Luiz Fernando Carrijo da Cunha (AME da EBP/AMP)
Comecemos pela diferença clássica entre Instituto e Escola[1]: esta é caracterizada pelo saber suposto, e aquele, pelo saber exposto, marcando dois domínios na ordem do saber. O fato de o saber ocupar o centro da diferença poderia nos levar ao equívoco de tomar Instituto e Escola como complementares. Lacan não cessou de explorar o que é da ordem do saber, o que é da ordem da verdade e, o mais fundamental, o lugar do real, que não se deixa sobrepor nem pelo saber nem pela verdade. Seu método consiste em colocar à prova as relações entre esses elementos, saber/verdade/real, demonstrando não haver relação de complementariedade ou de sobreposição. De cada uma dessas relações extrai-se um resto.
No Discurso do Mestre (DM), o lugar do Outro está representado pelo saber (S2), restando ao objeto a mais-de-gozar, o lugar da produção. A estrutura do DM nos permite ler onde aparece o mais-de-gozar sustentando o saber. Isso indica que, no DM, o saber aparece como índice do gozo. Ora, basta acionarmos o gozo em sua relação com o sujeito ($), ambos no denominador, para percebermos o valor da fantasia que sustenta a relação entre o significante mestre e o saber, indicando que esses elementos não sustentam o real. Assim fosse, o inconsciente, cujo funcionamento remete ao DM, se reduziria ao saber e à verdade.
A percepção de Lacan sobre as relações saber/verdade/real leva-o a escrever o matema dos quatro discursos. O Discurso Analítico (DA) é o único a demonstrar que há um impossível nas relações, que é, fundamentalmente, o que sustenta o discurso em seu denominador, onde o saber (S2) ocupa o lugar da verdade através de um “salto” pela barreira do impossível. A solução de Lacan ao escrever o DA é dar lugar ao real, que aparece como impossível, e à verdade como não-toda dita, sustentando, como corolário, o lugar do agente desinvestido de seu valor de gozo. Lembremos que cada discurso representa uma modalidade de laço social e que tanto Instituto como Escola se inscrevem no Outro social com a função de dar “existência” à psicanálise através do psicanalista que aí se coloca. Desde onde se pode enunciar a existência de um psicanalista? Retornaremos a esse ponto.
Tanto a Escola quanto o Instituto cumprem a função do que, de maneira ousada, podemos classificar como “ensino”! Podemos fazer nossa a pergunta feita por Lacan: O que a psicanálise nos ensina, como ensiná-lo?[2] A psicanálise nos ensina a partir de nossa própria empreitada sobre um divã. Ela pode produzir um psicanalista, o que faz da análise de cada um o fundamento mesmo de sua formação, na qual se defronta com o real de seu gozo para encontrar a solução, sempre singular, para a não-relação. Mas “como ensiná-lo?” Sobretudo considerando que o “psicanalista” deixou para traz a suposição de saber que a transferência engendrava? Perder a suposição de saber equivale à perda da crença no inconsciente como saber. Há outra modalidade do inconsciente? Lacan responde: há o inconsciente real, aquele que não dispensa o corpo vivo e cujo gozo não se atém à fantasia. Nessa via, não há liquidação da transferência, posto que o intratável do sintoma se alinha ao real do gozo e não ao índice de saber.
Se há alguma ordem do saber, ele só pode ser inventado como modo de fazer com a singularidade do sintoma. Não há universal que sustente o incurável de cada análise e, nessa perspectiva, Lacan propõe o “psicanalista da Escola” fora do universal[3]. A “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola” traz duas modalidades de “psicanalistas”, o que Lacan denominou gradus: o AE, Analista da Escola, e o AME, Analista Membro da Escola. O primeiro requerendo o dispositivo do passe, onde coloca-se à prova a conclusão da análise e, a partir dali, a produção de um analista. O segundo, já tendo dado provas de seu funcionamento como psicanalista, requer uma Comissão da Garantia que o reconheça enquanto tal. O AE tenta transmitir o modo como constituiu seu sintoma sob transferência e, sobretudo, a solução encontrada, que abriga a singularidade de seu gozo. Assim, ele testemunha sobre os pontos “cruciais da psicanálise”. Ao AME cabe tanto sustentar um ensino na Escola, quanto representar o DA no Outro social. É o que J.-A. Miller postulou: o AME como tendo “asas analíticas e patas sociais”[4]. Ele é suposto estar em condições de detectar e interpretar os sintomas produzidos na civilização e deles dar seu testemunho na Escola. AE e AME operam a partir de uma enunciação própria desde o lugar que ocupam na psicanálise.
