Ondina Machado – EBP/AMP
O país ficou perplexo diante do ataque a crianças na creche em Blumenau. O que nos chocou tanto?
A violência contra crianças tira toda a razoabilidade na qual nos fiamos para viver. São vulneráveis e nada fizeram que criasse uma relação de causa e efeito. Essa falta de nexo nos apavora, mas esquecemos, por exemplo, que crianças são cotidianamente expostas à violência, mesmo dentro de casa. O Ministério dos Direitos Humanos divulgou que 81% dos casos de violência contra crianças ocorrem no lugar no qual supomos que estariam protegidas: em casa[ii].
O caráter extraordinário do ataque em Blumenau escancarou o quanto nossa civilização “falhou miseravelmente”, expressão usada pelo Ministro Silvio Almeida. Foi a demonstração de uma derrota civilizatória na medida em que a civilização se constrói dentro de marcos simbólicos. Porém, sabemos que sempre há algo que excede ao possível de ser simbolizado, um real que tendemos a não considerar e, por isso mesmo, sempre retorna. Essa constatação nos choca em momentos extraordinários, sobretudo quando a manifestação da pulsão de morte é pública e atinge múltiplas vítimas, nesse caso, todas crianças.
A pulsão de morte não está fora da civilização, ela integra a relação entre os homens. Apenas a forma como se manifesta é diferente em cada época por sofrer os efeitos da civilização. No nosso tempo, temos que considerar que um fato como esse, ao se tornar um evento midiático, coloca os holofotes sobre o criminoso, tirando-o da invisibilidade. Hoje, esse formato já é considerado um padrão, a ponto de os veículos de notícias terem criado um protocolo para impedir a divulgação de fotos e maiores detalhes sobre o agressor.
Se por um lado há o espetáculo da violência, por outro lado, ao tratarem como monstros aqueles que passam ao ato, podem dar indícios de uma tentativa de colocar a pulsão de morte fora da cultura. Contudo, nós a cultuamos. Nossa perplexidade se dá quando essa manifestação invade nossas vidas e somos obrigados a acordar do sonho civilizatório.
Acontecimentos como esses bagunçam o precário e delicado equilíbrio social, demonstrando que o que resta como objeto inassimilável, muitas vezes toma o lugar do sujeito. A comoção generalizada acaba sendo consequência da insurgência do objeto, lá onde ele deveria estar velado.
Qual é o tratamento que nossa sociedade propõe para dar conta do que se desvela?
Ao assombro do acontecido surge como resposta a busca por mais segurança nas escolas, a recusa de pais em mandarem seus filhos ao colégio, inúmeras análises de especialistas, enfim, uma série de providências que tentam tratar a emergência do real com os instrumentos imaginários da ordem pública. É sempre assim quando nos deparamos com a inconsistência do Outro; quando percebemos que o Outro é uma ficção neurótica, tendemos a desacreditar na lei e acreditar no guarda, ou melhor, no cassetete do guarda, como se só uma medida enérgica e violenta fosse dar conta do que o simbólico não conteve.
Os fenômenos de massa repercutem nas subjetividades, e destas surgem sentimentos que formam coletivos. Como manter a salvo a sua criança, a criança desprotegida de cada um de nós?
A repercussão na clínica não foi diferente, diversos analisantes fizeram do tema o assunto de suas sessões. Ao levarem para a análise esse impossível de suportar, outros impossíveis apareceram. Alguns tentavam explicar o crime pelas condições socioeconômicas do país, pela chamada cultura do ódio, pelo incentivo bolsonarista ao uso de armas, pela impunidade. Em outras palavras, buscam no Outro uma consistência que o objeto insurgente desafiou.
Para alguns serviu para dar nome ao que viveram, para outros foi motivo de retornos às suas próprias experiências de desamparo. Nas expressões de revolta, medo e indignação contra o criminoso, estava presente a angústia diante do objeto desgovernado que não respeitou os limites do real, que se fez presente na cena social e que provocou, mesmo que por um instante, o desfalecimento do sujeito.
Mas todos se depararam com um limite à compreensão, com o limite do significante em tentar dar conta do real.