Anícia de Jesus Ewerton
Analista praticante – Seção Nordeste
“Considerações contemporâneas” é assim que Freud inicia o título dado ao seu texto de 1915, Considerações contemporâneas sobre a guerra e a morte, mas qual a definição possível para o contemporâneo? Recorro a uma das definições dada por Giorgio Agamben (2009), que diz que ser contemporâneo é quando conseguimos manter um olhar fixo ao seu tempo, a fim de que não percebemos, somente, as luzes, mas que sejamos capazes de perceber o escuro. Enquanto Agamben nos convida a “manter um olhar fixo ao seu tempo”, Lacan (1953) vai dizer “deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”. Esta colocação do Lacan vai ao encontro do pensamento de Freud, quando ressalta que a psicologia individual é inseparável da psicologia social.
Nos últimos anos pessoas que se declaram como negros ou negras vêm se aproximando da psicanálise, através das suas análises, dos eventos e dos núcleos de pesquisa, mostrando assim um cenário diferente do início dos anos 2000. Como esses encontros estão acontecendo em um ambiente sempre dominado por pessoas brancas?
No primeiro ensino de Lacan é apresentado um inconsciente que tem a estrutura da linguagem, de ficção, que é produzido do decorrer da análise. Seguindo essa trilha de pensamento cogita-se que, com cada analista será produzido um inconsciente. Como mulher preta, meu encontro com a psicanálise ocorreu, no primeiro momento, com um analista branco, pois na minha cidade não existia analista negro(a) nesse período, ainda sendo o estado do Maranhão majoritariamente formado por uma população que se declara negra. Ao mesmo tempo em que uma quase inexistência de pessoas negras em vários espaços, inclusive na psicanálise, até recentemente, era um fato insquestionável.
Esse período de minha análise foi marcado pelo silêncio sobre as questões raciais. O silêncio foi a saída que encontrei para permanecer nos espaços majoritariamente brancos, pelos quais eu transitava. Falava de outras questões, mesmo atravessada pelas questões da negritude. No encontro com um segundo analista, mesmo circulando pelos mesmos espaços, fui autorizando-me a sair desse ponto de silêncio sobre as questões raciais, principalmente das situações de racismo. Mas não só das vivências, falando, sobretudo, das alternativas para lidar com esse real.
As marcas do colonialismo sempre atravessaram o processo de segregação, tendo seus reflexos sendo percebidos até hoje, assim como, ainda são uma fonte de mal-estar. Freud (2020) ao pensar a questão do mal-estar na cultura, nos assinala que o mesmo faz parte do humano, nesse aspecto, nos deparamos com uma impossibilidade de eliminá-lo. A questão não passa pela eliminação, mas sim sobre o exercício pensar e construir condições mais dignas para que populações que foram segregadas tenham acessibilidades possíveis. Por vezes pode ser inquietante querermos lidar com questões que afligem coletividades apenas pelo aspecto individual, onde o sujeito em sofrimento estaria sempre a serviço de um supereu sombrio e tirânico.
Os eventos de psicanálise do quais eu participava no início dos anos 2000 em minha cidade, tinham como característica serem sempre marcados pela presença quase que exclusiva de uma única pessoa negra nesses espaços. A elitização predominante em determinadas profissões e funções não excluiu a psicanálise. Assim, mais uma vez, eu estava inserida em ambientes da branquitude, TRT, Instituições de Psicanálise, etc. Mesmo imersa em um discurso que, inicialmente, não fazia referência a questões sociais, eu permanecia ali com meu desejo e uma aposta de que, em algum momento, isso mudaria. Não demorou muito, encontrei o escrito de Freud “Linhas de progresso na terapia psicanalítica” (1919), que me abriu a possibilidade de uma prática de leitura que contemplasse a psicanálise em instituições públicas. Minha primeira instituição foi a Através da APAE/MA e, posteriormente de outras instituições públicas e da clínica no consultório, sustento a aposta na psicanálise.
Iniciar uma clínica em um espaço hegemonicamente branco vem propiciando algumas questões outrora não levantadas. Uma delas em relação ao corpo do analista praticante que é marcado por uma pele preta. No que tange a esse aspecto, em alguns casos, homens pretos e mulheres pretas chegam até mim pela cor, na suposição de que saberei escutar as vivências de racismo pelas quais passaram ou vêm passando. Outro marcador que aparece é o significante mulher, assim como existem situações em que nenhum significante surge aparentemente, logo de início.
