Por Cassandra Dias Farias (EBP/AMP) e Fátima Pinheiro (EBP/AMP)
A temática deste número da Correio Express parte de duas perguntas. A primeira pode ser formulada da seguinte maneira: por que a singularidade de uma análise sempre vem em meio a formas culturais predefinidas? A segunda pergunta, formulada por Miller e apresentada adiante, já traz em si uma resposta que nos serve de orientação.
“Por que o que fazemos, nós psicanalistas, não toma a forma de um saber no real?”[1], pergunta Miller. Sua resposta é contundente: “porque toma a forma da cultura, já que somos muito dependentes da atualidade da cultura, mesmo que ela seja “difícil de engolir””[2]. Essa “dificuldade de engolir” se apresenta a nós porque, orientados por Lacan com Joyce, sabemos ser a singularidade da letra o que permite descompletar o universal da cultura. Há, portanto, uma exigência cada vez maior de localizar qual é o trabalho do psicanalista e qual é a sua diferença, diante da multiplicidade de discursos que cortam o campo da cultura. A partir daí, a comissão editorial desta 27ª edição do CORREIO EXPRESS lança a seguinte questão:
No debate atual sobre o discurso da ciência, dado o predomínio do algoritmo e da inteligência artificial, o que resta ao campo discursivo como tratamento do real?
Verificamos que se, por um lado, o discurso da ciência, no qual se baseiam as novas tecnologias e as estruturas de rede, tem a pretensão de extrair um saber no real, por outro, a criação artística vai na direção oposta à tentativa de determinação por meio da combinação algorítmica. Em lugar desta, abrem-se caminhos para a contingência e para o sinthoma, o que se aproxima do trabalho do psicanalista e, inclusive, o antecipa. Indagamos: o que nos ensinam os artistas sobre a lida com o real que, na interface com a psicanálise, poderia contribuir com o nosso esforço para radicalizar o fazer psicanalítico? Saber fazer com o resto, com o que cai da crença delirante da ciência e do saber morto da IA, continua sendo uma bússola diante da pergunta de Lacan formulada em “A ciência e a verdade”: “O saber sobre o objeto a seria, então, a ciência da psicanálise?”[3]
Os textos que compõem esta edição da Correio Express tentam, cada um por uma via, extrair um ponto da ética que rege o discurso analítico em sua interlocução com a subjetividade de nossa época:
Márcia Rosa, em “Como não ser um amante das artes?”, parte da questão do saber no real para interrogar a relação do psicanalista com o campo da arte. Indaga, igualmente, se a nossa ligação aos artistas também passaria pela transferência, e qual seria a posição do psicanalista diante do artista. Revisita Lacan no encontro com Marguerite Duras e Joyce, para extrair da obra desses escritores uma relação com o real fora do saber inconsciente, o que operaria, consequentemente, “uma desvalorização da ciência, conduzindo-a à sua futilidade”.
Diante do avanço dos algoritmos e da IA, “manter aceso o desejo de saber é vital para não ser absorvido pelo ‘sempre foi assim’ ou pela perplexidade”, afirma Flávia Cêra em seu texto “Resistir à monocultura”. Contrapondo-se à segregação e ao silenciamento, a partir do saber indígena, ancestral, que não é categorizável, assim como a partir da prática da psicanálise, tomada como instrumento de leitura, Flávia se interroga sobre como resistir à monocultura. Relata uma série de iniciativas nas artes, na política e nos movimentos sociais que agenciam coletivos organizados em torno de alguns significantes, assim como aquilo que se ouve nas ruas, mantendo a experiência da língua viva.
Cristiano Pimenta interroga em seu texto o contemporâneo e sua articulação entre saber e real, a partir do “delírio de saber dos tempos atuais” e “da era do delírio sob medida”, que permite a igualdade entre os saberes. Como ilustração emblemática do saber disposto nas “bolhas protetoras”, que coloca em questão o próprio saber da Ciência, ele toma o filme “Não olhe para cima” para tratar da “defesa contra o real da contingência”. Cristiano se utiliza do campo musical para responder ao predomínio dos saberes a partir da música contemporânea e da singularidade do compositor.
O trabalho de Gustavo Speridião, artista carioca convidado para esta edição, apresentado por Fátima Pinheiro, nos faz escutar o que se escreve na cultura. Sua poética irônica conversa com os textos e temas abordados, revelando “a sujeira anônima das pixações urbanas dos muros da cidade, dos resíduos de um planeta globalizado…”, tocando, assim, pela via da arte, um ponto de real, o que faria coincidir o trabalho do artista e do psicanalista.