Daniele Menezes
Analista praticante – Seção Rio de Janeiro
Já que é preciso, de qualquer modo, não lhes pintar unicamente um futuro cor-de-rosa, saibam que o que vem aumentando, o que ainda não viu suas últimas consequências, e que por sua vez, se enraíza no corpo, na fraternidade do corpo, é o racismo. Vocês ainda não ouviram a última palavra a respeito dele.
(Jacques Lacan – O Seminário 19)
Tal como Dona Ivone Laura nos ensinou, iremos pisar nesse chão devagarinho. Pisamos em chão brasileiro, chão incialmente habitado pelos povos que foram nomeados, pelo branco, como indígenas e chão posteriormente habitado pelos negros que foram sequestrados de outro continente, também pelo branco europeu e cristão. A Psicanálise praticada e estudada por aqui não tem como fugir desse chão comum, disso que nos antecede.
O que nos antecede tanto pela história, mas sobretudo pelo que é dito a partir dessa história, deixa marcas. Somos falados pelo Outro. Existe uma estrutura que nos precede, uma história prévia, a cultura que já existia antes de nascermos, antes de falarmos as primeiras palavras. Antes do nascimento somos falados por nossos pais, pelos cuidadores — seja por estarem feliz com o nascimento de um filho, seja por não o desejarem. É o mal-entendido, já nascemos nele. “O mal-entendido já estava lá antes. Pelo fato de que desse belo legado, desde antes, vocês fazem parte, ou melhor, vocês participam das algaravias (bafouillage) dos seus ascendentes.” (Lacan, 1980)
Em Observação sobre o relatório de Daniel Lagache, Lacan diz que a existência da criança é sustentada antes que ela venha ao mundo. A criança se inscreve no discurso do Outro, da cultura e em algum momento passa a falar de si como os outros falam dela. “…diríamos que, uma vez que se trata de discurso, essa conjunção sempre existiu, considerando que o discurso esteve ali desde o começo, nem que fosse em sua presença impessoal.” (LACAN, 1960)
Nessa presença, por vezes impessoal, o negro é nomeado — visto como dejeto e desqualificado. A cor de sua pele, assim como todas as características físicas que vem junto, fecham a Gestalt do que é tido como subalternizado e, pior, do que pode ser eliminado, daquilo que é perigoso. O que resta a essa pessoa? Quais são suas possibilidades?
O grande feito da Psicanálise é explorar o mal-entendido. (Lacan, 1980) Com isso, não nos parece possível uma neutralidade da Psicanálise e do psicanalista quanto ao racismo, e tampouco seu recuo frente a esta questão.
O mal-entendido do corpo em uma pessoa negra pode significar uma sentença de morte, um alvo em sua cabeça. Ao ser visto como perigoso e não podendo escapar desse lugar, é facilmente confundido como um criminoso. Seja por estar dentro do carro de mesma marca e cor de um traficante, seja por estar segurando um saco de pipoca ou um cano que é confundido com uma arma. Portanto, a ordem do dia é atirar e perguntar depois. Atira-se e depois observa que não era uma arma, que não era o traficante procurado. Era apenas mais um corpo negro morto e atirado no chão.
O negro é aquele que é discriminado de forma sistemática, que sofre a violência cotidiana de ser negro em uma sociedade que entende o branco como o humano e essa violência pode se dar a qualquer momento. O imprevisível, aquilo que pode acontecer a qualquer momento vindo de qualquer parte, é angustiante.
Jacques Lacan, no Seminário 10, tem como referência o filósofo e teólogo Soren Kierkegaard para discutir a angústia. A angústia é o que se apresenta diante do “puro possível” (KIERKEGAARD, 1844[2007]), é o imponderável. No livro “O conceito de Angústia”, o autor relaciona angústia à Criação, ao início de tudo, segundo o Cristianismo. A proibição que Deus teria lançado a Adão, de poder comer de todas as árvores do paraíso, menos uma específica, a que daria o conhecimento sobre o bem e o mal, fez com que Adão ficasse perturbado. O pecado foi então, segundo Kierkegaard, uma tentativa de pôr fim àquela angústia, elimina-se uma possibilidade.
O puro possível, na visão de Kierkegaard, e que Lacan utiliza em seu seminário sobre a angústia, está mais próximo da história do Édipo-Rei do que da ideia de sonhos que se realizam. A auto enucleação de Édipo diz do impossível que se torna possível. No auge de seu desespero, Édipo arranca os próprios olhos. E ele vê, vê os próprios olhos no chão. Lacan pergunta qual é o momento da angústia nesse caso? Ele mesmo responde, dizendo que não é o fato disso representar a capacidade de que alguém consegue arrancar os próprios olhos. Ver os próprios olhos no chão, uma vez que ele já tinha perdido a visão, é a angústia; esse é o puro possível.
Frente à essa angústia que se apresenta na civilização, o indeterminado, imponderável, esse ver seus próprios olhos no chão; as tentativas de barrar esse horror podem se dar de formas singulares, sejam enlaçadas em uma tentativa de localização do que a causa, sejam em uma tentativa de extração de algo desse horror, um anteparo à essa angústia.
O psicanalista ouve esse horror de que lugar? A pele branca, da maioria dos psicanalistas, impediria de ouvir e extrair da fala de alguém o horror do racismo? A forma como o psicanalista se debruça sobre o que diz o analisante, a instituição ou a sociedade, pode ser colonizadora ou não. O colonizador é aquele que não está disposto a ouvir, aquele que não está disposto ao encontro com o outro, mas apenas quer lhe impor o seu gozo, o seu saber, e, portanto, a sua salvação com as boas-novas, assim como os missionários fazem com o evangelho.
Seguiremos apostando, como disse Lacan, que o grande feito da Psicanálise é explorar o mal-entendido. Sendo assim, não nos parece possível naturalizar ou até mesmo silenciar o racismo do qual os analisantes trazem ao encontro ou até mesmo de encontro, no setting analítico.