O lugar de enunciação é intransferível, ainda que se produzam transferências. Logo, a Escola é um lugar onde se condensa o mais-de-gozar na medida em que cada um que nela ingressa o faz desde seu lugar de enunciação, não dispensando seu sintoma. A Escola de Lacan é um “coletivo de solidões” cuja perspectiva é manter viva a psicanálise. O saber que nela se deposita é coletivizável, mas não coletivo, e surge como efeito da transferência à causa freudiana. Cada analista que se inscreve no seio da Escola faz da causa seu sintoma em diferentes singularidades. A Escola de Lacan não opera a partir dos traços identificatórios. Se “o inconsciente é a política”[5], ele o é na medida em que o laço social está determinado pelo sintoma, que, paradoxalmente, também é a razão de seu mal-estar. Ao psicanalista da Escola interessa o mal-estar da época, posto que ali se inscreve um sujeito.
Voltemos às relações do saber com a verdade e com o real, e ao que “da psicanálise se ensina”. Introduziremos a vertente do Instituto na tentativa de cernir seu lugar no ensino da psicanálise e no Outro social e suas diferenças em relação à Escola. Nos valeremos aqui de outro texto de Lacan, “Alocução sobre o ensino”[6], e do comentário feito por J.-A. Miller em “O triângulo dos saberes”[7]. Miller sublinha a antinomia entre saber e ensino, enquanto Lacan se pergunta se é possível ensinar a partir do saber. Cito Miller:
Ele [Lacan] desmente a fórmula segundo a qual “O ensino é a transmissão de um saber”. E como não debochar dessa fórmula a partir do momento em que o inconsciente é qualificado como “saber”? Tratar o inconsciente como um saber é necessariamente separar ensino e saber. Como ele escreve: “Nosso discurso não se sustentaria se o saber exigisse a intervenção do ensino”. O inconsciente, se é um saber, não é um saber que se ensine.[8]
Sublinhamos acima, na referência ao DM, o lugar do mais-de-gozar que sustenta o saber. Miller sublinha que o ensino é não só antinômico ao saber, mas também a base de seu recalcamento. A “operação pedagógica”[9] é o ensino que recalca o saber:
Ensino/saber
e também o saber que recalca o gozo, tal como explicitado no segundo termo do DM:
S2/a
Miller localiza o “ensino” na barra do recalque entre S2 e a (saber e gozo), ou seja, a operação pedagógica que supõe o ensino “separa saber e gozo. A estupidez educativa é tentar a todo custo separar o saber e o gozo, barrar o gozo para que o saber triunfe. Há na pedagogia um ódio ao mais-de gozar do sujeito”[10].
Por mais que sejamos pedagógicos, não logramos transmitir o saber. A fórmula de Lacan indica que quanto mais se investe na pedagogia, mais se recalca o gozo e, consequentemente, mais se reforça a vertente do “não quero saber de nada disso”.
Portanto, mantém-se a pergunta: O que a psicanálise ensina, como ensiná-lo? Fora da operação pedagógica, mas valendo-se do saber desdobrado em três categorias, J.-A. Miller nos propõe[11]:
- Saber-semblante
- Saber-verdade
- Saber-ciência
Esse desdobramento é a tentativa de demonstrar a incompletude do saber. Relacionando as três categorias aos pares, encontraremos um furo – ou seja, falta, se houvesse, o “saber real” que completaria as relações. Esse furo que advém no saber abre a via ao mais-de-gozar, incluindo o sujeito. Logo, o desdobramento do saber dá lugar à enunciação.
Então, na vertente do Instituto, mais que expor um saber através da transmissão conceitual, aquele que ensina, embora não o faça por sua conta e risco, o faz desde sua posição de sujeito, servindo-se dessas modalidades do saber, advertido de que na relação entre eles há o lugar do furo.
Miller situa o saber-semblante como aquele do discurso universitário, onde o saber (S2) ocupa o lugar do agente sustentado pelo significante mestre. Eis o lugar do qual aquele que ensina no Instituto se serve, mas não sem fazer girar os discursos, correndo o risco de acreditar demais nisso. Logo, tanto na Escola quanto no Instituto, podemos nos deparar com esse impossível de ensinar que a estrutura da linguagem e do inconsciente demonstra. Se no Instituto podemos ocupar o lugar do semblante do saber, temos, em contrapartida, a Escola, que opera desde um outro lugar e que faz evidenciar o furo como estrutural.