Breve comentário sobre o humor
A psicanálise se apresenta como um tratamento pela palavra. Lacan foi frequente e intensamente criticado por um formalismo estrutural que deixava de lado os afetos. Mas sim, a psicanálise é uma experiência de palavra, palavras que afetam um corpo que fala e onde a dimensão real do corpo adquire cada vez maior importância.
Durante a conversação “O jogo das paixões na experiência analítica”, no XIII Congresso de Membros da EBP, uma breve referência de Marcela Antelo à preguiça como um significante que o Amo cola nas costas do escravo imediatamente me fez lembrar duas obras que, separadas por décadas, tencionam o pecado da preguiça capturada no discurso do Mestre: “O direito à preguiça” de Paul Lafargue (1), publicado no jornal socialista L’Égalité em 1880, e “O Elogio ao Ócio” de Bertrand Russell (2), publicado em 1935, nas quais a preguiça é reivindicada como um direito diante da exaltação ao trabalho advinda da moral cristã e capitalista, e o ócio enaltecido como necessidade para a atividade criativa.
Tratava-se de uma referência à Ladeira da Preguiça, uma conhecida encosta de Salvador em que do porto se alcança, rua acima, os casarões e por onde escravos subiam carregando pesados sacos de mercadorias que faziam divertir aos que assistiam suas penosas caminhadas, sob jocosos gritos de Sobe Preguiça!
Logo em seguida, essa referência ressoou numa investigação que faço acerca dos efeitos de criação, nomeação e sentido que advém das clássicas estruturas freudianas do espírito, assim chamadas em “As formações do Inconsciente” (3) – em que se apresenta o axioma lacaniano o inconsciente se estrutura como linguagem – e, em particular, àqueles em que a satisfação obtida resulta no riso – do chiste, do cômico e nas várias formas de humor.
A leitura que faço desloca-se imediatamente, justo para o aspecto jocoso e liberador alcançado pelo brado Sobe Preguiça! e estabelecido, hoje, no coletivo compartilhado pela nomeação: Ladeira da Preguiça. Sobe preguiça!, que bradada por um sujeito que sabe do esforço dispendido na subida desta íngreme rua em declive, se identifica penosamente com o esforço daquele, o escravo, que soma 50 a 60 quilos a este fardo, e na criação chistosa alcança a satisfação.
No texto de 1905 (4), Freud considerou a estrutura dos chistes em seu ponto de vista econômico, como uma forma de veicular a agressividade e de se obter satisfação pela via do inconsciente considerado à luz dos processos primários. O inconsciente se revela fugaz e inesperado nos chistes, um achado nas piadas, não sem o Outro a referendá-los.
Em seu breve texto “Sobre a Transitoriedade” (1915/16) (5), Freud aponta, no penoso desalento do poeta ou na rebelião de seu taciturno amigo diante efemeridade das coisas belas da natureza, uma exigência de imortalidade que só pode ser atribuída a um produto de nossos desejos. Mas diz Freud: o que é penoso não deixa de ser verdadeiro… Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela. O humor permite ao sujeito em sua condição de sexuado e mortal, afirmar o desejo contra a pulsão de morte que o habita.
Vinte anos depois, em “O Humor” (1927) (6) apresenta o humor sob a ótica da concepção estrutural da mente e na perspectiva de um superego afável e condescendente com a obtenção de prazer, atribuindo a ele uma dignidade que não se encontra nos chistes, que comportam sempre certa agressividade.
Então, nas mais variadas formas do humor, ligadas às identificações, a satisfação é alcançada sempre quando referendada pelo Outro.
Reconheço aí, neste brado popular Sobe Preguiça!, a alienação ao Outro e a satisfação alcançada pela via imaginária de uma identificação/desidentificação que implica um ou eu ou ele! E, na nomeação Ladeira da Preguiça, a satisfação alcançada pelo efeito de separação que se produz ao nomear, operação na qual certo acesso ao saber é alcançado pela mudança de perspectiva em que, diante dos desafios da vida, o sujeito se recusa a sofrer.
O tema de nosso próximo ENAPOL, “Ódio, Cólera e Indignação”, nos convida a tirar as consequências, tanto clínicas quanto políticas, assim como a de situar a psicanálise em relação a este tempo em que a incidência da pulsão de morte faz do sujeito da palavra um resto.
Desde alguns acontecimentos como a invasão do estúdio Charlie Hebdo em Paris por terroristas e à produção do “Somos todos Charlie!”, que ecoou como resposta, surgiu-me com insistência uma série de questões que se orientam em torno dos fenômeno do riso e de suas articulações, em tempos do Outro que não existe, com a pulsão de morte. Em seu texto “O retorno da blasfêmia”, Miller aponta que a questão será saber se o prazer pelo riso, o direito a ridicularizar, o desprezo iconoclasta, são tão essenciais ao nosso modo de gozar como o é a submissão ao Um na tradição islâmica. (7)
Da caricatura do sagrado tomada como blasfêmia aos apelidos da juventude interpretados como bullying, às piadas tornadas ofensivas e injuriosas, ou aos chistes recolhidos como sarcasmo, ou ao ato falho, os fenômenos do riso se apresentam no mundo contemporâneo, a serviço de uma segregação a cada vez menos afeita a um laço social possível e mais próxima do ódio, do racismo e da destruição do outro.
Ao afirmar a dignidade do humor, Freud aponta para uma posição na qual um sujeito pode permanecer na impotência e no velamento do real da morte ou obter um ganho de saber que lhe permita usufruir desta efemeridade que permeia a vida e a morte. Mais ainda, nos indica na relação do sujeito ao objeto, a estrutura fantasmática por meio da qual os efeitos de uma perda inauguram uma modalidade de relação do sujeito com o objeto e colocam em cena o desejo e o gozo. Trata-se aqui de saber e de gozo.
Miller em “A propósito dos afetos na experiência analítica”(8) fará do mau humor, que Lacan apresenta como um verdadeiro toque do real, um afeto que se aproxima da verdade onde as coisas nunca são como a gente quer, um signo do encontro do sujeito com o real. Então, assinala ao sujeito, o que o saber não alcança dialetizar: o gozo.
Quando o riso se enlaça ao gozo do corpo, a agressividade assume a consistência do ódio e o outro é degradado, ridicularizado, desprezado e injuriado e, talvez, finalmente destruído. Há então o riso como efeito das várias formas do humor e um riso fora de todo humor que, enlaçado ao pulsional mortífero, promoverá laços sociais ligados ao gozo, comunidades de gozo que se enlaçam no ódio ao Outro.
Lacan, nos propõe em “Televisão” (9) retirar os afetos do campo da Fisiologia e da Psicologia e localizá-los no campo da Ética do Bem-dizer onde se trata de apreender no saber, o que não se pode dizer.