Giovanna Quaglia[1] (EBP/AMP)
Por que os estudantes de Vincennes, ao final do ensino que presumivelmente recebem, não podem se tornar psicanalistas? (…) O psicanalista tem uma posição que eventualmente pode ser a de um discurso. Ele não transmite um saber – não porque não tenha nada a saber, ao contrário do que imprudentemente se diz. Isto é o que está posto em questão – a função, na sociedade, de um certo saber, aquele que lhe transmitem. Ele existe.[2]
O caminho da psicanálise, cada um o faz por sua conta e risco, em uma experiência singular onde o questionamento radical da identidade de uma profissão é posto em marcha. No entanto, na angústia de seguir sem saber exatamente onde chegar, alguns podem tropeçar em qualquer instituição que lhes prometa entregar o saber e a nomeação de psicanalista, e é aí, provável, que tudo pode parar, e nesse ponto encontre uma identificação grupal que aplaca o enigma essencial ao desejo; onde os candidatos a analistas que, por preguiça ou conforto, adormecem sobre o travesseiro do discurso do mestre ou de sua variante universitária.
Um diploma de psicanalista é um canto de sereia aos ouvidos ingênuos que acreditam que os psicanalistas vêm da universidade, ignorantes do fato essencial de que não basta ter um diploma para exercer a psicanálise.
Atualmente, a existência de aproximadamente 12 cursos de graduação em psicanálise no Brasil, além das inúmeras pós-graduações, nos chama a atenção para uma demanda crescente, dirigida à universidade, por parte daqueles que querem ser analistas. Essa demanda não diz respeito exatamente a uma tentativa de regulamentar a psicanálise, mas alia-se a ela no que implicitamente viria a ser uma reserva de mercado das instituições de ensino. Trata-se então da tentativa de fazer enquadrar a psicanálise no discurso universitário. Isso faz empuxo do tudo-saber, da contabilização e da totalização do objeto a, e nos coloca, ao mesmo tempo, questões importantes sobre o futuro da psicanálise diante das mudanças no mundo contemporâneo.
Um desafio que esse tema nos impõe é o esforço de dialetizar o questionamento sobre a regulamentação e a não regulamentação da psicanálise, uma vez que a experiência no Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras tem mostrado que foram os próprios argumentos contra a regulamentação que trouxeram as respostas da sociedade para regulamentar, da mesma forma como o próprio bacharelado em psicanálise foi construído no espelho do tripé da formação analítica: análise pessoal, estudo da teoria e prática clínica supervisionada.
É importante salientar que a proposta de regulamentação surge toda vez que o discurso vai na direção de que uma profissão, se for exercida por quem não é qualificado, vai acarretar um risco à sociedade. Nesse sentido, as tentativas de regulamentação têm como fundamento não só a importância ou a valorização de uma profissão pelo mercado, mas também, fundamentalmente, a conclusão de que se trata de uma profissão que coloca em risco o interesse social, e, por isso, seriam necessários a fiscalização e o controle. Será?
Nas experiências do Movimento Articulação observa-se um discurso articulado, o discurso da psicanálise, que, por um lado, reconhece a dificuldade de sua transmissão e, por outro, está atento ao fato de que não se pode deslocar o discurso na política, a não ser pontualmente. O que nos coloca a questão de verificar se ocorreram ou não atos políticos, uma vez que não se trata de efeito “de comunicação da fala, mas de deslocamento do discurso”[3].
A esse respeito, nos últimos anos, temos observado que o que há por trás da tentativa de regulamentação da psicanálise não são somente os interesses religiosos ou de instituições de educação, mas também os interesses de mercado. Lacan, ao atentar para o fato de que o discurso do universitário é a versão pervertida do discurso do mestre, como “mutação capital” que “confere ao discurso do mestre seu estilo capitalista”[4], adverte que “a partir de certo dia, o mais-de-gozar se conta, se contabiliza, se totaliza. Aí começa o que se chama de acumulação de capital”[5].
O fato de qualquer pessoa poder afirmar-se psicanalista é uma liberdade que não deixa de ter efeitos de mercado e sobre o exercício de seu poder, o que tem como consequência a existência de pessoas (inclusive da própria comunidade psicanalítica) que querem as leis e que desejam um reconhecimento oficial da profissão de psicanalista, uma vez que a regulamentação disciplinaria o mercado.
No avesso do discurso regulatório, no trabalho do Movimento Articulação, testemunha-se o exercício de uma política que se move na direção contrária à totalização discursiva na contabilização capitalista: onde uma política quer regulamentar o saber, o que fazemos como política da psicanálise é furá-la, a partir de intervenções pontuais que mostram, por seus efeitos, a possibilidade de girar o discurso e de fazer atos políticos. Nesses termos, podemos dizer que é tarefa do Movimento Articulação manter a psicanálise como leiga, o quanto possível, no que tange às tentativas de extirpação de sua singularidade a partir de cursos, de projetos de lei ou mesmo de algumas entidades que buscam regulamentá-la. Esse trabalho tem como base a sustentação de uma posição política, a política da psicanálise, que tem seu ato como não regulamentável.