Impulsionada, provavelmente, mais pelo meu forte veio militante, aceitei participar desse fórum, sem dúvida, um desafio. Agradeço muito o convite, uma oportunidade para compartilhar angústias e trazer para o debate mais dúvidas do que certezas sobre os tempos tirânicos que estamos vivendo.
Penso que no momento duas são as perguntas que mais nos atormentam: “como chegamos a isso?” e “como vamos sair disso?”.
Não farei aqui nenhum exercício de futurologia. Para os historiadores, o limite das nossas reflexões é o tempo presente. Aliás, estudar o presente é uma conquista recente da disciplina, pois, até um período relativamente recente, a história só valia para pensar o passado, de preferência um passado bem passado. Entretanto, hoje, sabemos da relação estreita entre passado, presente e futuro. É com os pés no presente e os olhos no futuro que vou me debruçar sobre o nosso passado.
Tiranos e tiranias existem desde que o mundo é mundo. Relacionado com opressão, crueldade e abuso de poder, tirania é um termo que tem origem em um vocábulo grego e que na Grécia clássica designava um governo ilegítimo, um governo instituído de forma ilegal. Nos tempos modernos, a definição se ampliou. Um governo tirânico pode ser implantado através de uma revolução, de um golpe de estado ou, até mesmo, através de eleições.
É assustador perceber que no inicio do século XXI democracias aparentemente consolidadas foram substituídas por regimes autoritários, ultraconservadores, com matizes ou até mesmo tirânicos. Trata-se de um trágico paradoxo: essa substituição está se dando através da via eleitoral, ou seja, através das próprias instituições democráticas criadas na democracia.
Em meados do século passado, um modelo exemplar de tirania que dizimou milhões de pessoas e tentou exterminar da face da terra, judeus, homossexuais, negros e comunistas, sofreu uma estrondosa derrota. Causa estranheza que hoje, tão pouco tempo da derrota do nazismo, estejamos assistimos no mundo a ressurgência de tiranias. Essa onda ultraconservadora atinge países como a Hungria, Polônia, EUA, Rússia, Itália, Israel e mais recentemente o Brasil.
Uma concentração de riqueza cada vez maior – a maneira que o capitalismo encontrou para sobreviver – é, provavelmente, causa e consequência da ressurgência dessas novas e variadas formas de tiranias. Somado a essa concentração da riqueza, a crescente globalização, a rápida revolução da informática, as migrações em massa, a especialização e o aumento relações informais de trabalho têm revolucionado o modo de vida de milhões de pessoas. Desamparadas, desenraizadas e ameaçadas em seus valores, tornam-se presas fáceis de um discurso que criminaliza a política, nega as intermediações e transforma tiranos em verdadeiros salvadores da pátria.
Mesmo sabendo que o horizonte da democracia é o infinito e que sua construção não se faz em linha reta, aqui no Brasil, tínhamos uma expectativa, quase uma convicção, que estávamos assentando raízes de um experimento democrático, que a despeito de suas falhas e limitações, dificilmente retrocederia para um regime autoritário, tirânico, com características fascistas, como o que estamos vivendo.
Sabemos também, desde muito tempo, que a história não se repete. Entretanto, como nos disse a historiadora Heloisa Starling “por vezes a história busca emprestado ao passado”. Aqui, no Brasil, temos evidências fortes de que o passado ainda não passou. E é sobre esse passado que não passou que vou apresentar alguns ingredientes para o nosso debate.
Numa sociedade profundamente desigual, autoritária, racista, machista, homofóbica e violenta grandes são as dificuldades para se construir uma sociedade mais inclusiva, menos hierarquizada, enfim, mais democrática. Essa dificuldade, ou melhor, esse impedimento ficou evidente em alguns momentos da nossa história: nos anos 1950, no segundo governo Vargas, que acabou com o suicídio do presidente; nos anos 1960, durante o governo Jango, cujo desfecho foi o golpe de 64; e agora, após os 14 anos dos governos de Lula e Dilma, que desembocou no impeachment da presidenta. Nesses três casos as acusações foram semelhantes: corrupção e comunismo.
Tanto a escravidão como a grande propriedade – com denominações variadas ao longo do tempo (capitania hereditária, sesmaria, engenho, latifúndio) –, moldaram a nossa sociedade. Marcas fortes da escravidão e da grande propriedade continuam presentes no nosso cotidiano, nas nossas relações sociais, no nosso aparato jurídico e policial, nas nossas construções arquitetônicas: quarto de empregada e elevador de serviço, por exemplo, são peças quase que exclusivamente brasileiras. Em decorrência dessa e de outras histórias temos uma cidadania frágil, com direitos ainda deficitários, sobretudo os civis, a espinha dorsal da cidadania.
