
Imagem: “Pose Work for Plinths”, performance de Bruce McLean, em 1971 (imagem: Tate/Divulgação).
Oscar Reymundo – EBP/AMP
Este trabalho é fruto do esforço por colocar algumas palavras, as primeiras que consegui articular, ao ato violento acontecido numa creche da cidade de Blumenau, Santa Catarina, em 5 de abril de 2023. Agradeço a Cleyton de Andrade por ter me convidado a fazer este esforço.
Diz Miller no seu curso “Todo el mundo es loco”[1], que temos que saber correr e também temos que saber fazer uma pausa, e acrescenta que não temos de nos deixar levar quando tudo vai muito rápido. Tomo estas ideias como uma oportuna orientação para tentar situar-me, e não extraviar-me em interpretações imaginárias e precipitadas, na velocidade com que uma série de acontecimentos violentos está se manifestando no espaço de algumas escolas de diferentes cidades do Brasil. Desta vez, à série de ataques a alunos e professores se soma uma creche da cidade de Blumenau, em Santa Catarina, onde quatro crianças entre 4 e 7 anos foram assassinadas, e outras cinco ficaram feridas, com golpes de machado por um sujeito que, sem vínculo aparente com a creche, após o ato de crueldade que cometeu, se apresentou, a seguir, num batalhão da Polícia Militar das imediações.
Imediatamente após que tão aziaga notícia começara a circular, algumas perguntas angustiadas foram se acumulando, e me surgiam respostas prêt-à-porte com sabor a clichê, generalizações e preconceitos mal dissimulados, impregnados de sentido, ligados à cultura de uma cidade catarinense de longa tradição germânica e de forte adesão ao discurso da extrema-direita, então… melhor uma pausa para não deixar-se levar pela velocidade dos ventos do tornado!
Reconheço que a notícia sobre uma decisão dos principais jornais e canais de televisão do pais acerca de silenciar informação sobre quem cometera esse ato de terrorismo, teve para mim o efeito de tirar-me subitamente de um estado de perplexidade e angustia, onde não encontrava palavras, onde me debatia, estado que identifico como o de um pesadelo no estado de vigília e, de repente, acordo para seguir sonhando na realidade. Uma realidade feita de relatos dentre os quais temi reencontrar, por enésima vez, o discurso de um amo que opta por ocultar informação com o intuito de evitar o contágio de atos violentos, atos que, na conjuntura atual do Brasil e de diferentes maneiras, vem se manifestando faz tempo nas redes e nas ruas. Chamou minha atenção, ao menos do jeito como foi informada inicialmente essa decisão nos telejornais, que o argumento para ocultar informação se justificasse sustentando a ideia de que não informando se evitaria que os atos violentos inspirassem outros a fazerem o mesmo ou algo pior. Contudo, me custava acreditar que, nesses níveis do poder de manipulação de informação das mídias, alguém possa crer que nesses tempos do algoritmo e de convivência no espaço digital não regulado, o ódio e a violência presentes na sociedade brasileira, dessa vez contra as escolas e seus atores, possa controlar-se silenciando informação e concluindo, como já foi divulgado, que esses atos violentos são obra de “lobos solitários” e que só os manuais de psicopatologia explicariam. Mais tarde, as razões pelas quais o Ministro de Justiça e Segurança Pública advertiu sancionar as redes que se recusem a coibir ameaças ou mensagens incitando a atos violentos, me permitiu situar melhor que este momento que o Brasil está transitando requer respostas urgentes que exigem regular o que nos últimos anos tem se desregulado produzindo posições radicalizadas que incitam ao rechaço absoluto e à violência contra o diferente. Mas tem algo em termos de informação que para mim continua em aberto. A quem convêm sustentar a ideia de “lobo solitário” ocultando a ferocidade da alcateia que de diversos modos tem se manifestado e continua se manifestando no Brasil? Basta lembrar das imagens do recente 8 de janeiro, em Brasília. Saber tudo sobre o que faz bem, controlar tudo, classificar tudo, ver tudo, calcular tudo, é a prova de nada querer saber do real em jogo, ponto de opacidade e sem sentido, presente nos laços sócias. Assim, o sonho de um mundo sem real, manifestado no discurso do amo capitalista, deixa transparecer a vontade de tornar a vida um sonho, se me permitem, um sonho sem umbigo, aprazivelmente controlado. Na direção oposta, a psicanálise descompleta o “todo” para fazer lugar ao gozo obscuro do sintoma, individual e social, e para fazer lugar ao impossível de um saber e ao impossível em jogo nas relações de causa efeito que os falantes possamos inventar.
Ecos dos eventos desse nefasto 5 de abril na clínica.
A partir das 11 horas, as primeiras reações começaram a ser escutadas no consultório.
– M se sente culpada e envergonhada por ter pensado, enquanto não podia tirar os olhos da tela, que ela tinha sorte porque seus netos, que moram em Blumenau, não frequentam essa creche.
– Z, um jovem pai, muito comovido disse da falta de ar que experimenta ao pensar no futuro dos seus filhos neste Brasil a cada vez mais violento. Z., junto com outros pais da escola dos filhos, organizou uma reunião de pais e professores “para não nos sentirmos sós nessa onda crescente de violência”.
– J, católica praticante, colaboradora num programa solidário de apoio as famílias de baixa renda, mãe de filhos pequenos, disse estar horrorizada e angustiada porque nunca antes tinha desejado a pena de morte para ninguém e, dessa vez, “fico pensando nas piores das mortes para esse monstro”.
– R falou, novamente, de sua decisão de não trazer filhos a este mundo bárbaro porque ele não consegue imaginar para a humanidade outro rumo que não seja o extermínio.
Reações singulares que, cada um do seu jeito, são manifestações da vivencia generalizada do desamparo gerado pelos modos violentos de estar e de gozar na civilização nos tempos que correm.
Nesse sentido, e seguindo Miquel Bassols em “Clínica do ódio e a violência”[2], esses modos violentos já não responderiam, tão somente, à ideia de Hanna Arendt sobre a banalização do mal, do ódio ou da violência, mas a sua “elevação como um novo objeto que brilha com sua escura presença no zênite social”. Presença escura que produz fascínio e perante a qual faltam as palavras, um indizível que nos assinala o mais íntimo e ao mesmo tempo o mais ignorado e escuro de cada um, como assinalou M. que não podia tirar os olhos da tela da televisão e como disse J., não sem horror. Decididamente, o suposto “lobo solitário” não parece ser tão solitário, não veio de outro planeta, nem sofre de um déficit de humanidade, é isso que J. experimenta que a horroriza: a relação mais intima e desconhecida com a pulsão de morte.
Por outro lado, Z. promove a reunião do grupo de pais e professores apostando no apaziguamento que as identificações e a rede solidária produzem como modo de tratar o sentimento de desamparo que, de modo obsceno pode gerar, em cada ser falante, uma cultura que tem colocado no zênite social o ódio, a segregação e a violência contra o que faz diferença. A delicadeza da presença do analista, também nestes tempos de urgência subjetiva e social, consiste, então, em trabalhar na direção de que a identificação e os laços solidários não impeçam o acesso ao mais singular da fantasia de cada sujeito como tela perante um real sempre impossível de prever. Não se trata de esperança num mundo melhor, trata-se de apostar em um modo outro de viver a pulsão, um por um, no laço com outros.