Por Márcia Rosa (EBP/AMP)
Em um momento inaugural de seu ensino, Lacan se serviu da linguística e da lógica, elaborando a partir delas uma definição do inconsciente como um saber inscrito no real, como um saber comparável àquele que decifra a ciência, ou seja, não um real bruto, mas um real inseparável de suas leis, as leis do significante e de sua lógica; um real que ultrapassa o campo do sensível e do imaginário e se estrutura, se decifra, se matematiza tal como aquele da ciência.[1]
Concebido como tal pela psicanálise, esse saber no real encontra no campo discursivo o saber do artista, cujas pegadas antecedem as trilhas nas quais vem a psicanálise. Recuperamos assim a afirmação feita por Lacan em seu belo texto “Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein”, afirmação repetida à exaustão, de que, na matéria da qual o psicanalista trata, “o artista sempre o precede… lhe abre a via”[2]. Mas, o que é mesmo que sabe um artista?
De início, constata-se que Lacan, em seu comentário, não deixa de atribuir ao artista a função de causar desejo e mais-de-gozar, de nos afetar. Portanto, um(a) artista e sua arte podem nos afetar, nos fazer apaixonar, nos provocar angústia, mal-estar, despertar sonhos, temor, piedade, horror e assim por diante.
Uma outra questão se faz necessária: a nossa ligação com os artistas seria transferencial? Haveria uma suposição de saber em jogo? Em assim sendo, seguiria o artista percurso semelhante àquele do psicanalista na direção do tratamento: des-suposição de saber e produção de um saber sem sujeito? Se não é por aí, o que há, exatamente, nessa suposição de saber?
Ao comentar a homenagem de Lacan a Duras, Jacques-Alain Miller observa que “a manobra psicanalítica consiste em pôr o artista em posição de Sujeito suposto Saber. Isto não quer dizer, sem dúvidas [acrescenta ele] ajoelhar-se diante do artista em questão, de quem Lacan nos a dá a entender que ele está acostumado a ter um amante de seu lado”[3]. Portanto, não se trata, para o psicanalista, de colocar-se na posição de fã, de amante das artes e das produções dos artistas. Se não é disso, do que se trata então?
A operação analítica, continua Miller[4], consiste em dois movimentos bem precisos: (1) não se ocupar da psicologia do autor e (2) colocar o foco no escrito (no caso de Marguerite Duras, que é uma escritora) ou naquilo que é produzido pelo artista: telas, performances, etc. Essa operação proposta por Lacan está articulada entre o saber e o pensamento. Cito Miller:
“(…) o artista tem um saber que não se incomoda com o pensamento e, ao contar com esse saber particular, o artista poderia, por sua vez, restituí-lo ao pensamento. Restituir um eu penso. Mas o problema é que este pensamento não teria que incomodar-se com a consciência de ser em um objeto. [Há um desdobramento entre o eu penso e o eu sou]. Então, o pensamento mesmo no qual eu, [psicanalista], lhe restituiria seu saber, é exatamente o que ele fez (…)”, o que ele mesmo já fez[5].
A proposta feita por Lacan em 1965, a partir do seu encontro com a Lol V. Stein de M. Duras, só se esclarece de fato quase uma década depois, através do encontro com outro escritor: James Joyce.
O real da época estruturalista, articulado à linguística e fundado na ciência moderna, é indiscernível da escritura das pequenas letras matemáticas, e permitiu que Lacan aproximasse a psicanálise da ciência. No entanto, Lacan caminha na direção do estabelecimento da psicanálise como uma prática fundada em um real sem-saber, sem-lei e que não cessa de não se escrever[6].
Ao formular o sinthoma com Joyce, Lacan aborda o real em exterioridade ao simbólico[7], como aquilo que faz com que a psicanálise seja orientada por um real além do sujeito suposto saber, um real fora do saber inconsciente, feito de elementos sem sentido, de acontecimentos ao acaso, um real sem lei, que não se deduz de nada. Em função disso, ele opera uma desvalorização da ciência, conduzindo-a à sua futilidade. Essa futilidade está em oposição a sua utilidade, mas sobretudo, como a característica daquilo que escapa, como ao tentarmos encher um tonel furado[8].
Retornando à artista Duras, Lacan evidencia que ela inventou uma amarração escritural para o seu corpo largado fora-da-cena, através do ser-a-três. Joyce, por sua vez, inventou um ego escritural, através do qual se virou com relação à desamarração do imaginário corporal aos registros simbólico e real. Ambos os escritores chegaram até ali sem a psicanálise, o que desafia o psicanalista a saber se virar nesse ponto.
Lacan é bem claro: não se trataria de interpretar a escritora do ser-a-três, de operar para que ela viesse a saber o que faz ali, para que se desse conta do seu ponto de falha e das amarrações que havia construído para lidar com ele, ou seja, não se trataria de trazer o eu penso ao saber não-sabido e particular. Se isso ocorresse, ela se perderia, alerta ele. Parece ser possível dizer o mesmo a propósito de Joyce, embora este se mostrasse bem mais recalcitrante em relação à psicanálise.
Deixar aos sujeitos suas amarrações das quais eles não estão se queixando, deixá-los com a arte da qual cada um é capaz, excluindo o julgamento último[9]: parece ser esse o recado de Lacan! Não bancar o psicólogo, saber se virar aí!
Se um artista, tal como a histérica, sempre se faz acompanhar por seu dois, o psicanalista, ao tratar dele sem lhe atribuir um brilho agalmático, sem se fazer seu fã, inaugura algo novo. Assim, artistas como Marguerite Duras e James Joyce mostram-se mais próximos da histérica rígida, aquela que segue só; mostram-se como alguém que teria encontrado um modo de seguir sem seu dois, de seguir na sua imparidade substancial.
Aplicar a arte à psicanálise implicaria, portanto, não estar em relação a ela em posição de fã, de amante! Tarefa nem sempre fácil, convenhamos.