Interessante ressaltar que, com a ampliação das discussões nos grupos ou coletivos sobre as questões raciais, sobre a formação da subjetividade do povo brasileiro, cuja constituição é decorrente de um discurso colonialista e eurocêntrico, tornou-se cada vez mais claro que, de um modo ou de outro, todos fomos contaminados pelo discurso da democracia racial, cada um se deixando atravessar de um modo ou de outro. O efeito dessas discussões é de desconstrução. O analista por ter a cor preta não garante a escuta do real que existe, de fato, no racismo.
E para ilustrar essa falta do letramento por parte dos analistas negros ou negras, trago a experiência de Maria Lucia da Silva (2021), psicóloga e psicanalista negra, que ao prefaciar a nova edição do livro da Neusa Santos Souza, nos diz:
Nos anos 1980, quando desejei iniciar o meu processo de análise. Já mergulhada no ativismo antirracista, busquei indicações de um psicanalista negro e tive a oportunidade de fazer a minha primeira entrevista com um. Ao responder à clássica pergunta “O que a traz aqui?”, falei sobre meu sofrimento fruto de discriminações e humilhações raciais vividas, e para meu espanto ouvi como resposta: “Isso é bobagem, racismo não existe”. (p.16)
Dos anos 80 para cá, já tivemos alguns avanços na formação do letramento racial das pessoas negras no Brasil, mas na contramão desses avanços temos a insistência sintomática no discurso da democracia racial. Isso não é sem consequências, pois a apropriação desse discurso também é feita por pessoas negras. O que é ser negro em um país que teve um projeto de apagamento de uma memória, projeto eugênico e de branqueamento da população negra e que adotou um falso discurso da democracia racial? Coloco a Neusa Sousa Santos nesse diálogo:
“Ser negro é, além disso, tomar consciência do processo ideológico que, através de um discurso mítico acerca de si, engendra uma estrutura de desconhecimento que o aprisiona numa imagem alienada, na qual se reconhece… ser negro não é uma condição dada, apriori. É um vir a ser. Ser negro é tornar-se negro” (SANTOS SOUZA, 2021, p.115)
Em que espaços as pessoas negras estão conseguindo desmontar essa estrutura do desconhecimento de si e de sua história? Sim, o divã é um lugar para essa desmontagem de uma imagem alienada, é um dos lugares de tornar-se negra ou tornar-se negro.
Também agrada-me pensar o papel dos coletivos e grupos nesse momento. Os núcleos de pesquisa, ateliês, cartéis, na minha perspectiva, têm inclusive uma função de ensino. São nesses espaços que podem ocorre um trabalho de desmontagem do desconhecimento, desmontagem da univocidade historicamente equivocada da passividade de um povo, desse povo que tem em sua ancestralidade pessoas que foram escravizadas. Também nesses lugares coletivos de estudo e conversação podemos nos apropriarmos de uma história não contada.
No que diz respeito ao inconsciente que aparece em análise, se o mesmo tem cor, é interessante pensar no próprio conceito do inconsciente formulado por Freud (1900). Este vai dizer que o inconsciente, tem uma ordem, tem uma sintaxe. Lacan (1958) no seu primeiro ensino, também, segue o pensamento de Freud, nos dizendo que o inconsciente tem estrutura da linguagem, uma estrutura de ficção (Isildinha Nogueira -2021). Se o inconsciente é um efeito de discurso, qual discurso mestre vem sendo sustentado em relação às pessoas pretas? As falas referentes às pessoas denominadas como negras vêm sendo atravessadas pela racialidade e pelos significantes pejorativos. Estamos sendo capazes de escutar a racialidade na cadeia significante ou estamos a deixando passar diante da predominância do discurso da democracia racial ou mesmo do discurso de que isto está posto para todos?
O significante “negro” faz parte de um discurso dominante que foi atribuindo aos diferentes povos do continente africano, a conotações de desumanos, inferiores, subalternos, animalizados. Hoje, essas conotações racistas insistem em permanecer, vide as cenas dos Estádio de Futebol, Fórum de Justiça, etc. Isso que acontece no social, também aparece na clínica, falas que são atribuídas a pessoas negras, como: “você parece um bicho”. Isildinha Batista (2021) ao lançar a questão da cor do inconsciente diz que não é “cor” da instância psíquica que é pensada, mas sim a ideia de como o significante “cor” está inserido num arranjo semântico, político, econômico e histórico. A questão que coloco é: será que esses arranjos semânticos, políticos, econômicos e históricos não comparecem na cadeia significante produzida em análise? Lacan (2008, p.95) vai dizer no seminário 17, que “por mais besta que seja esse discurso do inconsciente, ele corresponde a algo relativo à instituição do próprio discurso do mestre.” Se no Brasil o mestre e seu discurso são racistas, seria possível que o inconsciente que daí se produz não tenha cor?