Cassandra Dias (EBP/AMP) e Mônica Hage (EBP/AMP)

Imagem: Viki Olner
O Projeto de Lei 1904/2024, que está tramitando no Congresso Nacional, agrava as penas para abortos já considerados ilegais, equiparando-as às penas de homicídio, e criminaliza os abortos considerados legais, quando praticados após 22 semanas de gestação. Essa criminalização de mulheres e meninas vítimas de violência sexual, além de ser um retrocesso na luta pelos Direitos Humanos, instala-se como mais um golpe violento contra a liberdade da mulher, uma vez que a “reestupra” em sua dignidade e em sua liberdade de poder decidir sobre seu próprio corpo.
A proposta deste número da Correio Express é acrescentar ao debate a contribuição da psicanálise de orientação lacaniana, tanto em relação aos aspectos concernentes ao tema da violência contra a mulher, como também, e principalmente, às consequências clínicas dessa violência quando ela atinge crianças e adolescentes.
As questões relativas à violência contra a mulher atravessam as diversas culturas e será preciso que nos desembaracemos do “mito da simetria e da complementaridade entre os sexos”[1], pois sem isso não haverá como “entender a frequência tão assimétrica e não recíproca do ato violento contra as mulheres”[2]. Como entender essa violência? O que estaria em jogo aí? Qual a contribuição da psicanálise nesse debate?
Freud, em 1905, ao localizar a sexualidade nas crianças, deslocou a concepção acerca do sexual e subverteu radicalmente a relação do homem com a natureza. A sexualidade tem um caráter de prematuridade para o ser humano. O corpo se constitui enquanto erógeno a partir do encontro com o sexual, sempre traumático. E quando desse encontro a violência se acrescenta? Por que poderíamos defender a ideia de que “criança não é mãe”?
O estupro, essa experiência invasiva, rompe de forma abrupta a infância. Retira violentamente de uma criança a possibilidade de que ela possa construir um espaço psíquico que aloje o enigma do sexo. O horror perpassa o corpo aviltado e machucado fisicamente, mas, sobretudo, rouba a sua infância. E quando, para além do traumatismo mental advém uma gravidez? Poder-se-ia esperar que uma menina tivesse condições de abrigar em seu corpo o fruto dessa violência? A posição materna pode ser vivida por uma criança?
Convidamos quatro colegas da EBP a entrarem conosco nesse debate, uma vez que nos interessa refletir, a partir da perspectiva clínica, a respeito do que os psicanalistas pensam sobre a violência que atinge as crianças e, em particular, as meninas vítimas de situações de estupro e que engravidam.
O texto de Analícea Calmon, ao fazer um percurso em Freud, aponta que, embora desde 1905, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, ele destacasse que a sexualidade nas crianças não era uma aberração, como se pensava na época, mas sim um atributo disposicional, ela é diferente da sexualidade nos adultos. Essa sutil distinção é o que servirá para Analícea sustentar o seu argumento de que “criança não é mãe”, posto que “a sexualidade na criança passa por etapas, uma das quais é a compreensão da maternidade como condição da mulher”. Por fim, ela questiona se, ao contribuir para que uma criança leve a termo uma gravidez causada por um estupro, não estaríamos também praticando um ato violento.
Maria José Gontijo, ao argumentar que se tornar mãe não é algo natural, retoma Lacan em “Nota sobre a criança”[3], onde ele localiza a função materna no interior da família e afirma que se trata de uma ordem que vai além da transmissão da vida e da satisfação das necessidades. Dessa forma, trata-se de uma função relacionada ao amor e ao desejo, e não à procriação biológica. Ou seja, mesmo que uma criança, ao entrar na puberdade, tenha condições fisiológicas de gerar um bebê, isso não equivale a tornar-se mãe. Gontijo, ao destacar também a importância da construção das fantasias antes do início da vida afetiva e sexual, aponta para as graves consequências que poderão advir quando o ato sexual acontece sem a proteção delas, no caso das meninas vítimas de estupro.
Cássia Rumenos Guardado divide sua reflexão sobre o tema em duas notas: a primeira destaca o repúdio de vários setores da sociedade civil em relação ao projeto de lei, que se fundamenta no caráter de violação dos direitos humanos, levando em consideração aspectos constitucionais, penais e criminológicos. A segunda nota interroga o campo do desejo e sua articulação com a experiência da maternidade/paternidade, que pressupõe que ele não seja anônimo; essas posições não são sem consequências na vida de um sujeito, sejam quais forem as circunstâncias.
Já Tatiane Grova, em seu texto, se propõe a pensar sobre a diferença entre o adulto e a criança, a função do adulto e a peculiaridade do lugar do feminino e das mulheres. Ela situa que as mulheres, os loucos e as crianças são vítimas usuais de violência na civilização, na medida em que haveria “um impossível de simbolizar e de tornar familiar”. A autora nos convoca ao “esforço de poesia”, a partir da psicanálise, na oferta “de lugares em que o que faz fratura na coesão de cada um encontre um lugar e um destino que ressoe em outras possibilidades que não a da violência”.
Agradecemos especialmente à artista Viki Olner que nos cedeu, gentilmente, a imagem para esta edição.
Convidamos vocês a seguirem conosco nessa leitura, que é também um convite à reflexão sobre um importante tema concernente a todos nós.