Iordan Gurgel
A psicanálise é incompatível com o fascismo porque, neste, está cerceada a liberdade da palavra. Com este enunciado, me apresento – Iordan Gurgel, AME da EBP/AMP, analista cidadão! E começo me associando à enunciação de Graciliano Ramos: “a palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer”[1].Vou desenvolver esta locução na Conversação da Escola Brasileira de Psicanálise, “A presença dos analistas na democracia“, em 4 pontos:
Ponto I – “Deixe-me falar”
No âmbito da psicanálise, o primeiro clamor pela liberdade da palavra foi de uma mulher! A relação da palavra com a liberdade esteve presente desde o início da psicanálise quando Freud começou a ouvir suas pacientes histéricas. Ele soube obedecer a Emmy Von N. que se revoltou contra as perguntas insistentes dele e pediu-lhe que a deixasse falar livremente sobre o que tinha a dizer. Assim, se estabeleceu a invenção técnica de Freud, a regra da “associação livre”, como resposta ao pedido de libertar a palavra, colocando a psicanálise no âmbito da linguagem, rompendo com as convenções e infringindo as regras do raciocínio.
Posteriormente, a referência de Lacan à palavra plena que aponta a verdade e faz ato que produz o sujeito e, a partir daí, já não é o que era antes. A experiência analítica convoca a palavra e aí muitas coisas se ordenam, mas também surgem muitos paradoxos. Por exemplo, para se obter a palavra plena se parte da via oposta: dizer tudo aquilo que lhe vier à mente, mesmo que, aparentemente, não tenha nenhuma importância. Não deixa de ser paradoxal solicitar que o sujeito fale se despojando de responsabilidade. Isto deixa às claras que a palavra está abaixo do nível do reconhecimento e que concerne ao objeto. Em seguida Lacan distingue dois planos para o intercâmbio de palavras: o do reconhecimento, que se presta a comunicação e o plano do comunicado em que pode-se distinguir diversos graus: o chamado, a discussão, o conhecimento, a informação, que apontam para um acordo sobre o objeto (que sempre está em referência a palavra).
Estes dois usos da palavra coloca a psicanálise e o fascismo em campos opostos. O padrão de rigidez da linguagem do fascismo que pregna por uma unidade estrutural com uma concepção totalitária, que determina as palavras de ordem a serem ditas e mantidas, vai contra a liberdade da palavra, da qual se nutre a psicanálise, via a associação livre.
Neste sentido, o modo fascista de fazer política corresponde à definição freudiana do grupo como: “um número de indivíduos que substituíram um único e mesmo objeto pelo eu ideal e, por isso mesmo, conseguiram identificar seu eu com o de outros”[2]. A imagem do líder, que faz crer no poderio coletivo, se nutre da onipotência, herdeira da noção do pai primitivo.
Ponto II – O poder libertador da palavra
O que seria da psicanálise se não existisse a liberdade da palavra?
A inquietude política do psicanalista é revelada quando escutamos os nossos pacientes e verificamos que seus problemas são singulares, mas, não podem ser tratados se não associarmos a situações muito mais gerais que foram destacadas por Freud: a cultura, a sociedade ou a civilização[3]. Isto quer dizer que há uma incidência política no sentido mais amplo do termo que não se restringe ao “inconsciente é a política”. Esta é uma forma possível de se dizer que a psicanálise lacaniana é sensível ao mestre de sua época porque sabe que os sintomas dependem também da língua que nos habita, que também vai mudando[4]. É neste viés que devemos exigir a liberdade da palavra para sustentar o fervor pelo respeito às singularidades e ao modo de gozar de cada um. Mas, temos que estar atentos porque defender a liberdade da palavra implica, também, abrir espaço para os movimentos populistas, religiosos e políticos que, subordinados ao discurso do mestre, nestes casos, vão contra as instituições democráticas e cerceiam o respeito à cidadania – é um exercício de poder, que não interessa a nós, tampouco à democracia.
O mestre moderno introduziu uma nova forma de censurar a palavra que não passa pela proibição de falar – se pode até falar tudo – mas, em impor determinados arranjos significantes que submerge as pessoas ao “todos iguais”, limitando-lhe a enunciação. Lembremos de Lacan na Conferência de Genebra, quando nos alerta que o poder jamais se sustenta sobre a força pura e simples; pelo contrário, o poder é sempre ligado à palavra. Neste contexto é preciso servir-se da linguagem, que é pura diferença, para questionar o ideal que sufoca e poder distinguir o joio do trigo da democracia. E, assim, ser possível tomar a palavra como analista cidadão, porque a nós se impõe não permitir a exclusão de ninguém e que todos tenham seu lugar, independente de seu modo de gozar.
Ponto III – A corrupção da palavra
O escritor israelita, Amós Oz, ao testemunhar que em suas obras o que lhe move é principalmente uma responsabilidade para com a linguagem, afirma: “Muitos dos maiores males deste mundo começam com a corrupção da linguagem”[5].