Para além do passado escravista que não passou outro ponto que gostaria trazer para o debate, e que pode explicar em parte a ressurgência da nossa tirania, é a maneira como se deu a saída da ditadura, nos anos 1980, para o regime democrático.
Sabemos que nenhum indivíduo nem nenhuma sociedade são imunes a traumas. Silenciar sobre um passado traumático não ajuda a viver o presente nem é um bom caminho para enfrentar os desafios do futuro. Em países que adotaram a tortura, o sequestro e o desaparecimento forçado como uma política de Estado, esse silenciamento pode ser devastador. Costumo dizer que a tortura é como uma tatuagem que fica eternamente cravada no nosso corpo e na nossa alma. Não responsabilizar os agentes do Estado que nos torturaram, sumiram com nossos companheiros, que continuam torturando sobretudo a população mais pobre do país, não ajuda a cicatrizar feridas, reforça o sentimento de impunidade e fragiliza ainda mais a nossa frágil cidadania.
No Brasil, a preocupação ao longo dos anos foi o de reforçar políticas de esquecimento. Assim como construímos o mito do Brasil cordial, da escravidão suave, da democracia racial, também construímos o mito da “ditabranda”.
Marco importante na nossa transição inconclusa do regime ditatorial para o regime democrático foi a Lei de Anistia, decretada em 1979, ainda em plena ditadura. Com os aparatos repressivos em funcionamento e com muitas restrições políticas, foi difícil ampliar o debate sobre os crimes da ditadura e disputar o sentido da anistia. O sentido que estava presente na nossa lei era o da primeira anistia que se tem conhecimento no mundo, a defendida pelos gregos em Atenas em 403 a.c: “não lembrar as desgraças do passado”. Também não abraçamos os ensinamentos de Paul Ricouer para quem só se supera situações dramáticas através do esquecimento libertador, aquele que é resultado de um trabalho de luto, para o qual é necessário um trabalho de memória. Outro ponto importante é que aqui, na prática, se adotou a perversa teoria dos dois demônios, ou seja, se igualou o que não é igualável: militantes de esquerda que praticaram a luta armada e agentes do Estado que praticaram a tortura. Segundo essa teoria, ambos os lados seriam anistiados.
Países da América Latina que vivenciaram experiências traumáticas, em período semelhante ao nosso, deram um tratamento às graves violações dos direitos humanos, totalmente diferente do nosso. Na Argentina, por exemplo, em 1984, um ano após a queda da ditadura foi instalada a Comissão Nacional sobre Desaparecidos. No ano seguinte, os ditadores Videla e Massera foram condenados à prisão perpétua e centenas de torturadores foram presos. No Uruguai, foram presos os ex presidentes, o civil Bordaberry e o general Alvarez. No Paraguai, em 1989, no mesmo ano que acabou a ditadura, o poder Judiciário condenou a 25 anos de prisão chefe torturas do ditador Stroessner. No Chile, em 1991, um ano após o fim da ditadura, foi instalada uma Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação. Dois anos depois, Manuel Contreras, ex chefe da DINA (Direção de Inteligência Nacional), órgão de coordenação da repressão, foi condenado a 7 anos prisão, depois perpétua. Em 1998, Pinochet foi preso em Londres onde ficou em prisão domiciliar por quase 2 anos.
No Brasil, só instalamos uma comissão da verdade quase 30 anos após o fim da ditadura, não conseguimos levar ao banco dos réus nenhum torturador e ainda estamos correndo o sério risco de vermos o ídolo do Jair Bolsonaro, o torturador coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, ser alçado à categoria de herói nacional. Em entrevista à televisão durante a campanha presidencial, em outubro de 2018, quando questionado sobre as torturas e assassinatos de inúmeros militantes realizados pelo torturador Brilhante Ustra, o general Hamilton Mourão, atual vice-presidente da República, afirmou com a maior tranquilidade: “heróis também matam”.
É bom lembrar que não é exclusividade do Brasil “esquecer” um passado que deveria ser lembrado. Um bom exemplo é a França em relação ao regime de Vichy entre 1940-1944, um período de colaboração dos franceses com o nazismo.
