preço das consequências subjetivas das transformações do laço social, por meio dos ataques e enfraquecimentos das práticas democráticas e das ameaças ao Estado de Direito, concomitante à radicalização e à ascensão da extrema direita, dos totalitarismos e segregações, dos discursos de ódios e das passagens ao ato com a maior crueldade e requinte, que praticamos tal exercício.
Encontramo-nos como reféns da necessidade de falar. Há uma intensidade curiosa entre o “precisar dizer” e o “não quero nem saber” que não nos é novidade. Diante das transformações culturais e políticas há algo do excesso que tem nos tomado. Ali onde isso fala é preciso ouvir. O encontro com a experiência do impossível de dizer aponta justamente para uma das acepções do real no ensino de Lacan[5]: O inassimilável é traumático e se repete. A experiência vivida no IX Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana fez, para muitos, parte deste “fazer algo com” aquilo que insiste em não desaparecer. Uma vivência dos embaraços do real da política e da clínica ali no coração de São de Paulo.
Como fazer psicanálise no Brasil hoje? Quais as apostas de nossos colegas psicanalistas nos países latinos que herdaram, como nós, um colonialismo que hoje se atualiza com novas fantasias bélicas? Durante as plenárias e mesas de trabalho despertamos para os efeitos de internacionalização da psicanálise sempre à prova de sua ética tão universal quanto singular. Se falávamos e produzimos conhecimento há pouco sobre uma evidente crise contemporânea em termos de uma ambígua perda da autoridade simbólica (desde o Estado, a família patriarcal, a política e a cosmovisão religiosa), deparamo-nos agora mais do que nunca com o avanço dos movimentos conservadores, ou seja, aqueles cuja frente de disputa e dominação é justamente a retomada dessa autoridade simbólica às custas do sofrimento e de sintomas sociais repugnantes. O flerte que vivemos com o retorno a um passado é indesejável e impossível para aqueles que clamam a democracia como possibilidade de existência. A ascensão de um regime autoritário promove, como efeito sintomático na cultura, a violência urbana e o abuso de poder. Não só em meu consultório, mas em várias plenárias e mesas de trabalhos pude escutar que nos corpos daqueles que circulam pelas ruas com o caminhar trêmulo, significantes como “pânico”, “depressão” e “angústia” têm sido escolhidos para nomear aquilo que a carne grita.
Que a política se constrói através de processos históricos de rupturas e desvios, disputas e produção de poder e verdade sabemos. No entanto, é sempre útil ressaltar que estes processos envolvem sujeitos os quais, desde o inconsciente, se colocam no mundo cada um à sua maneira, emoldurados pelas suas próprias fantasias, entorpecidos pelos atravessamentos do desejo e fragmentados diante do encontro com o real. Pensar os significantes ódio, cólera e indignação nesse sentido nos levou necessariamente à reflexão de que não é possível conceber uma racionalidade política ou, um modo de governo dos vivos, do qual se abstenha o corpo e o inconsciente.