Bernardino Horne (AME da EBP/AMP)
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Ricardo Becker – Eu – ano 2015
Extraída dos Outros escritos[1], a ideia expressa no título deste texto antecipa as palavras proferidas por Lacan no Seminário 19, quando ele diz: “Há Um!!!”.
Por causa desse giro de 180 graus do Outro ao Um, tudo muda, e Lacan nos dá um conselho sobre o que deve fazer um analista se quiser sê-lo de verdade. A frase é: “(…) o primeiro passo da experiência analítica é introduzir nela o Um, como o analista que se é”[2]. Isso significa que, no próprio matema da transferência, o S1 inaugural da primeira entrevista, o significante da transferência, já traz consigo as marcas do gozo Um. É que em todo S1 há algo do Um Uniano.
Ao fundar-se o campo Uniano, cria-se uma nova presença do significante e do corpo. O significante Uniano é um puro existir como gozo sem significante, ainda que produto de uma operação simbólica que permite existir sem ser. Conclui Lacan: “O que só existe ao não ser, é exatamente disso que se trata, e foi o que eu quis inaugurar hoje no capítulo geral do Uniano”[3].
Ele explicita a mudança de posição do Seminário 17, partindo do significante Unário para diferenciá-lo do Uniano, dizendo que Unário é do Outro, é de Freud, e que Uniano é do Um, é de Lacan. Esclarece-nos que, em francês, Uniano é o anagrama de tédio, entediante. O real é sempre o mesmo. O tédio do Um é a repetição do gozo masoquista original. Repete-se no corpo, que não é corpo, é puro gozo. Em “Tiquê e Autômaton”[4], Lacan afirma que a análise é uma práxis orientada ao coração da experiência, que é o núcleo do real.
Lacan funda o campo do Um como resposta da psicanálise pura às questões contemporâneas. Trata-se de um longo, novo e poderoso passo na psicanálise.
Frente às crises, na nossa história, houve sempre um retorno aos fundamentos da psicanálise, mas, sempre também, acrescentando um passo que vem do novo.
Quando Lacan enfrenta a degradação da psicanálise pelos herdeiros de Freud e propõe um retorno aos fundamentos freudianos, ele dá, ao mesmo tempo, um grande passo, ao propor essa leitura desde os três registros fundamentais da experiência humana: Simbólico, que nesse período terá primazia, Imaginário e Real (SIR).
Em Piezas sueltas[5], Miller escreve um matema: J # JS. Há gozo sem significante e há gozo com significante. Acompanho sua leitura: há duas escrituras[6], sendo que uma delas ocorre como a chuva que cai de uma nuvem, deixando marcas que facilitam, diz Freud, ou que fixam, diz Lacan. Mas há uma primeira escrita, que é constituinte, que ocorre no real, no campo do Um, que produz e expulsa as marcas desde dentro. Trata-se do campo Uniano, anterior a lalíngua, na qual também reina o gozo, embora, nela, seja gozo com significante. O Um e lalíngua se enlaçam não pelo significante, mas pelo alinhamento dos gozos.
Eric Laurent[7] deixou muito claro que as marcas não são permanentes, como a trilha da lava ou da chuva. São fugazes, mais como um orgasmo que marca pelo fato de criar a causa e o desejo de voltar, de repetir a causa. Repete sem descanso, mas não quer dizer nada a ninguém. Quando chega a nós, é disfarçado com os mais variados semblantes, o que nos obriga já não a interpretar a escrita do tamanho da selva amazônica, mas a ler a raiz, a escrita borromeana. A posição de gozo do sujeito se escreve sem significante, borromeanamente, e é uma operação no real.
Bem, mas o que tem isso a ver com querer fazer parte, hoje, de uma Escola de psicanálise?
Para podermos enfrentar os problemas que o mundo nos propõe atualmente, temos que radicalizar e atualizar nossos fundamentos, acrescentar um novo passo.
Passos e Problemas
Os trabalhos sistemáticos, com Miller, na França, dos institutos que propuseram as psicoses ordinárias, os sintomas contemporâneos, as compulsões, a anorexia, o “analista sem analisante”, a suspensão da neutralidade, dentre outras, foram uma resposta consistente aos primeiros sinais de mudanças no mundo.
Tomo um fenômeno que tem muitas conexões: a aceleração temporal que hoje predomina em nosso mundo[8]. Dizemos que o virtual e o discurso do capitalismo nos empurram ao bidimensional. Não são eles os culpados; a pulsão escópica governa. Inventa cada vez mais coisas para se satisfazer. Vasculhamos os mistérios do Universo e os detalhes micro de nosso corpo. Tempos atrás, isso nos levou à bípede estação, em luta contra a satisfação do olfato, e, no medievo, aos óculos. Hoje aparecem, a cada dia, formas mais velozes. É que o escópico se movimenta à velocidade da luz. Satisfaz-se no ato de olhar.
Há outras pulsões em jogo, e esses foram os novos passos que permitiram uma primeira resposta: a política da juventude.
Um perigo da urgência é sair do singular, ou seja, ir pela via de muitos despreparados, por uma extensão superficial, sendo que a extensão da psicanálise é a extensão da intensão.
O discurso do capitalismo nos ataca no coração da clínica. Por causa da sobrevivência, muitos analistas nunca tiveram a experiência de três sessões por semana. Esse discurso vai contra poder dizer besteiras, contra o instante de ver.
O discurso universitário é, hoje, muito poderoso, e somente os que estão em análise de verdade se salvam de serem absorvidos totalmente. Seria interessante que alguns colegas, que possuem títulos valiosos da universidade, pudessem ser Mestres sem ter que ser psicanalistas clínicos. Também penso que, na questão do passe, devemos fazer como estamos fazendo: voltar à estruturação de Lacan e fechar o passe a uma possibilidade. Porém, daria uma segunda chance de passe, e não apenas uma. Às vezes, a primeira cumpre a função de instante de ver.
Voltando ao início: “Pretendemos mostrar como a impotência em sustentar autenticamente uma práxis reduz-se, como é comum na história dos homens, ao exercício de um poder”[9]. Lacan coloca em jogo a questão do poder na experiência analítica. Desde sempre, se alinha com Freud[10], pela via di levare, que cabe à psicanálise, e não pela via di porre.
O desejo do analista é o contrário de toda vontade de poder.