Eu recebi o convite para estar hoje nessa mesa como uma oportunidade de refletir sobre os dois anos em que fiz parte da diretoria da EBP, entre abril de 2017 e abril de 2019. Agradeço genuinamente à Diretoria da Seção Rio e especialmente à Ana Tereza Groisman, pois o convite me permite aproveitar duas dimensões muitos valiosas ao ato de reflexão: por um lado, o endereçamento e, por outro, uma certa distância temporal. Algumas das coisas que se decantaram na escrita desse trabalho não teriam acontecido sem a perspectiva de endereçar a vocês essas reflexões e sem a passagem de algum tempo desde o fim da função.
Tendo, portanto, vocês como meu Outro e alguns meses de esquecimento, busquei recordar a experiência na diretoria e comecei a me perguntar sobre como tinha sido estar “responsável” pelos cartéis na Escola. Logo estranhei essa pergunta e essa palavra. Alguém sentindo-se responsável pelos cartéis… Veio-me à mente a preocupação com a realização de Jornadas de Cartéis nas Seções… Lembrei-me, ainda, da atenção com o número de cartéis na Escola e a satisfação de terminar a diretoria vendo uma boa quantidade deles em funcionamento. Mais estranhamento…
Já um pouco distante do exercício da função na diretoria, não foi difícil interpretar a inquietude: eu experimentava perguntas e preocupações de mestre. Dito de outro modo, eu estava tomando os cartéis como objeto a partir de uma posição situada na hierarquia institucional, um lugar executivo, por assim dizer. Levando ao limite, poderíamos dizer que é exatamente o oposto daquilo que Lacan parecia almejar com a função do cartel.
Para situar essa ideia, um pouco de história. Se eu me vi tomado pelo discurso do mestre, então agora vamos ao discurso universitário. Mas vou tentar não perder o fio da meada, ou seja, aquilo que efetivamente me interroga sobre a Escola hoje, sobre meu desejo em relação a esse movimento.
O cartel foi inicialmente proposto por Lacan em 1964, no Ato de Fundação da Escola Freudiana de Paris, que se seguiu ao que Lacan designou como sua “excomunhão” da IPA. Ali, ele menciona que a “execução do trabalho” [na Escola] se apoiará em um pequeno grupo, composto por entre três e cinco pessoas, mais um. “Após certo tempo de funcionamento”, aponta Lacan, “os componentes de um grupo verão ser-lhes proposta a permuta para outro” pequeno grupo (1964/2003, p. 235). Além disso, a própria “adesão [leia-se, a entrada] à Escola será feita mediante a apresentação a ela” desse pequeno grupo (1964/2003, p. 235).
Embora se encontre aí a indicação de um lugar bastante central pensado por Lacan para a função do cartel na Escola, não parece que a ideia tenha sido efetivamente colocada em prática como tal. Pelo que eu pude pesquisar sobre os dezesseis anos de existência da EFP, houve experiências diversas com a ideia de grupos, com tamanhos e funcionamentos bem distintos, mas o cartel não chegou a funcionar com consistência, ao menos não na forma que o conhecemos hoje.
Aproximadamente dezesseis anos e várias crises institucionais depois, já no contexto de uma nova fundação (1980), Lacan retoma a proposta do cartel e fornece mais detalhes. É ali que a notória expressão órgão de base é usada para designar o cartel: “(…) dou partida à Causa Freudiana — e restauro em seu favor o órgão de base retomado da fundação da Escola — ou seja, o cartel” (1980).
É claro que essa não é uma ideia simples. Ela chama atenção e interroga, pois geralmente pensamos que a base deve ser o que há de mais sólido, mais consistente, mais duro; as fundações de um edifício, se fizermos uma aproximação com a construção civil, devem ser inteiras, não podem ter um furo que seja, sob o risco de tudo desabar. Ao propor o cartel como base de sua Escola, Lacan parece não acreditar muito na engenharia civil ou, pelo menos, não querer que a Escola dele seja um edifício muito alto. Ele não tem medo de que a Escola caia, ou talvez ache que a Escola vai ser melhor se estiver caindo o tempo todo.
Em seguida, nesse mesmo texto, Lacan “aprimora” a proposta inicial e descreve o seguinte funcionamento: os participantes se escolhem livremente, cada um deve ter um produto individual, ao mais-um compete a provocação ao trabalho, o período de um ano é o prazo desejado e dois anos é o limite. Além disso, Lacan ressalta que tanto os produtos do cartel quanto as crises pelas quais ele venha a passar devem ser tratados “a céu aberto” (1980).
As indicações de Lacan fornecidas nesses dois momentos de fundação de Escolas, somadas a outros dispositivos propostos e outras considerações institucionais, nos permitem depreender que Lacan vislumbrava uma Escola que funcionasse em torno e a partir da lógica dos cartéis.
