Tânia Abreu (EBP/AMP)
Segundo Miller, um dia alguém se aproximou de Lacan e, tentando agradá-lo, disse-lhe que ele era um psicanalista nato. Lacan declinou da homenagem. Se houvesse psicanalistas natos, não teríamos que formá-los, bastaria descobri-los[1]. Considero que essa ideia atende aos propósitos da constatação de que não há analista nato. Deste modo, sua formação é necessária, requer tempo e exige uma experiência com o inconsciente. A fonte que dá sustentação a tal objetivo é minha experiência analítica e o que dela pude abstrair em termos epistêmicos para minha formação, assim como o que busco transmitir, colaborando para a formação de outros.
A via é o relato de pedaços desta experiência que, ao chegar ao final, levou-me, por escolha, ao dispositivo do passe. A ênfase recai, portanto, sobre o caráter epistêmico, um dos eixos do tripé da formação analítica, tal como foi definido por Freud[2] e reafirmado por Lacan: seminários de formação teórica (para universitários); prosseguimento, pelo candidato a psicanalista, de uma psicanálise até seu ponto último (de onde provêm os efeitos de formação); e a transmissão pragmática da prática em supervisões (conversação entre pares sobre a prática).
É importante lembrar que tanto Freud quanto Lacan deram uma enorme importância ao tema da formação analítica, e nós a retomamos hoje como ferramenta fundamental para defender e sustentar que a psicanálise tem um lugar na episteme contemporânea, sobretudo quando constatamos que esta última valoriza teorias e práticas que apresentam ou que prometem resultados imediatistas e superficiais, em detrimento de outras que priorizam narrativas, como a psicanálise.
A formação do analista e o impossível
É importante ressaltar que a formação do analista tem como sustentáculo um impossível, já que parte do real não se inscreve, nem admite ser circunscrito. Tal constatação justifica seu distanciamento dos parâmetros da universidade ou das Sociedades de Psicanálise, sustentadas em hierarquias e poderes e em um saber de natureza toda, que não admite furos. Uma formação que tem como base o real é aquela que parte de um furo no saber.
Lacan, na “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”, ao afirmar que o “psicanalista só se autoriza de si mesmo”, adverte que “isso não impede que a Escola garanta que um analista depende de sua formação” e que “existe um real em jogo”[3] nessa formação. Todavia, a contemporaneidade e seu estilo lançam um desafio à psicanálise: o de manter-se viva e imbuída de interesse público no contexto acima descrito.
O destaque dado ao lugar da Escola na formação do analista deve-se ao fato de que Lacan, em 1971, ao fundar uma instituição de psicanálise, cujo objetivo maior era restaurar a “sega cortante” da verdade instaurada por Freud, escolheu denominá-la Escola e não Sociedade ou algo similar. Adverte que o termo “(…) deve ser tomado no sentido de que, em tempos antigos, [escola] significava certos lugares de refúgio, ou bases de operação contra o que já então se podia chamar de mal-estar na civilização”[4].
O bom uso da contingência
Destaco dois aspectos: o primeiro diz respeito à constatação de que fazer o passe final sempre estivera no horizonte de minha análise, desde o começo, como uma escolha pela transmissão, pelo progresso da Escola e pela existência da psicanálise no mundo. O segundo aspecto corresponde à pergunta: o que está em jogo na formação? Sirvo-me de Frediani, quando ela lembra Miller: “o mais importante da Escola não é o que ela sabe, mas o que sabe que não sabe”[5]. Desse modo, o que está em jogo na formação é inventar modos singulares de lidar com a incompletude do Outro e do saber. No meu caso, não sem o apoio da Escola de Lacan, que fez duas afirmações fundamentais: em 1969 ele advertia que “Existe a Psicanálise e existe a Escola”[6] e em 1967 já havia compartilhado suas inquietações relativas a “saber se a psicanálise foi feita para a Escola, ou a Escola para a psicanálise”[7]. Para minha alegria, Lacan não hesitou em afirmar que sua Escola foi criada para servir à psicanálise, à existência dela e à formação dos analistas.
Algumas palavras sobre o ensino da psicanálise e seus desafios
Lacan nos diz que a única possibilidade de transmissão da psicanálise é através da experiência de cada um, o que está em conformidade com a definição de passe de Miller: “É isso que prova, é isso o passe, é se esforçar, tentar, pelo milagre de transformar o saber de um só, o saber de um só que vem da experiência, de sua experiência, transformá-lo em matéria de ensino para todos”[8]. Através dessa correlação, adentrarei, fundamentalmente, pelo ensino do passe e pela forma como ele se dá na Escola de Lacan.
Trazê-lo para um diálogo com a Universidade tem como objetivo, fundamentalmente, contribuir para que não se tome a psicanálise lacaniana como um discurso hermético e obscurantista. Transmitir a eficácia de uma experiência analítica, conduzida sob os princípios da psicanálise de orientação lacaniana, é uma excelente resposta aos opositores da psicanálise que insistem em considerá-la obsoleta e decadente.