Paula Legey (EBP/AMP)
1.
Em O banquete dos analistas[1], Miller sustenta que a noção de Escola é um conceito e trabalha para localizar seus fundamentos. A Escola não é apenas uma contingência histórica, ou seja, uma invenção de Lacan para dar conta de um impasse político institucional, mas um operador de base para o discurso analítico. Sua existência responde à necessidade de manter viva a própria estrutura da experiência analítica através da pergunta: o que é uma análise? E ainda: o que é um analista? Essas perguntas não podem ser respondidas de uma vez por todas, já que apenas o um a um da experiência de uma análise pode produzir um analista.
Trata-se, então, de zelar pela sobrevivência da subversão produzida pelo discurso analítico – subversão esta facilmente obturada pelas respostas burocráticas, respostas padronizadas, para a formação em psicanálise. Essa orientação supõe manter aberto um vazio central em decorrência do qual cada um poderá tomar a causa analítica a partir de sua solidão subjetiva.
A ideia de uma coletividade que se mantenha unida sem que a solidão subjetiva, a singularidade absoluta, seja encoberta ou eliminada está na base do conceito de Escola.
Acostumamo-nos, com Freud[2], a pensar na identificação como base para a coletividade. O laço social, na articulação freudiana, era constituído pelas identificações em torno do Ideal do eu. O traço identificatório com o Outro, na direção vertical, ligado ao Ideal do eu, torna possível que se instale o vínculo horizontal, que permite a ligação que forma um grupo.
Freud fala de uma pobreza psicológica dos grupos que podemos relacionar a esse modo de funcionamento específico, em que as diferenças são deixadas de lado em benefício de uma totalidade homogeneizante.
A proposta da Escola é outra. Mas que tipo de laço é possível que não através de um modo de identificação que forme um grupo de iguais?
Miller sustenta que toda a estrutura da Escola está pensada para que ser analista não seja uma identificação[3]. A Escola está fundada no caráter problemático da qualidade de analista, ou seja, não existe um ideal prévio do que é ser analista, ao qual cada um viria a se identificar. De modo diverso daquele que vigorou em algumas instituições de psicanálise, em que a teoria dominante para o final da análise apontava no caminho de uma identificação com o analista, Lacan destaca a solidão na relação de cada um com seu próprio desejo na formação analítica.
2.
A psicanálise não faz do Nome-do-Pai um norte, seja na direção do tratamento, seja no conceito de Escola.
Vivemos em um momento no qual o modo tradicional de organização social se encontra abalado. O modo de organização unívoco, baseado em um modelo patriarcal, heterossexual, eurocêntrico, em que a branquitude é a perspectiva inquestionável da subjetividade, está em crise a partir de diversos ângulos.
Quando o Nome-do-Pai não se sustenta como horizonte e ponto de enlace, como o laço social se faz?
Dessa perspectiva, seria falsa a oposição, às vezes feita, entre psicanálise e aquilo que alguns insistem em nomear como grupos identitários, que equivale a um modo de vínculo comum na contemporaneidade. O que é importante destacar aqui é que há, de certo ponto de vista, uma proximidade entre o discurso analítico e a lógica contemporânea.
Muito mais interessante do que insistir numa oposição entre “nós” e “eles”, entre “nós, psicanalistas”, e “eles, grupos identitários”, oposição que reproduz uma lógica de segregação e que, ademais, age de um lugar que acaba por supor uma identidade ao analista, seria buscar construir um modo de intercâmbio entre formas atuais de construção de coletivos e o modo de laço coerente com o discurso analítico, o do conceito de Escola.
Se, nos tempos que correm, as formas de organização social parecem, em grande parte, repudiar a hierarquia e a verticalidade, isso não as aproxima em larga medida da lógica da Escola, em que a hierarquia se esvazia? Na Escola, as diferenças de posições se estabelecem com relação ao gradus, e não à hierarquia.
Miller[4] localiza dois tempos na criação da Escola Freudiana de Paris. No primeiro tempo, se institui a Escola como um organismo pensado em torno de um trabalho – trata-se de uma espécie de fábrica que reúne trabalhadores, os quais, nesse caso, são trabalhadores em torno da causa analítica. Esse modo de agrupamento foi a base e corresponde ao Ato de fundação. O segundo tempo, o da Proposição, é aquele que consiste em definir o psicanalista adequado a essa Escola de trabalhadores. Enquanto no primeiro há igualdade de todos com relação ao trabalho, no segundo tempo é introduzida uma desigualdade. Essa desigualdade concerne ao gradus, títulos diferentes (AP, AE, AME) segundo a relação de cada um com a experiência analítica[5].
Não se trata, portanto, na Escola, nem de verticalidade e nem exatamente de horizontalidade. Não há graus sucessivos de poderes ou uma ordem de prioridades, à maneira hierárquica; tampouco há igualdade entre os membros que participam desse coletivo. As diferenças se mantêm.
3.
Se, por um lado, podemos supor que os abalos na sociedade tradicional permitem a abertura para outros modos de se fazer laço, por outro, esses abalos podem ser vividos como ameaça e podem gerar o aprisionamento em uma imagem totalitária de si, como uma reação ao desnorteamento. O enfraquecimento do simbólico pode dar espaço a uma primazia do eixo imaginário em conexão com o real, fazendo com que sejam corriqueiras as saídas pela agressividade e pelo ódio ao semelhante[6]. Sem a predominância do recurso ao Nome-do-Pai como elemento organizador, o risco é cairmos num acirramento dos processos de segregação, como indicou Lacan em 1967[7]. A identificação simbólica com um traço do pai e as identidades decorrentes dessa identificação têm um peso e uma função. Nesse ponto recorremos a Achille Mbembe, que afirma de modo preciso:
O capitalismo neoliberal deixou em sua esteira uma multidão de sujeitos destruídos, muitos dos quais (…) anseiam genuinamente um retorno a certo sentimento de certeza. (…) Eles estão convencidos de que só podem se salvar em uma luta violenta para restaurar sua masculinidade.[8]
A falência do modo tradicional de organização da sociedade tem-se traduzido em um desenraizamento e em uma perda de referenciais, o que condiz com a lógica neoliberal. Alguma orientação precisa se fazer valer, para além da tradição e do patriarcado. A ausência de um eixo organizador das subjetividades pode abrir para a possibilidade de novas invenções, mas isso depende de que haja algo a partir do qual criar.
Que tratamento para o gozo é possível que não aquele da segregação radical a que ele fica entregue quando o real da pulsão é assimilado à identificação narcísica? Parece-me que a psicanálise e a Escola como formação coletiva são respostas possíveis a essa pergunta.
Como afirma Bassols[9], a Proposição de Lacan implica um modo de laço social para além das três modalidades de identificação propostas por Freud – um modo produzido pela experiência psicanalítica quando levada efetivamente a seu fim, sobre o qual a experiência do passe testemunha. Ele continua: “Identificar-se com o mais singular (sinthoma) é deixar de esperar que o Outro seja como si mesmo, o que é, ao mesmo tempo, o mais seguro contra toda segregação ou forma de racismo”[10]. Podemos dizer que é um modo de laço a partir do mais singular, justamente daquilo que fica excluído para fazer o grande Um da massa no grupo freudiano.