Agora, de volta ao presente.
Talvez nem todos vocês saibam que apenas na Assembleia da EBP realizada em abril desse ano foi oficialmente criada, no nível nacional, uma Diretoria de Cartéis. Antes disso, era a Diretoria de Secretaria, que eu ocupei, que se encarregava dos temas relativos aos cartéis, ainda que muitos se referissem informalmente a essa função como Diretoria de Cartéis.
Pois bem, seguindo as palavras de Lacan sobre o cartel e o meu estranhamento com o caminho inicial das minhas reflexões de mestre, cheguei à ideia, uma ideia limite sem dúvida, feita apenas para provocar o pensamento, de que a existência de uma Diretoria de Cartéis revela, por si só, um fracasso na função dos cartéis.
Permiti-me, então, embarcar um pouco mais nessa direção, ver aonde o pensamento me levaria e cheguei aqui: se o cartel é o órgão de base da Escola, como Lacan desejou, uma Jornada de Cartéis não deveria existir.
Ou seja, assim como a existência de uma Diretoria de Cartéis, a realização de uma Jornada de Cartéis também testemunharia um fracasso.
Entendam-me bem: eu sempre tive a percepção de que a Jornadas de Cartéis eram bem-sucedidas. Durante meu tempo na diretoria, essa impressão se confirmou muitas vezes: as diversas Jornadas de Cartéis realizadas pelo Brasil, que eu pude acompanhar mais de perto, eram quase sempre vividas como ricas, espontâneas, com temas múltiplos, com intervenções mais pessoais e conversas francas sobre as dificuldades do dispositivo. Enfim, coisas muitos boas, mas, de algum modo, emparedadas dentro desse espaço específico, um espaço “de cartéis”, como se essa fosse uma das muitas salas na grande casa que é a Escola.
Ocorre que o cartel não foi criado para ter um espaço específico dentro da Escola, senão para funcionar como a sua base e para furar a hierarquia. Por isso, justamente, a ideia de que o sucesso e a afirmação dos espaços “de cartéis” podem ser, ao mesmo tempo, pensados como seu fracasso.
Eu estava às voltas com esse tipo de pensamento quando me veio à mente um chiste cujo autor desconheço: “Não podemos deixar o fracasso subir à cabeça!”.
O chiste cai aqui como uma luva. Apontar o fracasso do cartel não significa afirmar que tudo está errado, que tudo deveria ser diferente, que tudo precisa ser corrigido. Isso seria, afinal, tomar o fracasso na perspectiva do mestre. Bem, mas se o discurso do mestre é a raiz do problema, logo ele não poderia ser também a solução.
Estamos diante de um fracasso que é, em sua raiz, inevitável. Dos cartéis, nesse sentido, não se espera que anulem essa tendência, mas sim que sejam capazes de a tensionar. Esse fracasso, portanto, que eu chamaria de um fracasso estrutural, não demanda ser corrigido, mas sim ser continuamente interpretado.
É isso que eu gostaria de tentar fazer, como eu puder, nos próximos minutos, a partir da ideia de que tensionar o discurso do mestre, embora seja uma função permanente do cartel, toma formas muitas distintas a cada contexto institucional, a cada momento da civilização e mesmo a cada visada singular sobre essa função. A questão que se coloca, portanto, é a seguinte: se o cartel foi criado como um antídoto permanente à instalação do discurso do mestre, como podemos pensar essa função no contexto atual da cultura e da Escola?
Para pensar isso, vou recorrer novamente à história e vou seguir o fio da expressão “a céu aberto”[2], muito marcante no momento em que Lacan propõe o cartel como órgão de base da Escola que ele estava fundando. Essa expressão certamente não é casual; na verdade, me parece ser central para compreender de que modos Lacan via o discurso do mestre operar na instituição àquela época e como desejava subvertê-lo.
O surgimento dessa expressão em 1980 sugere que os dezesseis anos de existência da Escola Freudiana de Paris não foram suficientes para enfrentar um dos maiores problemas que Lacan enxergava no funcionamento das Sociedades de Psicanálise e que ele havia descrito com acidez e irreverência – como mencionei em um trabalho anterior – no texto “A situação da psicanálise em 1956” (1956/1998), onde ele cria verdadeiros personagens de teatro para elucidar a estrutura que regia o funcionamento da IPA. É um texto importante para situar a posterior criação dos cartéis na medida em que ali se detalha o cenário que deveria ser evitado.
Lacan buscava combater um modo de constituição e de funcionamento da Escola pautado pela fetichização da hierarquia, pelo carisma improdutivo, pelo silêncio das sumidades. A essas figuras com que convivia na IPA, Lacan chamou ironicamente de “Suficiências” e assim as descreveu: “A suficiência em si encontra-se para-além de qualquer comprovação. Não tem que bastar para nada, já que basta para si mesma” (2008/1956, p. 478). Sob elas, na hierarquia institucional, encontram-se os “Sapatinhos apertados”, que tampouco têm algo dizer, uma vez que “um bom analisando não faz perguntas” (1956/1998). Justamente numa Sociedade, “cuja incumbência é manter um certo discurso”, diz Lacan, “o silêncio impera soberano” (1956/1998).
