Gustavo Ramos (EBP/AMP)
Jaqueline Coelho (EBP/AMP)
Não é de hoje que verificamos o movimento de evangélicos gravitando em torno do assunto “psicanálise”. Eles se interessam por transformar pastores em “psicanalistas” e fazem uso de conceitos psicanalíticos, deturpando-os em nome de objetivos alheios e religiosos, a fim de obter um controle maior sobre aquilo que habita o pensamento. Uma das reverberações dessa aproximação são as proposições por parte da chamada bancada evangélica, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, de projetos para regulamentar a psicanálise. Se o primeiro projeto data dos anos 2000, o último é de 2018 e no seu artigo segundo propõe uma graduação em psicanálise e um diploma de psicanálise.
Mais recentemente, o estabelecimento de um “bacharelado em psicanálise”, por parte de uma universidade à distância, trouxe novamente à tona o debate sobre a regulamentação e exigiu o posicionamento conjunto das mais variadas instituições de psicanálise no sentido de reafirmar o porquê da impossibilidade de um diploma de psicanalista. Nesse contexto, é preciso esclarecer: por que não regulamentar? Como respondemos às exigências de regulamentação, algumas inclusive sob a égide da reivindicação de direitos trabalhistas, de segurança na aposentadoria e do respaldo de um sindicato de trabalhadores?
Essas duas frentes de assalto à psicanálise nos orientaram na editoração da Correio Express n. 28. Quem se encanta por elas certamente ignora, dentre tantas coisas, os princípios da psicanálise, bem como o fato de que a sobrevivência desta dependerá de sua não apropriação por tais discursos.
Ao mesmo tempo, esses ataques nos impõem um enfrentamento nem de longe simples ou fácil. A problematização arriscada por Miller nos parece interessante para demonstrar a amplitude da questão:
Nem os psicanalistas, nem ninguém, podem dizer o que é O psicanalista como tal. É um fato de experiência, sem dúvida, mas porque é um impasse estrutural: O psicanalista não existe – o que não impede, pelo contrário, que os psicanalistas cresçam e se multipliquem[1].
Esse impasse é, segundo Miller, um segredo desvelado na Escola de Lacan. A complexidade engendrada por ele traz à baila a questão da regulamentação, certamente, e também se desdobra nos temas do ensino da psicanálise e da formação. Neste número da Correio Express, privilegiamos aspectos relacionados ao primeiro ponto. No próximo, abordaremos um pouco os outros dois. Aqui, contamos com a colaboração de Samyra Assad, Giovanna Quaglia, Luis Francisco E. Camargo e Héder Bello. Agradecemos a Julia Panadés, que gentilmente autorizou a utilização de sua obra que acompanha este editorial.
Em “A presença dos psicanalistas no mundo”, Samyra Assad aborda a maneira como o Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras tratou de contrapor-se às iniciativas de regulamentação nascidas do anseio de alguns evangélicos. Como saída, a autora aposta na “crítica assídua” para perfurar o “tipo que substitui o único no palco contemporâneo”.
Giovanna Quaglia, por sua vez, aborda a atualidade das discussões que envolvem a problemática da regulamentação. Em seu texto “Da clínica ao Político: o ato não regulamentável” ela propõe que: “onde uma política quer regulamentar o saber, o que fazemos como política da psicanálise é furá-la, a partir de intervenções pontuais que mostram, por seus efeitos, a possibilidade de girar o discurso e de fazer atos políticos”.
Em seu texto “Regulamentação e Garantia”, Luis Francisco Camargo propõe tomar a discussão acerca da regulamentação sob a perspectiva da garantia. Diante disso, pergunta: “o que a Escola garante? Uma formação?” Assinala, então, o paradoxo constituído pela “dependência mútua entre a existência da Escola e a do analista”.
O texto de Héder Bello, “Neoliberalismo, neopentecostalismo e a contenda pela psicanálise na contemporaneidade”, contextualiza e discute a aliança ideológica que o neopentecostalismo estabeleceu com o neoliberalismo, a partir da Teologia da Prosperidade. Ele também debate os efeitos de tais narrativas para os direitos humanos e propõe uma leitura sobre o interesse que elas demonstram pela psicanálise.
Diante de temas tão delicados, sugerimos que explorem os textos e sigam conosco nos debates.