Por Flávia Cêra (EBP/AMP)
“a história que me deram é de talho.
persigo à deriva nos documentos
que, à ventura de outros, vestiu-nos
a ausência dos nomes, queria poder
te falar o turismo, o olhar de trecho
longo, mas não sobrou o que dizer
da rota dos cardumes.”
(André Capilé)[1]
Minha reação, não sei se por vício ou sobrevivência, quando vejo alguma coisa predominando – como o avanço dos algoritmos e da IA, mencionados no argumento deste número –, é olhar para o que é menor, para o que cresce rasteiro, como gramíneas insistentes, como brotos de algo muito novo. Manter aceso o desejo de saber é vital para não ser absorvido pelo “sempre foi assim” ou pela perplexidade.
Gostaria, então, de partir de uma consideração que escutei, um dia desses, em uma conversa entre Ailton Krenak e Eduardo Viveiros de Castro[2]. Eles falavam sobre a antiga hipótese de Lévi-Strauss de que a ciência e o mito se aproximariam novamente. De modo que o saber indígena, o saber ancestral, longe de ser passado, é o futuro. E, talvez, o futuro da ciência. Ao menos daquela que está preocupada com o planeta, a que sabe que não é possível a disjunção entre terra e Terra. Os dois diziam ali da importância de manter vibrando o pensamento selvagem – que não é o pensamento de selvagens, mas o pensamento que não cabe em uma categoria, que está em estado nascente e potente. Pensei, então, a respeito da psicanálise, que nossa prática e posição poderiam servir de algum modo como leitura e caixa de ressonância das vibrações de lalíngua, da diversidade das línguas, em um momento em que a empreitada para sua monocultura avança a passos largos.
Os algoritmos nos conhecem. Têm, inclusive, um poder interpretativo. Isso é inquestionável. Mas, diferentemente do nosso saber, ele é um conhecimento desencarnado. É preciso um corpo para sustentar, um corpo para que isso se torne um saber encarnado. Até mesmo a história ou as histórias podem ser organizadas, da melhor forma possível, em arquivos. É possível imprimir uma série de interpretações, contemplar inúmeros pontos de vista, propor subversões e até mesmo uma reorganização da história, sua restituição e sua reescrita. Isso pode ajudar – e muito –, pode, inclusive, ser ensinado, mas não vai mudar o rumo das coisas se esse saber não estiver (in)corporado, de modo que possa ser transmitido, articulado, que possa ser experimentado de outra maneira. Em um tempo em que palavra e corpo tendem a andar cada vez mais separados, aproximar experiência e língua se torna cada vez mais importante. Ouvir, então, o que se manifesta nas ruas[3], nas formas de vida que organizam outras maneiras de viver junto, é fundamental para manter viva a experiência da língua.
Há uma enorme onda que atua em várias frentes com uma série de iniciativas nas artes, na política, nos movimentos sociais, agenciando coletivos que se organizaram em torno de alguns significantes para reivindicar, denunciar e articular outras histórias dentro da História. Pensemos em Denilson Baniwa e na performance Nada que é dourado permanece 1: Hilo, em que o artista indígena leva as cinzas do Museu Nacional para um plantio de ervas medicinais e flores na parte externa da Pinacoteca, também considerada pelo artista um anti-monumento aos indígenas atingidos pela Covid-19. Tantas linhas de força se inscrevem nessa obra: os monumentos, a violência, os arquivos, a história, tantas camadas de um país fundado a partir do genocídio indígena.
Germinar com os restos, esse gesto de re-existir da incansável luta indígena nos dá o tom do que é viver sob a égide do inimaginável, para aqueles que inúmeras vezes viram seus mundos ameaçados, senão acabados. São eles que têm nos mostrado que, na política de re-existência, existe violência e morte, canto e dança, corpo e vida, e que toca a cada um de nós ouvir suas histórias, imaginar com eles saídas para o inimaginável, para resistir à desapropriação da terra que é, em última instância, a expropriação do corpo de cada um e da vida de cada povo. Esse é apenas um exemplo dentre os muitos “desocidentados”[4] que apresentam relações outras com e entre o tempo, corpo, língua, terra/Terra: Mateus Aleluia, Davi Kopenawa, Ailton Krenak, Maxwell Alexandre, Helena Silvestre, Antônio Bispo dos Santos, etc.
O que se escreve, assim, e se inscreve, são ausências que se infiltram na História e ganham nomes. É o que podemos ler no impressionante Perder a mãe, de Saidiya Hartman[5]. Não se trata, portanto, de estabelecer um novo universal, como se A História existisse, mas sim de alterar, aumentar, alargar o horizonte do possível. Muitas vezes lemos essas histórias como se elas fossem apenas – o que não é pouco uma reação política. São também, mas isso não é tudo. Há inúmeras relações, vidas, mundos que ali se articulam em um trabalho não só de sobrevivência, mas também de criação, de pulsação do novo, de um saber heterogêneo que entra, reconfigura e descompleta o que, até então, se entendia como universal.
Essa é uma leitura possível através do que Lacan propôs como extimidade, como alteridade interna, como o heterogêneo do gozo. É ele o índice da opacidade que perturba e que pode ser tratada por uma análise. A psicanálise parte do princípio de que há no sujeito uma excentricidade radical consigo mesmo[6], e de que esse vazio é preenchido pelas identificações que, longe de oferecer uma totalidade do ser, vão formando sua trama, cheia de furos, que dão lugar aos impasses e sintomas. E, para avançar nesse caminho, há uma tessitura a ser feita entre História, histórias e seus furos, que na análise trabalham de uma forma que escapa à transparência totalizante. É assim, porque esse avanço passa por um saber inédito construído – e construído porque interpretado – artesanalmente através da maneira muito singular pela qual as palavras tocaram o corpo e incidiram em uma vida, longe da particularização de preferências da produção algorítmica dos objetos de consumo. Seu esforço, o da psicanálise, é por uma poética que, como tal, é o constante esforço de sustentar uma experiência que não caiba em generalizações, porque dá um lugar vivível à opacidade, contrapondo-se à segregação e ao silenciamento. Não seria essa uma das nossas formas de resistir à monocultura?