Nesse sentido, a proposta do cartel visa afastar sua Escola do trabalho de “cooptação de doutos” (1967/2008) para inscrevê-la num movimento contínuo de elaboração em torno de um ponto de impossível, ao qual todo e qualquer membro está submetido.
Esse desejo de Lacan fica ainda mais evidente quando notamos que ele não se restringia à proposta do cartel. Penso por exemplo em Scilicet, a publicação lançada por Lacan em 1968, em cuja capa ele quis que estivesse estampada a seguinte frase “Você pode saber o que pensa a Escola Freudiana de Paris”. Ou no dispositivo do passe, que embora não tenha tido, assim como o cartel, a aceitação que Lacan desejava durante os dezesseis anos de existência da EFP, visava igualmente à colocação a céu aberto das experiências de fim de análise e passagem à analista.
Desse modo, a invenção do cartel, a proposta do passe e a capa de Scilicet, somadas à descrição que Lacan faz do funcionamento da IPA, oferecem um certo retrato da paisagem institucional e refletem também, certamente, algo do contexto da época.
Creio que podemos encontrar essa dobradiça justamente no retrato que Lacan faz da Sociedade de Psicanálise em 1956. Embora ele dê grande destaque à prevalência do imaginário nesse funcionamento institucional [3], marcado pela enfatuação e pelo carisma improdutivo, trata-se de uma modalidade específica de manifestação do imaginário, própria a um contexto onde o simbólico ainda se sustenta na eficácia do pai. Não é à toa que Lacan, nesse mesmo texto, descreve o funcionamento da IPA de um modo congruente com a estrutura dos grupos artificias observados por Freud [4]. Afinal, apenas quando a aura do pai ressoa na cultura, é possível fazer crer que, por trás do silêncio e da enfatuação, está secretamente guardado o saber sobre o que é ser psicanalista.
Era exatamente nesse ponto, portanto, que incidia a interpretação de Lacan: se a relação da Sociedade, tanto consigo mesmo, quanto com a cultura, era de retenção, produzindo uma vertente imaginária da suposição de saber, Lacan convocava sua Escola ao saber exposto, um verdadeiro antídoto contra a enfatuação.
Era em relação a isso que o cartel, em grande parte, se situava.
Ocorre que o saber exposto que, naquele momento, agiu como uma interpretação é, agora, o mandamento do mestre. Hoje, parece improvável que o silêncio seja capaz de produzir o carisma e a suposição de saber. Pelo contrário, em meio à fragilização do patriarcado, vemos uma busca ininterrupta pela demonstração da autoridade que, no limite, precisa ser construída a cada vez e no próprio momento em que se enuncia uma mensagem, em que se toma a palavra. Se o silêncio poderia simular a guarda de um segredo e conferir valor ao seu suposto detentor, hoje, quem não aparece desaparece.
A diferença da civilização a respeito desse ponto é tão grande que podemos encontrar um cenário quase invertido. Ele se revela, por exemplo, no texto “O nosso sujeito suposto saber” de Miller, onde ele afirma: “Quando o mestre, hoje, exige transparência e rastreabilidade, o que podemos alegar senão a opacidade necessária à nossa prática?” (2007, p. 6).
Ou seja, hoje é o próprio mestre quem exige que tudo, tudo mesmo, esteja a céu aberto. Há inúmeras formas de ilustrar esse fenômeno, mas ele pode ser bem resumido, me parece, se observamos, por um lado, o quanto o discurso científico aliado à lógica da avaliação avançou sobre incontáveis esferas subjetivas e sociais e, por outro, o quanto a lógica da exposição permanente passou a ditar o modo de construção de identidades e das interações no grande campo da internet.
É notável a diferença com relação ao regime de saber que imperava, segundo Lacan, em uma IPA onde o argumento de autoridade era antes sustentado pelo silêncio das Suficiências.
Durante a preparação para o Encontro Brasileiro, escrevi um pequeno texto em que comparava, com algum humor, a frase de capa de Scilicet (“Você pode saber o que pensa a Escola Freudiana de Paris”) com a frase de capa do Facebook, “No que você está pensando?”, que nos convida permanentemente a publicar o que nos vem à mente. Hoje, você pode saber o que pensam não apenas a Escola Freudiana de Paris, mas também os mais de 2 bilhões de seres falantes que se servem da rede social. Estimular o “céu aberto” está longe de ser, por si só, uma subversão do espírito do tempo.
