Rio Grande
Equilibrado na cumeeira de um telhado
um homem esmurra
as telhas afogadas pela enchente.
Arrebenta.
Do ventre dos escombros
nasce um cão.
(Dani Langer)
Cristiane Barreto (EBP/AMP)
Enxurrada de notícias e de imagens invade os olhos, que respondem com lágrimas (o ínfimo das águas). Assistíamos a uma torrente de perdas em meio ao excesso que invade. O Guaíba transborda, alarga seu leito, seu ritmo. De onde vem sua fúria mansa? O rio não é o mar, que, como apreendemos com o sobrevoo de Lacan, faz apagamentos, ranhuras, desenha litoral. Um rio não interrompe seu curso.
Com as águas do Guaíba e os rastros deixados pelo que devorava no caminho, perdemos rapidamente a ilusão de que a crise climática não nos arrastaria. A tragédia com as enchentes no Rio Grande do Sul atingiu efetivamente 2,3 milhões de pessoas, deixando 95,7 mil desabrigados, sendo que 157 pessoas morreram e muitas outras estão desaparecidas.
O salvamento de um cavalo castanho, elegante e atônito em telhado cercado pela ausência do deserto de chão, comoveu o país. Talvez por apontar possibilidades de rever o curso do tratamento ao irreversível da relação do homem com a natureza que o desabita. A força das pessoas para recuperar, limpar, chorar vidas e objetos carregados de afetos que se juntam ao longo do tempo ensinou que o limite das águas pode baixar, mas exige que recuperemos também a política de como viver juntos, ainda, neste mundo destruído a passos largos.
Ailton Krenak, em um programa de televisão sobre as enchentes, disse não acreditar em “um novo mundo”, uma vez que o mundo não é como um “sapato velho que possamos trocar por um novo”, e que teremos que “resolver o que faremos com esse que estamos estragando”.
Uma cidade chamada Estrela desapareceu. Cidades inteiras deixaram de existir. A cidade deve ser, diz Emanuele Coccia, “o que torna possível a contemporaneidade da natureza. A natureza não é a pré-história da civilização”, mas sim, sempre, “projeção futurística do presente, sua metamorfose”[1]. As paisagens da literatura, da labuta real, os Pampas gaúchos ameaçados. Assim, foi inarredável o pensamento a respeito das catástrofes anunciadas de cidades que podem ser engolidas pelo mar, de florestas desmatadas por garimpos ilegais e por plantações desmedidas de eucalipto e de soja; das cidades que podem ser cobertas em segundos pelo rompimento das barragens de rejeitos de minério. O futuro e o passado se coadunam.
No Museu do Amanhã, na semana seguinte à catástrofe, o cacique Raoni, 92 anos, participou da Semana do Meio Ambiente, endossando a tese da tragédia do Rio Grande do Sul como consequência da ação humana destrutiva e, em intenção de explicação e de alerta, conta-nos: “Eu conheci muitos espíritos de água e floresta. E o discurso deles é o mesmo: se eles continuarem sendo ameaçados, vão atacar. Isso não é bom para nós”.
Freud, ao pensar sobre o mal-estar na civilização, refere-se a como os rios eram tratados em países com ‘alto nível de civilização’: “os rios que ameaçam inundar as terras são regulados em seu fluxo, e sua água é irrigada através de canais onde ela é escassa”, e coloca em relevo a “tendência inata para o descuido”.[2] O homem avançou contra a natureza. Como retorno, o real insiste: o poder da natureza é superior e continua sendo fonte inesgotável de mal-estar.
Após assistir na mídia o relato de um menino sobre como sobreviveu por dias em cima de uma árvore, junto ao avô e à avó, decidi não acompanhar mais as reportagens. Ele contou do avô levantando-o até um galho mais alto e forte, do quão difícil era se segurar ali, e do esforço do avô para amparar a avó, levada pela correnteza. Ao final da entrevista, com a dor que não retirou de seus olhos o desejo de vida, declara em tom decidido e grato por continuar: “mas é isso, estamos vivos”. E como é vida, afinal? O menino salvo pelo não degradado do pai, por um galho (um quebra galho) e pela força da vida nas mãos, por um fio da correnteza desmedida. Solitário, no fundo, o menino que assistiu à superfície devastadora do rio.
Difícil nomear o que está em cena em dias que remetem à impossibilidade de adiar o fim do mundo. A ciência torneada pelo capital faz cair do céu uma chuva torrencial também de objetos. Somos inundados por esses pedaços de real, arrastados em enxurradas de gozo.
Foi-se o tempo em que o real retornava sempre ao mesmo lugar e podíamos esperar estações do ano bem demarcadas. “O real se disfarçava de natureza”[3], permitindo calcular o momento ou prever o estrago.
“O real escapou da natureza”[4]. Estamos submersos na época do real sem lei. Não seria o real em jogo na tragédia do Rio Grande do Sul mais bem caracterizado como o real sem lei, com o fato inesperado de os riachos que desembocam no Guaíba provocarem inundações sem precedentes, se essa possibilidade não tivesse sido prevista? Eventos como esse parecem estar entre o trágico e o catastrófico. A enchente do sul é semelhante ao rompimento das barragens em Minas, embora seja mais difícil ver a responsabilidade do homem, a não ser através dos efeitos.
O real é aquilo que “resta do desvanecimento da natureza”[5], resto desordenado por estrutura, com consequências desastrosas decorrentes das modificações sem limite que tipificam a dupla ciência e capital.
Lacan apresentou o inconsciente derivado de lalangue, uma língua formada de seus acasos, cacos, uma contingência que atinge ou afoga o corpo. Interessa não um saber no real, mas o saber sobre o real. Importa saber ler com o referencial da política do sintoma a cidade atravessada pelas águas, sujas ou cristalinas, que levam as construções edificantes e as menos nobres, mas não menos importantes para o que faz a vida pulsar: o restinho das pequenas coisas que se guardam em caixas, os livros, os discos e o nada mais que cada um recolhe e retém para sobreviver com esses objetos perdidos, tão nossos e também dos outros que nos atravessam e inundam.
O real lacaniano é o furo no saber, que leva a querer saber sobre a zona opaca onde constatamos “a ausência absoluta de caridade, de fraternidade, de qualquer sentimento humano”, acentua Miller[6]. Como lembra Iordan Gurgel, citando Galeano, “se a natureza fosse um banco, já a teriam salvo”[7]. Testemunha-se, então, a impotência do capitalismo e da ciência. Cabe à psicanálise viver as metamorfoses das cidades e se dedicar aos impasses que o real impõe a cada um. O que se foi com as águas do Guaíba é o que restou em nós.
Enchente
e deitou-se a chorar
o céu de luto
como se nem jamais
fosse amainar
somos dois terços d’água
às vezes mais
(Jorge Rein)