Por Cristiano Alves Pimenta (EBP/AMP)
A pandemia parece ter consolidado o recurso ao saber para fazer frente ao real. Cursos via internet sobre todos os temas possíveis atingiram níveis nunca antes alcançados. A Universidade deixou de ser o lugar privilegiado para aquisição de saber. Assim, o sonho por um saber que desse acesso ao segredo das leis que regem o funcionamento do real se mantém.
Portanto, a queda do Nome do Pai em vigor não implica queda da crença em um saber. No último ensino de Lacan o saber é definido como sendo “delírio”[1], ou seja, uma articulação significante que gera efeitos de sentido e que está ligada à crença do sujeito, pois “não nasceu quem conseguirá distinguir o saber e a crença”[2]. Por fim, devemos acrescentar que crer no saber é o mesmo que crer que há saber no real, que o real funciona na lógica da previsibilidade e do Necessário. Desse modo, no delírio de saber, trata-se sempre de ignorar que o real é sem lei e que, portanto, não obedece ao regime do necessário, mas ao da contingência.
Contudo, se o delírio triunfa nos tempos atuais, ele o faz sob a forma do múltiplo, da proliferação de saberes, de modo que cada sujeito possa aderir àquele que lhe agrade mais. Vivemos na era do delírio sob medida. A “reivindicação democrática de uma igualdade fundamental dos cidadãos”[3], da qual fala Miller, não conduz somente a uma despatologização fundada no “todo mundo é normal”, mas também à igualdade entre os saberes. Assim, cada sujeito faz sua “livre escolha de vida”[4], aquela que lhe permite ser feliz no interior de seu grupo.
O próprio saber da ciência é hoje posto sob suspeita. No filme “Não olhe para cima” (2021), os personagens de Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence são cientistas que tentam convencer as pessoas de que um cometa gigante atingirá violentamente a Terra. Em cenas divertidas e desconcertantes vemos o casal protagonista, representante da astronomia científica mais avançada, ser obrigado a disputar com os negacionistas a audiência em programas de TV, na tentativa de convencer as pessoas de que a morte se aproxima. Isso mostra que o saber oriundo da ciência se tornou apenas um saber entre outros disponíveis no mercado. O delírio aqui é aquele que tornaria as pessoas senhores que triunfam sobre a morte. Em outros termos, esses saberes são bolhas protetoras que funcionam como defesa contra o real da contingência.
No caso dos remédios, das vacinas e dos alimentos, a ciência é hoje acusada de estar a “serviço da indústria farmacêutica”. O livro “Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério”, da microbiologista Natalia Pasternak e de Carlos Orsi, pode ser lido como um confronto entre a ciência baseada nas evidências obtidas pelos “estudos randomizados” e os tratamentos “sem comprovação científica”, dentre eles, é claro, a psicanálise. As “pseudociências”, no entanto, já conquistaram, com a anuência do poder estatal, um lugar no mercado. Desse modo, N. Pasternak se vê levada a duelar agressivamente contra suas concorrentes, mas sem nenhum aval de superioridade e sem garantia de vitória.
Podemos concluir que a proliferação dos saberes funciona como uma proliferação de bolhas, como prisões de gozo, que impedem o acesso do falasser à sua própria singularidade, à singularidade de seu sinthoma. Isso contrasta com o fazer na música contemporânea que, contrariando o predomínio dos saberes, se baseia na singularidade do compositor.
A música contemporânea e a singularidade de cada um
É evidente que a música ocidental, desde Bach, está ancorada na singularidade de cada compositor. Mas a ruptura de paradigma produzida pela música contemporânea, a ruptura com o tonalismo, virá radicalizar a composição musical como um objeto singular.
O dodecafonismo, criado por A. Schoenberg, pode ser visto como um algoritmo de saber que permite alcançar certos objetivos numa composição musical: as relações tonais entre as notas – que no tonalismo são sempre hierárquicas – são evitadas na construção da série dodecafônica, de modo que a dissonância domina. Ainda que certos elementos da composição tradicional sejam mantidos, fica garantido que o sentido musical não seja mais aquele consagrado pela tradição, pelo tonalismo. O dodecafonismo produziu a queda daquilo que na música era o equivalente da função paterna: a escala tonal.
O sonho de Schoenberg foi, no entanto, o de imaginar que seu sistema pudesse se consagrar como a referência universal da nova música[5], como o substituto do tonalismo. O que prevaleceu, ao contrário, foi a prática na qual cada artista constrói o seu próprio sistema. O dodecafonismo não se universalizou, apenas se tornou uma possibilidade entre outras.
Assim, cada músico seleciona a gama de sons que lhe convém. Foi exatamente essa prática de colher as notas como peças soltas encontradas pelo caminho[6] o que permitiu a inclusão do ruído na música. Compositores como o alemão H. Lachenmann e o italiano P. Billone, entre outros, exploram, em suas composições, ruídos extraídos de objetos inusitados e também dos instrumentos musicais. O ruído não é uma nota musical, não possui uma frequência definida. O ideal da música clássica é a pureza sonora, é a “limpeza” que visa à eliminação de todo ruído. Na música clássica o ruído é um dejeto a ser eliminado. Já na música contemporânea ele é elevado à dignidade da mais cristalina nota musical. O ruído, não tendo uma referência universal, é o som mais singular que um artista pode escolher. Sua escolha resulta das referências mais íntimas e singulares do compositor.