Amós diz assim: “Em minhas obras, o que me move é principalmente uma responsabilidade para com a linguagem. Eu sou um escritor, trabalho com palavras todos os dias, do mesmo modo que um carpinteiro trabalha com a madeira ou um pedreiro com tijolos (ele poderia ter dito também: e o psicanalista com o significante). Assim, continua Amós: eu sinto uma responsabilidade para com a linguagem… é meu dever gritar a cada vez que vejo alguém usando uma linguagem contaminada. Quando algumas pessoas chamam outras de ‘estrangeiros indesejáveis’, ‘elementos negativos’, ‘câncer social’ ou ‘parasitas’ – e, na atualidade brasileira, podemos agregar as palavras de uso corrente pelo movimento neofascista: comunista de merda, esquerdopatas, petralhas. – sabemos, diz Amós, que é sempre aí que começa a violência, a perseguição e o requinte da crueldade. É nesta sequência que Amós faz referência a seu “dever de trabalhar como o corpo de bombeiros do idioma, ou como um detector de fumaça… é preciso gritar fogo! – como um alerta, porque sempre essas palavras vão gerar violência”.
Podemos entender tratar-se de duas abordagens distintas da corrupção: uma, a dos costumes que degrada a linguagem e outra, a corrupção estrutural da linguagem. No referente aos costumes podemos identificar, por exemplo, que ao longo da história republicana brasileira, os regimes democráticos enfrentaram grandes dificuldades para se manterem. Na atualidade o bem público deixa de ser um referencial e os interesses privados prevalecem criando um clima de corrupção e de cerceamento da palavra que ameaça a democracia[6].
Ponto IV – O analista-cidadão
Quando, em 1953, Lacan dizia que “deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que não conseguir alcançar em seu horizonte, a subjetividade de sua época”[7], ele fazia um alerta para não nos dissociarmos da consideração de Freud, que associava a psicologia individual como inseparável da psicologia social e concebia a neurose como uma resposta do sujeito à renúncia pulsional, devido às exigências da cultura na modernidade.
Este é o mote que nos une na atualidade. Não há como retroceder frente a avalanche de eventos sociais que elencam fatos constrangedores de corrupção e autoritarismo que comprometem os laços sociais e podem ameaçar o estado de direito. A psicanálise, cuja prática é do um a um e que implica a liberdade de expressão, a palavra livre e o pluralismo, portanto tem uma mão no social, não deve se manter às margens das mudanças impostas pelo programa de gozo da civilização. Se impõe então, responder ao discurso universal que submete o cidadão à lei da norma para todos.
A Psicanálise é um laço social, portanto, um tratamento do gozo e, neste sentido, está relacionada à política. A experiência analítica propõe elucidar a relação do gozo e o laço social. Trata-se de modificar a relação que o sujeito tem com a linguagem – mais especificamente, com o significante-mestre – que determina as modalidades dos laços sociais e tem relação com o gozo. É isso que dá ao analista o dever político de devolver ao sujeito a escolha decidida dessa relação com o significante-mestre[8].
Pensar a corrupção da linguagem desde essa perspectiva é um caminho de, em última instância, fomentar uma relação com a linguagem que incite o bem-dizer. É uma forma diferente de abordar a liberdade da palavra, a corrupção e qualquer manifestação contrária aos princípios democráticos.
Este é o nosso desafio: enquanto clínicos tratar a linguagem, isto é, tratar o império do S1 e o gozo e, por outro lado, em relação ao Outro social, recusar os modos estabelecidos de gozar. É o viés político: é primeiramente querer as condições materiais para o exercício da psicanálise, o que implica, necessariamente, a liberdade da palavra e, também pôr em questão os ideais da cidade e da política dominante – é a posição analista-cidadão! E é a partir desta posição que temos responsabilidade para com a linguagem e o social e nos posicionamos contra o comando único do político, do social, do econômico e do religioso. Queremos e devemos ter voz na política e estar atentos para gritar, a qualquer momento, como nos alertava Amós Oz: fogo! – quando for cerceado o exercício da liberdade do sujeito e o consequente uso da palavra for excluído.
Nós, analistas, temos responsabilidades e devemos confrontar o discurso do mestre, o que implica ir contra a posição dos governantes de esquecer o nosso passado e propor, publicamente, ações que vão na contramão do Estado de direito. Por exemplo: incentivar o ódio, legitimando somente àqueles que lhe apoiam em suas ações deletérias (independente de qualquer interpretação racional), e excluindo todos os seus opositores. É a política do populismo que, com uma política francamente segregativa, alimenta a pulsão de morte. Em contrapartida, o discurso da psicanálise vai justamente contra esta tendência, ao propor uma política que concerne ao laço social – o laço entre os que falam livremente – contrária às identificações de massa, apostando no coletivo e na pluralidade das eleições singulares do desejo e do gozo, mais além de qualquer modo de segregação[9].
Estas são minhas reflexões sobre a incompatibilidade da psicanálise com o fascismo.