Maria do Carmo Dias Batista (AME da EBP/AMP)
“Como fazer para ensinar o que não se ensina? Foi por aí que Freud caminhou. Ele considerou que tudo não passa de sonho, e que todo mundo (se tal expressão pode ser dita), todo mundo é louco, ou seja, delirante.”[2] Lacan, no texto “Transferência para Saint-Denis?”, dirigindo-se ao Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII – Vincennes, em 1978, afirma à universidade e aos universitários que, nela, o discurso analítico não é matéria de ensino, por não ser universal.
A série de significantes universidade, universitários, universal chama atenção por sinalizar o caráter de todo, ou universal-totalizador, da universidade e, ao mesmo tempo, a distância do não-todo do discurso analítico, de sua particularidade. Esse particular não se ensina, apenas se pode apreender na experiência analítica. Paradoxo.
Se tudo é apenas sonho e se todos deliramos, os universais do tudo (sonho) e do todo (delírio) são assuntos de psicanálise. Um todo-barrado, porém, marcado pela negação do quantificador universal, um não para todo x, caracterizado pelo jogo entre o impossível e o contingente e por tomar os sujeitos um-a-um.[3]
Lacan constata que o ensino se renova ao se deparar com o impossível e enumera os três pontos da renovação ocorrida em Vincennes: a criação de uma revista, Ornicar?, a concepção de um “terceiro ciclo” para a formação do Campo Freudiano e, ainda, a organização de uma Seção Clínica destinada sobretudo à formação de jovens psiquiatras.[4]
Jacques-Alain Miller considera a frase “tudo não passa de sonho e todo mundo é louco, ou seja, delirante” a bússola do ultimíssimo ensino de Lacan e da prática da psicanálise. Ela foi escrita em 1978, logo após o término do Seminário 25: momento de concluir, três anos antes da morte de Lacan.
“Como fazer para ensinar o que não se ensina? Foi por aí que Freud caminhou (…)”. Freud teria dito que tudo não passa de sonho? Sim, ele entrou na psicanálise pela via real do sonho e disse, também, “o sujeito é feliz”, afirmação equivalente a “todo mundo é louco”, segundo Miller.[5] O sujeito sonha e, do mesmo modo, é feliz. Lacan, no entanto, generaliza o sonho. Sonha-se sempre. O princípio do prazer não se opõe ao princípio da realidade. Sonha-se de noite e, de dia, acorda-se somente para continuar sonhando de olhos abertos, pois no sonho tem-se a oportunidade de encontrar o real.[6]
A Escola de Lacan, diferentemente da universidade, é o lugar privilegiado do sonho e do delírio (e do sintoma). Nela se pode “ensinar o que não se ensina”, matematizar, como diz Lacan em “O aturdito”: “(…) essa linguagem de puro matema, com o que me refiro àquilo que é o único a poder ser ensinado (…)”.[7]
Além disso, considerando a existência dos inúmeros grupos identitários, lugares de “gozo comunitário”, por que querer fazer parte de uma Escola de psicanálise, hoje?
Considero o lugar institucional ocupado por mim neste momento[8] para responder à questão formulada pela Correio Express[9], a partir da exterioridade representada pelas cartas de intenção redigidas para solicitar a entrada na Escola por algumas pessoas, hoje membros da EBP.
“Oriento-me pelo Campo Freudiano desde há muito tempo e agora está na hora de trabalhar dentro dele, não ficar na margem. Momento de levantar e dizer sobre esta minha certeza: fazer parte, mesmo na solidão, da EBP e da AMP. Fazer laço e sustentar um desejo não anônimo em um trabalho de Escola é minha escolha forçada.”[10]
“A desidentificação com a mortificação me possibilitou sentir no corpo algo inédito, uma mudança de posição, na qual há um saber sintomático a ser colocado a trabalho na EBP.”[11]
“Após o informe da não aceitação de meu primeiro pedido sou tomada pela angústia. Fez-se necessário o tempo de compreender para que eu pudesse dar uma volta a mais em relação ao meu sintoma. Aqui, o a mais, em relação ao envio da primeira carta é a escrita. Uma lettre escrita a partir da responsabilização do ato, dos efeitos da carta “um”, do sonho das letras e agora na companhia do meu sintoma. Por isso, o engajamento decidido em relação à Escola, assim como o trabalho decidido em torno dela se sustenta, mesmo não tendo garantias do destino desta outra carta, pois o que constatei ao escrevê-la é que da Escola não é possível d-es-colar…”[12]
“A precipitação do desejo adormecido se deu a partir da minha análise, da minha prática clínica, da supervisão, do trabalho de Escola e de alguns sonhos. Recordação onírica: estou indo em direção ao consultório do meu analista e vou pelo elevador de serviço, juntamente com duas funcionárias do edifício, onde se encontra o consultório. Chegando lá, está tudo diferente, com muitos objetos coloridos. Destaca-se no sonho uma fila de crianças esperando pelo atendimento. Uma surpresa: eu não era a analisante e sim a analista, e iria atendê-lo, o meu analista, e as crianças. Quando acordo, tenho a interpretação e menciono em análise: entra-se na Escola pelo serviço, pelo trabalho de Escola.”[13]
Tudo não passa de sonho, e a EBP, lugar de refúgio contra o mal-estar na civilização[14], persevera há 28 anos.