Maria José Gontijo (EBP/AMP)
O Projeto de Lei 1904/2024 é uma proposta da Câmara dos Deputados do Brasil que visa a alterar a legislação atual sobre o aborto. Pela lei vigente, o abortamento legal é previsto em três situações: em gravidez decorrente de estupro, na gestação que representa risco de vida para a mulher e quando há constatação de anencefalia fetal. Nas três condições, há o direito de interromper a gravidez, independentemente do tempo de gestação. A nova proposta legislativa prevê uma mudança no Código Penal para punir quem abortar após 22 semanas, equiparando tal ato ao crime de homicídio.
Os casos de gravidez anencefálica e de risco de vida para a gestante, em geral, são descobertos no início da gravidez. Isso se deve aos exames médicos que levam ao diagnóstico precoce. Por isso, eles tendem a ser menos afetados pela proposta. Estima-se que a mudança na lei terá maiores consequências para o acesso ao aborto legal nos casos de gravidez proveniente de estupro.
No Brasil, as maiores vítimas de violência sexual, incluindo o estupro, são meninas com idade de até 13 anos, e os principais agressores são seus familiares e conhecidos próximos[1]. Na grande maioria dos casos, a violência é contínua, ocorre desde a infância, e a adolescente é mantida em silêncio mediante ameaça. Dessa forma, por desconhecimento, ou por medo, ao acontecer uma gravidez, ela é descoberta quando já se encontra visível, ou seja, após 22 semanas.
Para combater o projeto de lei, a principal palavra de ordem utilizada foi “criança não é mãe”. A frase toca no cerne do problema, ao ressaltar que a mudança na lei nega o direito ao aborto, justamente, das adolescentes vítimas de estupro, obrigando-as a terem um filho fruto da violência que sofreram. Considerando a biologia, uma criança não tem condições de ser mãe, pois a possibilidade de engravidar advém com a puberdade. Mas a frase não toma o viés factual. De fato, são púberes e, talvez, adolescentes, mas, subjetivamente, muitas delas ainda são crianças, portanto, são pessoas sem condições de assumir as responsabilidades da maternidade. Assim, tomaremos os termos da frase, a fim de destacar que, também para a psicanálise, obrigar essas meninas a terem um filho é perpetuar a violência à qual estão expostas.
Na perspectiva da psicanálise, tornar-se mãe não é algo natural. Em “Nota sobre a criança”[2], Lacan localiza a função materna no interior da família, afirmando que se trata de uma ordem que vai além da transmissão da vida e da satisfação das necessidades. Para a psicanálise, ser mãe não equivale, necessariamente, a ser genitora. Nessa nota, Lacan acentua a função da mãe como responsável pela constituição subjetiva do filho, à medida que instaura “um desejo que não seja anônimo”. Ele acrescenta que, ao ocupar tal função, os cuidados direcionados ao bebê devem trazer a marca de um interesse particularizado. Portanto, trata-se de uma função relacionada ao amor e ao desejo, não à procriação biológica. Ou seja, mesmo que uma criança, ao entrar na puberdade, tenha condições fisiológicas de gerar um bebê, isso não equivale a tornar-se mãe.
Para Freud e Lacan, antes do início da vida afetiva e sexual, é preciso construir as fantasias que preparam o ato. Lacan observa que os adolescentes não pensariam em fazer amor sem o despertar dos sonhos[3], sem a incidência do real da sexualidade na puberdade. A adolescência é um modo de construir um sintoma para a puberdade[4], possibilitando a mudança da sexualidade infantil, auto-erótica, para a escolha de um objeto sexual[5].
Mas, e quando o ato acontece sem a proteção das fantasias, como é o caso das meninas vítimas de estupro, ainda crianças, expostas ao abuso sexual?[6] E quando dessa violência resulta uma gravidez? Para a psicanálise, o efeito dessa espécie de atentado sexual não é o trauma, pois este último diz respeito ao furo próprio da sexualidade. A hipótese levantada aqui é a de que a exposição à violência sexual na infância dificulta ou, mesmo, impossibilita a latência, e isso terá consequências na construção da adolescência, tão importante para a vida adulta. A latência é um tempo lógico importante, pois indica que a criança encontrou um modo de construir sua metáfora infantil, ou seja, seu lugar no desejo do Outro, assim como pôde formular, por meio das fantasias, uma resposta ao sexual, sempre traumático. Calar as questões da sexualidade infantil durante a latência permite à criança fazer uso da satisfação sublimatória, recurso importante, também, para sintomatizar a puberdade na adolescência.
A partir das considerações acima, decorre a pergunta: como sublimar a sexualidade estando exposta à violência sexual? Que despertar das fantasias será possível nessas circunstâncias? Tal despertar está implicado na construção, pelo sujeito adolescente, de um modo de fazer uso do fantasma, reconfigurando-o em direção às responsabilidades do adulto: o ato sexual e uma de suas consequências, a possibilidade de ser mãe. Ou seja, o desejo e o amor implicados. Portanto, a exposição ao atentado sexual incide no despertar, por isso a frase “criança não é mãe” ganha valor, também, na perspectiva da psicanálise.