Gustavo Ramos da Silva – EBP/AMP
Era uma quarta-feira aparentemente tranquila para mim. Na parte da tarde iria realizar o dispositivo da conversação em uma escola da Rede Municipal de Florianópolis. O Laboratório Encontro de Saberes, do qual sou responsável desde 2019, tem sua interdisciplinaridade com a educação; desse modo, os integrantes do Laboratório, após a demanda dirigida a nós, deslocam-se até a escola e realizam presencialmente uma conversação sobre o que os alunos e professores desejam falar. Quando estava almoçando com minha amiga, recebo um telefonema da orientadora educacional me comunicando a tragédia em Blumenau e a situação bem difícil que se encontravam. Uma notícia estava circulando de que o ataque fazia parte de um jogo e seria coordenado por um grupo para atacar todas as escolas de Santa Catarina. Os pais exasperados estavam indo buscar os filhos bastante agitados. Ela me diz: “Vocês decidem se vêm”. Nesse momento olhei para minha amiga e pensamos que certamente seria uma fake news – o que não tornou a situação mais tranquila. Mesmo assim decidimos ir, afinal eles poderiam querer falar sobre este momento.
Ao chegar nesta escola, uma moto já estava no portão e alguns pais na porta. Um pai, policial aposentado, decidiu ficar de plantão por ali. Ouvimos de uma funcionária que algum pai poderia ficar na parte onde ficam as crianças, pois lá o muro era menor e poderiam pular como na creche de Blumenau. Nós também ficamos com medo, pois o clima instaurado gerava pânico e uma desconfiança generalizada de que qualquer um poderia ser suspeito de um possível crime.
Quando entramos na sala de aula do terceiro ano, com crianças de seis e sete anos de idade, fomos surpreendidos com uma agitação e um ânimo, pois alguns alunos lembravam do CIEN e dos nossos nomes. “Vamos conversar”, disse um menino. Depois desse momento, o assunto surgiu. Alguns tinham visto na televisão, na hora do almoço, o caso do assassino que entrou em uma creche e matou quatro crianças com um machado. Uma menina disse ter achado que a escola era a dela e ficou com medo de ir à aula naquele dia. Outro disse que costuma ter sonhos ruins quando vê filmes de terror e que com aquela notícia provavelmente teria um pesadelo. A menina que estava sentada no chão ao meu lado, puxa meu braço e diz “é o fim do mundo”!
Essa frase proferida por uma criança me fez pensar em algumas questões relativas ao horror ocorrido em Santa Catarina, um estado com inúmeras belezas, praias, festas, magias, mas que também é conhecido como o estado com maior índice de votação em um candidato violento nas palavras, nas ações e inclusive em suas inações. Não à toa, recentemente, foi desmantelada uma célula neonazista com ligações internacionais e, além disso, temos inúmeros outros casos de falas racistas, xenófobas e antissemitas que são traduzidas no exercício da violência bruta. Em psicanálise, sabemos muito bem que as palavras atravessam o corpo e produzem efeitos, o que talvez precisemos discutir é quando esses efeitos são deletérios, para dizer o mínimo. O fato de termos sido bombardeados nos últimos anos com um discurso de ódio, armamentista, de extermínio do outro, de menosprezo pelas vidas perdidas pela Covid-19 e de desinformação, guarda estreita concomitância com o aumento estarrecedor dos índices de atos violentos no Brasil. Não podemos esquecer que o símbolo da campanha do candidato derrotado nas urnas era uma arma feita com a própria mão. O mais preocupante é que tais pessoas são comuns, não são monstros, não são psicopatas ou psicóticos, pois, como bem disse Hannah Arendt sobre a banalidade do mal em Eichmann em Jerusalém, é das pessoas comuns e ordinárias que pode sair os atos mais terríveis. Freud em O mal-estar na cultura, de 1930, postula que a abdicação da satisfação individual, toda e infinita, precisa ocorrer para o advento da comunidade, da cultura e, como consequência, da própria noção do direito e das leis. O problema é quando essa parcela abdicada retorna de maneira avassaladora, de forma hostil à cultura e ao pacto civilizatório com a falsa ideia de que seríamos mais felizes se abandonássemos e retrocedêssemos às condições ditas primitivas.
A pergunta que fica é como isso se daria se tudo o que nos “protege” das ameaças do sofrimento fizer parte da cultura e da civilização? É um ponto de não coadunação. E, neste caso, a saída parece ser a de se desfazer do vínculo individual com o múltiplo da comunidade em nome de um pai absoluto e mortífero. É por esse motivo que se dá o fascínio exercido por figuras públicas que pregam o retorno a esse estado de felicidade, quando não havia o mimimi dos discursos contemporâneos.
Sob essa perspectiva, a primeira saída encontrada foi o policiamento excessivo das escolas para impedir essas pessoas comuns de realizarem tais atos. A instalação de detector de metais, treinamento para as crianças e os professores em caso de atentados, dentre outras ideias, todas baseadas no pressuposto de que foi por falta de segurança que as crianças da creche foram mortas. Tal pensamento retira a ênfase no indivíduo e coloca a responsabilidade na comunidade que pecou na falta de segurança. E quando o foco se torna a comunidade e o que faltou, negligencia-se a responsabilidade ordinária no que está contido neste “fim do mundo” a que se referiu a menina na conversação.
Para o antropólogo italiano Ernesto di Martino, a psicopatologia aludiria ao fim do mundo tout court, ou seja, em uma espécie de delírio que não distingue o próprio mundo dos outros, ainda que o advento da cultura fale do fim de um mundo específico. Martino vai dizer que esse mundo pode ser o da servidão colonial, o que desenhamos com nosso próprio corpo ou o mundo da infância: todos os mundos que podem e devem acabar. O apocalipse não será analisado como a revelação de um fim, mas como destruição de um mundo e o início de um outro do qual ainda não temos notícias. Chegou o momento de analisarmos os efeitos dos discursos de ódio em nossa comunidade para, quem sabe, as próximas notícias desse novo mundo sejam mais benfazejas, sem ser preciso exterminar o Outro e o diferente para isso.