Partiu, a roupa do corpo
a esperança na manga.
Partiu, no vidro dos olhos o rio,
no fundo a lembrança:
àquele que roga
a fé́ não costuma falhar.
E canta.
(Marlon Almeida)
Cristina Duba (EBP/AMP)
A questão dos negacionismos contemporâneos[1] convoca os psicanalistas de um modo específico. Não basta para a psicanálise reduzi-la a uma espécie de acontecimento que explodiu no período pós-II Guerra Mundial, centrado na negação do Holocausto. Embora traga esse emblema – essa origem no universo do debate acadêmico e intelectual, à sombra de intensas disputas ideológicas –, o negacionismo revelou faces pluralizadas e se propagou e se infiltrou em diversas áreas do conhecimento e em seus meios de divulgação, em formas diversas de viver. Nesse quadro geral, uma vez que é sempre de uma espécie de generalização que se trata na questão dos negacionismos – e gostaria, portanto, de manter a forma plural – o que pode interessar particularmente à psicanálise?
Como o próprio termo negacionismos insinua, negar uma evidência evoca experiências muito sensíveis e constitutivas do campo da psicanálise. Não à toa, Freud escreve em 1925 o artigo “A negativa”[2], em que retorna à questão da constituição subjetiva e da formação da realidade. Ele o faz exatamente quando se ocupa de questões vitais de seu tempo, nos entreguerras, ao discutir o mal-estar na civilização, o desamparo, o fracasso da razão (que naquele momento relaciona à ilusão da religião) e, principalmente, ao afirmar, em “Psicologia das massas e análise do eu”[3], que a psicologia social é a psicologia individual. Freud está então desde a origem da psicanálise às voltas com um fundamento da psicanálise que será enunciado no futuro por Lacan com a noção de extimidade e que acompanha, como uma espécie de veia principal, sua obra em toda a abordagem do “dentro” e do “fora” na constituição do sujeito (eu): em poucas palavras, a estranha presença do exterior no interior do eu e vice-versa. Assim, podemos tratar, do ponto de vista da psicanálise, a questão da negação a partir de uma aproximação e de uma diferença, visando distingui-la de uma forma de negacionismo. Em rápidas palavras, em uma primeira perspectiva, a negação é o princípio da constituição do eu, na medida em que o Eu introjeta aquilo que lhe é agradável e ao mesmo tempo rejeita o insuportável. Com esse movimento da vida, estamos lançados de imediato a uma fratura com o que nos é estranho e que podemos chamar de base da segregação – rejeitar o gozo do outro, seu modo de existir. É claro que essa expulsão não é absoluta, deixa um resto ineliminável, resto do outro em nós, um gozo de fora, um gozo do Outro, um gozo estranho que resta em cada um. A psicanálise então nos remete a lidar com essa experiência do gozo estranho, essa presença do exterior no interior. A extimidade, como nomeamos acima, é essa presença exterior no mais íntimo de cada um: infamiliar, objeto a, angústia. É nesse movimento, portanto, de eliminar o gozo do estranho, torná-lo inumano, que reconhecemos a raiz e o campo da segregação. A generalização dessa segregação de estrutura, fundante, sob a forma de um racismo, a positiviza, constituindo um racismo de base, de “terra e sangue”, que localiza um inimigo exterior contra o qual se encarniçar, buscando eliminá-lo. É a base comum que enlaça o fascismo e os negacionismos. Tento então fazer uma distinção entre o que é a negação para a psicanálise e o que é o movimento sistemático e reiterado de negação próprio dos negacionismos.
Os negacionismos se caracterizam como um movimento pluralizado e generalizado de negar um fato histórico ou uma evidência científica, uma disposição subjetiva de substituí-lo por uma versão conveniente, de modo a eliminar um mal-estar, um incômodo, uma mancha numa certeza subjetiva. Assim, aqui, não vamos nos referir às manipulações de grupos econômicos que na máquina furiosa do capitalismo negam a crise climática, produzindo versões pseudocientíficas a fim de alimentarem sua política de morte. Aqui nos interessa o esforço de esboçar o desenho do mecanismo subjetivo que sustenta a posição negacionista nos sujeitos contemporâneos. Não à toa isso se intensificou nos últimos anos e pudemos acompanhar esse fenômeno no Brasil a partir do bolsonarismo, quando ele assumiu sua forma mais delirante de produção de certezas (mais do que a tradicional razão cética que costuma levar o crédito pelo surgimento de negacionismos). Ou seja, se à luz da razão, na perspectiva iluminista, é-nos necessário relativizar a prática e o saber científico, à luz de uma certa desrazão, que acometeu a tantos, num movimento de massa, foi preciso desacreditar a razão e promover versões loucas, movidas pelo anseio por um pai tirânico.
A pandemia. Ora, justamente uma pandemia de origem desconhecida confrontou os sujeitos com uma espécie de impossibilidade. Como um evento paroxístico, fora da rotina, atravessou “os trabalhos e os dias”[4] de cada um com uma imprevisibilidade inédita. Um acontecimento que, embora encontre parentesco com uma guerra, que revira a rotina e instala a dimensão do inesperado que justamente a rotina visa regular, se diferenciou pela urgência do isolamento. Não há dentro nem fora no tempo de uma pandemia, e disseminaram-se então certezas loucas nesses tempos de desamparo.
A linguagem e o esquecimento. Vivemos assim tempos em que a relação com a verdade, não-toda, experimenta um declínio. Reduzida às narrativas, a verdade, bem como o fato, torna-se grosso modo restrita à sua face de mentira, na medida em que se perde a consideração pelo real em jogo. Se toda verdade é mentirosa, como nos diz Lacan, ela é não-toda mentirosa, uma vez que há real. Então ao esquecer a sua face de verdade em questão, a linguagem tende a ser destituída desse vazio metafórico, esse não todo, que a vivifica e então se comprime em clichês, slogans, banalidades ou mesmo insultos mortificantes, reduzidas de enunciação e agitadas pela vontade de destruição, pela pulsão de morte. Com poucas palavras para dizê-las, as perguntas se refugiam nas certezas negacionistas ou na idiotia do ceticismo automático.
Um fenômeno de massa, amplificado pelas incertezas de um tempo inédito, os negacionismos transmitem na linguagem de nossos tempos o horror para o qual não se tem palavras. Assim, para além do espanto que causam aos olhos esclarecidos, exigem de cada um o esforço de tradução dos murmúrios involuntários que se imiscuem nessa linguagem e que podem com alguma sorte ser ouvidos, dado que a verdade, na sua estrutura de ficção, é não-toda mentirosa.
outono deságua
o grito líquido
das nuvens
(Luís Dill)