Cássia M. R. Guardado (AME da EBP/AMP)
- Projeto de Lei 1904 / 2024[1]
Das inúmeras manifestações de repúdio ao Projeto de Lei 1904/2024, por parte de vários setores da sociedade civil, gostaria de destacar alguns aspectos do parecer técnico-jurídico da comissão criada pelo CFOAB e formada só por mulheres, que foi aprovado pelo Conselho Pleno do CFOAB em junho deste ano e encaminhado ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, como contribuição da advocacia nacional para uma “decisão consistente” da Câmara, recomendando o arquivamento de tal projeto em face de sua inconvencionalidade, inconstitucionalidade, e ilegalidade. Diz o parecer: “A criminalização pretendida configura gravíssima violação aos direitos humanos de mulheres e meninas duramente conquistados ao longo da história, atentando flagrantemente contra valores do Estado democrático de direito e violando preceitos preconizados pela Constituição da República de 1988 e pelos Tratados e Convenções internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Estado brasileiro”.
Ao apresentar o documento, a conselheira federal Silvia Virginia de Souza, presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH), sublinhou que “foi feita uma análise técnico-jurídica, abordando o direito à saúde, o Direito Penal e o Direito Internacional dos direitos humanos, levando em consideração os aspectos constitucionais, penais e criminológicos do texto.” E destacou que “o posicionamento do grupo não se confunde com posicionamento contra ou a favor da descriminalização do aborto.”[2]
Numa passagem anterior do documento, o presidente nacional da OAB, Beto Simonetti, destacou que “a decisão da Ordem não levou em conta debates sobre preceitos religiosos ou ideológicos, e que o parecer é exclusivamente técnico, do ponto de vista jurídico.”[3]
Destaco esses aspectos do documento do CFOAB de junho deste ano e acrescento o que disse em maio, também deste ano, o pastor Ed René Kivitz, em entrevista a Marcelo Tas, no programa “Provocações”, por ser uma ideia legitimamente democrática, para além de toda consideração religiosa ou ideológica, ou mesmo técnica ou jurídica. O assunto foi reiterado no mesmo programa, no dia 22 deste mês, em nova entrevista com o pastor, que foi expulso de sua congregação religiosa em razão de suas opiniões.
Disse o pastor, quando o entrevistador aborda o tema da legalização do aborto: “Legalização, não, porque não sou a favor do aborto. Descriminalização do aborto, porque não posso criminalizar quem não tem a mesma fé que eu.” Posso, em nome próprio, acrescentar: quem não tem a mesma ideologia que eu, a mesma visão de mundo, os mesmos ideais, e, last but not least, o mesmo desejo que eu, observados e respeitados os preceitos éticos do laço social e do respeito ao outro.
- Um desejo decidido, e que não seja anônimo
Sabemos, com a psicanálise, que a escolha pela maternidade, e mesmo pela paternidade, não é uma escolha qualquer e que, em muitos casos, ela não é uma escolha fácil, podendo pôr em risco a integridade física e psíquica de uma pessoa, muitas vezes de forma grave e irreparável. Por que então alguém, ou um grupo, ou uma orientação, ou uma ideia seria mais determinante e obrigatória do que a decisão do próprio sujeito implicado na situação? Mais ainda, em circunstâncias adversas, perigosas e violentas, muitas vezes criminosas, como vimos nas guerras étnicas de triste e recente lembrança, configurando violações dos mais básicos preceitos humanos? E se ressaltarmos aqueles cometidos por pessoas próximas, da família, como ocorre na maioria dos casos em nossa realidade? O que justificaria uma tal imposição ao direito de cada um de ter um corpo e de poder decidir em relação a ele, mesmo nos casos em que não há violência, violação ou crime? Seria só em casos graves, criminosos ou hediondos, que uma pessoa teria direito a decidir sobre seu corpo, mesmo em relação ao que é a vida e quando ela de fato começa?
Em contrapartida, temos as experiências de maternidade, como também de paternidade, advindas de um desejo decidido e que não é anônimo, mas nem por isso perfeito e puro, que alimentam a vida, o entusiasmo, o prazer, e a satisfação de ter um filho, de criá-lo, de amá-lo e de cuidar dele, pelo tempo necessário. Como uma criança, ou uma adolescente, ou uma mulher pode ser obrigada, ou criminalizada e penalizada por não ter esse desejo?
Esses são os questionamentos que as pessoas lúcidas e responsáveis têm feito em relação ao insano projeto de lei que aguarda, na Câmara dos Deputados, a tramitação de um pedido de audiência pública já aprovado em agosto.