Poema interativo
“Não é hora
de apontar
os culpados.”
É hora
de ________
os culpados.
(Ricardo Silvestrin)
Fabiola Ramon (EBP/AMP)
Nada barra a maquinaria do capitalismo e sua aliança com o discurso da ciência. Essa aliança inscreve um real que se apresenta, a céu aberto, cada vez mais como catástrofe. Não se trata da catástrofe da tragédia. Como pontuou Lacan, destacado por Dessal, “o homem moderno perdeu o sentido da tragédia” e “tem encarnado a morte de Deus para colocar em seu lugar a Ciência”. A tragédia cedeu lugar à ideia de catástrofe iminente, decorrente de uma desordem que “nos empurra para o abismo do real”[1].
A partir das deduções lógicas de Lacan, sabemos que o discurso da ciência foraclui o sujeito[2] e que o capitalismo exclui a dimensão do amor[3]. Nesse casamento, a pulsão de morte se manifesta como motor.
Essa aliança é o próprio discurso do mestre contemporâneo, comandado pelo mercado. Um S1 que gerencia economia, vida social e política, corpos, subjetividades e, atualmente, os efeitos climáticos e as catástrofes.
Nada barra essa aliança, exceto, supomos, a catástrofe. Enquanto ela vai acontecendo aos poucos, diluída em diversos lugares e atores, se apresenta como pedaços de “fim de mundo”: nas inundações das cidades, nas barragens rompidas, no descontrole do fogo nas matas, no sequestro da dimensão subjetiva pelo avanço tecnológico, enfim, em índices da “invasão do real”[4].
A psicanálise não nos salva das catástrofes, mas pode nos ajudar a lançar luzes sobre elas.
Objeto do Capitalismo
Em 1972 Lacan destacava o sucesso do discurso do capitalista, que, mesmo astucioso, está condenado a furar, é insustentável. Ele “é simplesmente uma inversão, bem pequena, entre o S1 e o $ (…) que é o sujeito (…) isso basta para que ele funcione como sobre rodas, não poderia andar melhor, mas, justamente, anda rápido demais, se consome, se consome tão bem que se consuma”[5].
O que e quem se consome na medida em que se consuma? Trata-se do próprio sujeito, que, no lugar de agente, rejeita a castração. Está em jogo a Verwerfung, a rejeição para fora de todos os campos do simbólico[6].
Os dejetos das enchentes, os rejeitos das barragens, a poeira das fumaças, as vidas consumidas e guiadas pelos algoritmos da internet são restos de um mesmo objeto, cujo nome é dado pelo discurso que o comanda: mercadoria. É o próprio sujeito consumido pelo mercado, o sujeito enquanto mercadoria. Me parece uma decorrência lógica daquilo que Miller indicava sobre a conexão entre sujeito e objeto no capitalismo, diferentemente do discurso do mestre, onde há ruptura entre eles[7]. Nesse sentido, o objeto do capitalismo atual é o sujeito. Será que poderíamos dizer que vivemos tempos de “pedaços de fim de mundo dos sujeitos”, nos quais se perde a dimensão de fazer um mundo próprio? Me parece que alguns dos novos sintomas têm dado pistas sobre isso. É importante lê-los lúcidos desse real que transborda.
A psicanálise não salva, mas salvaguarda a dimensão do sujeito. Ela subverte a lógica capitalista, colocando uma barra entre sujeito e objeto, e nos ajuda a ler as ameaças ao campo subjetivo.
Capitalismo verde
Ainda com Lacan, quando aponta para a astúcia do discurso capitalista, destaco um tema atual que concerne aos recursos naturais: a transição energética, acordada internacionalmente na COP 28 (Cúpula do Clima). A transição da energia fóssil para novas matrizes energéticas foi noticiada com entusiasmo e em conformidade com certa suposição de que os desastres climáticos colocariam uma barra nos modos de produção de energia.
Quando nos aprofundamos, verificamos nas propostas das novas matrizes energéticas uma forma de o mercado se reorganizar. Há um paradoxo que esconde uma voracidade do mercado[8]. O que está em marcha potencializará a exploração predatória dos bens naturais, pois a nova matriz é baseada em minérios, matérias-primas dos geradores de energia: baterias de carros elétricos, hélices eólicas, placas solares etc.
Um passo astucioso do mercado, com um novo significante mestre: mercado verde, que remeteria à ideia de sustentabilidade.
Se a revolução industrial fez revelar a expropriação do trabalho humano, o mercado dos tempos de crise climática revela algo além. A transformação em mercadoria se esparrama pelos corpos, pela terra, pelo subsolo. Uma área estratégica dessa expropriação é a Amazônia.
Baseadas no discurso “verde”, as concessões de exploração das mineradoras se expandem. Há ainda o Projeto de Lei 191/2020, para regularizar a mineração em terras indígenas [9]. A mineração traz impactos perniciosos, por conta do uso abusivo da água, intoxicação do solo, remanejamento e extermínio de povos originários etc.
Mudamos a matriz energética, mas não cedemos em gozo. O que se visa é a preservação do consumo em larga escala e dos detentores dos meios de produção da nova energia.
Não sem motivo, os povos originários estão na ponta dessa guerra perdida. Para eles, não se trata de uma diferença ideológica. Terra, territorialidade, solo e subsolo são fundantes de suas línguas, de seus corpos e da sobrevivência para além da cultura; são o próprio sagrado. Terra não é propriedade. A forma como a concebem é oposta à astúcia do mercado. Ao escutarmos como interpretam o mercado, podemos aprender algo da lógica do discurso capitalista e de como ele nos afeta também.
A interpretação que Davi Kopenawa faz do “homem branco da mercadoria” converge com a leitura da psicanálise de que o objeto do capitalismo atual é o sujeito. Davi diz que quando os brancos sonham consigo mesmos, sonham mercadorias[10].
Apesar de serem discursos diferentes, há algo que conecta o dizer da psicanálise e o dizer dos povos originários em relação ao movimento destrutivo do capitalismo atual, na medida em que, cada um à sua maneira, não rechaçam a dimensão do vivo pulsional na experiência humana nem a alteridade. Eles estão na base da estrutura de cada um desses discursos, apesar das diferenças. O primeiro, pela via do amor ao inconsciente e o segundo pela via do sagrado. Não sem razão, concebem o sonho como ponte para o real, posição ética absolutamente diferente do pesadelo catastrófico trazido à tona pelo mestre capitalista.
Para quando baixarem as águas
para quando, afogados os ogros,
para quando secarem os egos
Deus Prometeu, finalmente, o fogo.
(Laís Chaffe)