Estamos, portanto, nessa dobradiça, em que o cartel se depara, por um lado, com a Escola e, por outro, com a civilização.
Essa ideia, aliás, de que o cartel é a dobradiça entre a Escola e a civilização pode ganhar uma importante dimensão no nosso momento institucional, afinal, não apenas temos explorado há muitos anos a ideia da presença do analista no tecido social (a expressão analista-cidadão, de Laurent, é uma marca disso), como fomos instigados, mais recentemente, por Jacques-Alain Miller, a levar a psicanálise à política e a recusar, uma vez mais, a tentadora posição de extraterritorialidade.
Mas em um mundo infestado de manuais, técnicas, coachs, depoimentos, como não diluir a psicanálise ao a oferecer como uma técnica a mais? Como não ser enfeitiçado pela lógica da avaliação e dos likes? Como ir ao campo político sem ser tragado pelas paixões partidárias e pelo reino das opiniões? Se tudo está a céu aberto, a lógica do cartel ainda nos serve?
É claro que não há como fornecer respostas imediatas e prontas a essas questões. Elas são permanentes e precisam ser enfrentadas a cada vez, a cada situação. Elas nos conduzem, no entanto, a uma pergunta anterior: de que modo nossa Escola pode lidar com elas?
Uma hipótese, quase lógica, poderia se amparar nessa mesma retomada histórica que eu fiz e concluir: bem, Lacan criou o cartel (uma estrutura, pequena, instável, sem líder, provisória) para enfrentar uma forma oposta a essa, ou seja, uma pirâmide grupal forte e hierarquizada.
Pois então, diante de um mundo caótico, desregulado, verborrágico e acelerado, não deveríamos apostar em um formato lento, controlado, ponderado e silenciado?
Faria todo o sentido, mas infelizmente não faz nenhum.
Diante da tarefa que temos, que pode ser enunciada de muitas formas, mas que pode ser resumida na forte expressão recente de Miller, a de “inscrever para sempre o ensino de Lacan no discurso universal” (2017), o melhor caminho, me parece, é renovar nossa aposta no cartel.
Podemos fazer isso sabendo que o cartel, hoje, de fato se parece com o mundo lá fora, ao invés de antagonizá-lo. Pequenos grupos, reunidos por um interesse, com duração instável, sem hierarquia… Em um relatório elaborado sobre os cartéis, Ram Mandil fez uma afirmação muito precisa sobre essa questão: “Vemos nitidamente que as novas formas de manifestação ou de organização do laço social buscam negar o lugar do líder, como se o nivelamento dos semblantes fosse a melhor maneira de abordar o real em jogo” (2018).
A partir da análise que faz Ram Mandil, podemos encontrar uma nova versão do que eu chamaria de a lucidez do cartel diante do laço social: a quebra hierárquica que ele promove não caminha na direção de uma desordem precipitada ou de um questionamento histérico. O cartel “sabe”, se vocês me permitem essa personalização, que o nivelamento dos semblantes não é, por si só, resposta a nada, seja do ponto vista institucional, seja do ponto de vista da civilização.
Ou seja, embora em aparência o cartel seja homólogo ao tipo de reunião promovida de forma mais corriqueira nos laços sociais atuais – instável, temático, provisório, sem hierarquia –, ele preserva sua potência subversiva na medida em que nos aponta um modo de fazer rede capaz de preservar e apoiar a narrativa das diferenças.
É uma tarefa atualíssima. Como afirma Romildo do Rêgo Barros,
Se é verdade que nossa civilização se caracteriza por uma não resposta do outro (…) então é preciso que haja grupos que saibam manejar a ligação horizontal entre os iguais. É preciso uma nova estruturação simbólica que parta não da adesão de cada um ao chefe e sim da ligação horizontal, sem que isso se dê pela via de um “todos iguais”, que tende a restabelecer o Um sob a forma do pior. (2008, p. 58)
Nesse sentido, o produto de um cartel será feito em nome próprio, sim, pois o saber não é anônimo, mas nem por isso ele será a revelação daquilo que reside na mente isolada de psicanalista. O produto de um cartel é a narrativa de uma experiência de interação, de enredamento, das conexões que se fizeram ao longo dos encontros desse dispositivo.
O cartel é hoje nossa grande referência, nosso campo de estudos, sobre os modos possíveis de estar no tecido social e, ainda assim, produzir textos que não sejam imediatamente absorvidos, vendidos e manipulados. Ele não é apenas um dispositivo que favorece o estudo e as atividades institucionais, ele é a pesquisa, em ato, de um novo modo de tecer o laço e fazer a Escola. Por isso, ele pode ser subversivo, mesmo sendo parecido com o mundo lá fora.
Quando a Escola se lança com mais vigor rumo ao desejo de conversar com sua época, nenhum dispositivo é mais pertinente que o seu bom e velho órgão de base.