Analícea Calmon (AME da EBP/AMP)
Eis um tema que, apesar de enunciado sob a forma de uma negação, suscita, de imediato, duas interrogações: o que é ser criança? e o que é ser mãe? Ao trazê-las para o campo da psicanálise, reportamo-nos a um século atrás, quando Freud, contrariamente ao pensamento da época – a criança é um adulto em miniatura – alojou a criança em um novo lugar, tomando a sexualidade como referência.
Em 1905, ele dedica o segundo dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade à sexualidade infantil[1]. Nesse ensaio, diz que a sexualidade nas crianças não é uma aberração, como se pensava na época, e, sim, um atributo disposicional, porém diferente da sexualidade nos adultos.
Em 1924, ao escrever sobre a organização genital infantil, Freud enuncia que a principal característica da ‘organização genital infantil’ é a sua diferença em relação à organização genital do adulto. Tal diferença, dentre outras coisas, incide na aptidão para a maternidade, e é assim enunciada: a primazia dos órgãos genitais “a serviço da reprodução é a última fase através da qual passa a organização da sexualidade”.[2]
Tais pressupostos atravessaram o século XX e até hoje se mantêm, sustentados pelos avanços da teoria e conjugados com a prática clínica, que nos faz entender ser o encontro com o sexual sempre precoce e de natureza traumática, evidenciando um certo desencontro entre o que se passa no corpo – sede do encontro com o sexual – e a sua representação psíquica. Chega-se, então, a uma das perguntas encontradas no argumento desta revista: e quando a esse encontro sexual a violência se acrescenta?
Na época em que vivemos, a violência tem feito parte do cotidiano, sendo as crianças um dos alvos mais atingidos. Vemos isso naquelas que chegam aos nossos consultórios, sempre trazidas pelo Outro e referidas como objetos; e também nas que se tornam objetos de reportagens na imprensa falada e escrita. O que nos conduz a outra questão, também encontrada no argumento: e quando, para além do traumatismo gerado pela violência, advém uma gravidez?
Sendo a gravidez um fenômeno corporal, inerente ao mundo humano e ao mundo animal, o que diferencia e caracteriza a gravidez nos seres humanos é o fato de estarmos inseridos na linguagem e, portanto, no Simbólico. Mas é exatamente na conjunção do Simbólico com o Imaginário que acontece a depreciação das mulheres, o que Freud procurou entender partindo da distinção anatômica entre os sexos, com suas respectivas consequências psíquicas. Uma delas é o modo singular como cada criança constrói o próprio espaço para alojar o enigma do sexo.
Com relação à violência, uma notável diferença é que nada existe de ‘instinto natural’ na violência humana, tal como no reino animal. Assim, constatamos, em relação à violência humana na contemporaneidade, uma série de atos que têm atingido crianças, causando intenso sofrimento. Dentre esses atos violentos destacamos o estupro, ao tempo em que interrogamos: como é possível entender o funcionamento de um ato, vindo de um ser humano, com características tão evidentes de selvageria animal?
Tal ato, caracterizado por um excesso de gozo e pela ausência de mediação simbólica, além de atingir física e cruelmente o corpo de uma criança, afeta-a de modo indelével e ressoa fortemente no âmago de sua singularidade.
Desde Freud, sabe-se que a sexualidade na criança passa por etapas, uma das quais é a compreensão da maternidade como condição da mulher. Eis um ponto delicado, em função da possibilidade de um estupro em crianças do sexo feminino gerar uma gravidez. E esse fato tem ocorrido com frequência, a ponto de movimentar várias instâncias, por exemplo as jurídicas e as religiosas, que têm se ocupado em discutir a manutenção ou a interrupção desse tipo de gravidez.
Quando a discussão é trazida para o campo da psicanálise, é preciso levar em conta as definições de violência, de maternidade e de infância. A partir daí, abre-se uma gama de discussões e de considerações que, ao se voltarem para o enunciado “criança não é mãe”, suscitam a seguinte interrogação: contribuir para que uma criança leve a termo uma gravidez causada por um estupro não teria a mesma natureza de um ato violento?