Aqui e alhures, como bem nos mostra Michel Pollak, o que existe é uma permanente disputa, uma verdadeira batalha de memórias, de narrativas. Para os que têm pouca voz, disputar com a memória oficial não é uma tarefa fácil. Por isso, mesmo discordando do senso comum que diz que somos um povo sem memória, reconheço que em função dessas disputas, nossa política oficial de memória não nos contempla. Por exemplo, enquanto na Alemanha e na Polônia, os campos de concentração nazistas foram transformados em museus, quantos museus ou memoriais sobre a escravidão e sobre a ditadura existem no Brasil? Aqui recorrentemente vemos antigas senzalas viraram bares e restaurantes, como nas cidades mineiras, ou antigas cadeias, que foram verdadeiras casas de horror se transformaram em casas festivas, em Casa da Cultura, como ocorreu em Recife.
Será que o silenciamento sobre o passado traumático, a naturalização da escravidão, da tortura, enfim, da violência de um modo geral, favoreceu o surgimento ou ressurgimento da atual tirania?
Se antes, mesmo numa posição menos confortável, travávamos uma disputa da memória, hoje, o cenário tornou-se ainda mais desfavorável. O atual governo, mais do que reforçar políticas de esquecimento, faz uso do que nós historiadores chamamos negacionismo histórico. Enquanto o revisionismo é um movimento saudável que faz parte do debate historiográfico, onde em função de novas questões, novos problemas, novas fontes, novos objetos de pesquisa, o historiador revê versões, reescreve a história, o negacionismo não tem base documental, distorce os fatos, falseia documentos, destrói provas para negar processos que já são consensuais.
Dando nome aos bois, o governo Bolsonaro não á apenas autoritário. Próximo da barbárie, têm fortes características fascistas e representa uma forte ameaça ao nosso projeto civilizatório. Já vimos que a história não se repete. O nazismo e o fascismo são fenômenos datados. Mas muitas das suas características se fazem presentes no Brasil de hoje. Entre elas temos: a banalização da violência que deixa de ser monopólio do Estado, a supressão violenta da oposição, o ódio à ciência e à cultura, a definição de um inimigo a quem se atribuí todas as mazelas da sociedade, o culto ao líder.
Como nos alertou recentemente Renato Janine, antes que seja tarde, “não podemos subestimar a destruição do tecido social e político, a liquidação da vida inteligente e da vida mesma”.
Para completar a dramaticidade do quadro atual, temos que enfrentar mais um mito. As narrativas quando viram mito se tornam mais perigosas e mais difíceis de serem contestadas. A sua capacidade crítica é abandonada. Bolsonaro se chama mito e é chamado pelos seus seguidores de mito. Na democracia você cobra do seu governante. Do mito não se cobra nada. O mito é uma espécie de grande pai. Consegue ser visto ao mesmo tempo como severo, tirânico e generoso. Diante de um mito, muitos se tornam “servos voluntários”. Não existe tirano, sem tirania e sem tiranizados.
Entretanto, diferente do que dizia e do que diz parte da nossa historiografia, a população brasileira em diversas vezes encontrou caminhos para enfrentar o autoritarismo, as formas variadas de tirania e derrubar mitos. Foi assim com a escravidão, foi assim com a ditadura. Provavelmente encontrará mais uma vez, ainda que dificuldades, um modo de acabar com a atual tirania.
Para concluir minha fala, vou mencionar trechos do depoimento que o coronel Paulo Malhães deu à Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, em março de 2014, ou seja, durante a vigência ainda de um regime democrático. Essa fala que tanto me atordoa e que tenho utilizado ad nauseum em diversos espaços públicos, talvez fale muito mais sobre parte do que estou tentando dizer aqui. Ao assumir a responsabilidade pelo desaparecimento do então deputado federal Rubens Paiva, preso em sua residência no Rio de Janeiro em janeiro de 1971 e cujo corpo até hoje não foi encontrado, assim como o de Fernando Santa Cruz, de Eduardo Collier e de tantos outros, o torturador Paulo Malhães, de forma didática, explicou porque, no período da ditadura, era melhor desaparecer com os inimigos do que simplesmente matá-los. Disse ele: “O desaparecimento é mais importante do que a morte porque causa incerteza no inimigo. Quando um companheiro morre, o guerrilheiro lamenta, mas acaba esquecendo. Não é como o desaparecimento que gera uma expectativa eterna”. E prossegue: “nada fiz além de cumprir meu dever. Se precisasse faria tudo de novo […]. Foi tudo racionalizado. Se precisar novamente, estou preparado. Tenho 76 anos, mas ainda posso dar instrução aos mais jovens”.
Obrigada.