Jésus Santiago[1]
Quando Lacan aborda o inconsciente por meio da política é inevitável colocar a pergunta sobre que dimensão conceitual da política se faz presente nesta definição. Questiona-se, então, se o horizonte que anima essa definição não é o alcance do poder do inconsciente sobre o real, considerando que se concebe este último como impossível e, portanto, caracterizado pela sua indeterminação frente ao saber. Se o real se apresenta destituído de um sentido e de uma lei que possa determiná-lo é porque este se ancora numa falha irredutível. O inconsciente é a política na medida que a estrutura de saber que lhe é própria está em condições de fazer litoral com a indeterminação do real. Como propõe Eric Laurent, essa afinidade entre o inconsciente e a política se faz em função da falha que se traduz pelo significante da “unidade perdida” cujo nome, no terreno da política é a democracia[2]. Desse modo, se pode afirmar que a democracia, entendida como a perda irreversível da unidade perdida, está implicada na definição lacaniana de que o inconsciente é a política. Ainda segundo Laurent, exatamente nesta falha irredutível se implanta a banda de Moebius constituida pelo inconsciente e pela democracia, tomados aqui como formas de discursos que visam tratar, em contextos distintos, o real sem lei e sem sentido[3]. Pois bem, não seria uma certa concepção da democracia, a resposta à questão assianalada no início, sobre que dimensão da política estaria implícita nesta definição do inconsciente ?
O inconsciente, a democracia e a indeterminação
Insiste-se, portanto, na tese de que a relação moebeana entre o inconsciente e a democracia se explica pelo fato de que ambos têm como coluna vertebral a indeterminação própria da contingência inerente ao real. Em última instância, é o que torna possível que um e outro fomentem práticas capazes de acolher o conflito, a divisão, o infamiliar [Unheimliche] sob todas as suas formas. A democracia não é finita e nem se escreve jamais no corpo social de modo estável e definitivo. Ela mostra-se sempre capaz de nos surpreender. Apenas encontra sua força se admitirmos que suas fraquezas e seus males não são passageiros, mas, constantes e irredutíveis. Nesse ponto preciso do caráter finito da democracia, emerge sua vertente trágica, admitindo que a tragédia consiste na representação de uma situação em que o herói age sem saber onde está o bem ou o mal. Por oposição a idéia de pecado no cristianismo, o trágico se define pelo fato de que não há uma linha divisória nítida capaz de legislar sobre o que é permitido ou proíbido[4]. Quase sempre, o herói se dá conta de que ao ultrapassar esse limite da Lei, sob os auspícios de um desejo inconsciente puro, expõe-se ao pior e à catástrofe.
Como é o caso do inconsciente, a democracia consiste em experiência e invenção; ou seja, está, para sempre, sujeita a ser reescrita[5]. Essa relação constitutiva com a indeterminação do real, faz com que a democracia possa, de tempos em tempos, adoecer gravemente. Nos tempos atuais, já se apresenta num quadro de adoecimento agudo e corre sérios riscos de vir a óbito, caso as forças políticas que se embasam no valor efetivo da democracia, não tenham êxito no próximo pleito eleitoral. A democracia revela-se, assim, ser uma sociedade por excelência permeável aos poderes da palavra e da linguagem e é, por essa via, que se torna capaz de acolher e preservar a inteterminação. Em contraste, o totalitarismo edifica-se sob o signo da recriação dos valores tradicionais da sociedade patriarcal, agencia-se contra a indeterminação, pretendendo com isto deter o curso das mutações que tem lugar no laço social.
A análise do poder em regimes totalitários se estende e se aprofunda, ainda mais, com a descoberta freudiana da Psicologia das Massas, em que sujeitos esparsos mostram-se suscetíveis de cair sob o domínio de uma identificação coletiva que revela a presença de um objeto, colocado em posição de denominador comum e ideal. A análise do lider religioso ou militar põe em evidência o modo elementar dos meios de captura das fantasias e desejos do sujeito, pelo mestre contemporâneo, reconhecendo, nisso, a intricada relação entre os significantes-mestres ofertados e o mais-gozar. Essas formas de gerar poder procedem pela via da identificação, na medida em que manipulam semblantes e significantes-mestres que buscam capturar o sujeito.
A imagem do corpo e a descorporalização
Para se ter acesso a essa manipulação dos significantes-mestres, é preciso levar em conta o poder em suas distintas modalidades, ou seja, considerar a ordenação cumulativa de semblantes nas suas diversas formas, a saber: o poder democrático ou o totalitário nas sociedades modernas, bem como aquele que antecede a ambos, o poder soberano e absolutista do rei. A esse propósito, emprego a estratégia comparativa que o filósofo Claude Lefort lança mão para destacar um aspecto decisivo desta oferta de semblantes – a imagem do corpo –”[6] tal como ela se extrai do poder soberanto do rei presente nas formas de governo em que predominam o domínio de homens sobre homens em detrimento da lei[7].
A fonte deste fator interpretativo dos diversos poderes se encontra na abordagem clássica do historiador alemão, Ernest Kantorowicz, O corpo duplo do rei[8], livro do qual se retira a gênese da imagem do corpo do rei em sua dupla natureza: de um lado, natural, funcional, mortal; de outro, incorruptível, místico e eterno. A sociedade do Antigo Regime representava para si sua unidade, sua identidade como a de um corpo – corpo que encontra sua figuração no poder soberano do rei, ou melhor, corpo composto de um número de pequenos corpos que extraem nele, suas referências identificatórias. Esses pequenos corpos se organizam sob o domínio de um grande corpo imaginário do qual o corpo do rei fornece a réplica e a garantia de soberania.
O destacamento do valor eterno e místico do corpo do rei é signo de sua autoridade suprema tendo em vista que o Outro social o simboliza no falo[9]. Por consequência, pode-se dizer que os semblantes falicizados prescrevem efeitos para além da ordem de sentido. Trata-se de uma sociedade que apresenta uma unidade substancial no poder falocêntrico da imagem do corpo do rei que ocupa, no seio dos corpos, um lugar de exceção sob o modo do “existe x, não-phi de x” [Ex./Fx]. A crença no valor de exceção se justifica pela intrusão destes semblantes na imagem do corpo heterossexual tomado como encarnação da “dialética falocêntrica” em que, no caso em foco, o rei representa o Outro absoluto[10].
A democracia como lugar vazio do poder
À formação de poder absolutista sucedeu a democracia moderna fundada numa ordenação completamente distinta dos semblantes que tem a sua origem nos regimes políticos monárquicos. Sem ater-me ao desenrolar dos acontecimentos históricos, interessa-me destacar o ponto de inflexão que permite essa nova oferta de semblantes do poder, na democracia. Segundo Lefort, a revolução democrática explode, quando o corpo do rei se encontra destruído, quando cai a cabeça do corpo político, quando, simultameamente, a coroporeidade do social se dissolve[11]. A democracia se define, nesses termos, pela infiltração do princípio da desincorporação geral no conjunto da sociedade, de uma tal maneira que se apaga a identidade do corpo político. O poder deixa de ter um detentor perpétuo ou um fiador último de sua ancoragem falocêntrica. Aqui se introduz uma das formulações capitais do filósofo: “o poder na democracia aparece como um lugar vazio”[12] e aqueles que vem a ocupá-lo o exercem como simples mortais e por tempo limitado.
A lei não escapa à esse princípio de desincorporação dos semblantes fundamentais da realeza, pois não se fixa como um absoluto, na medida que seus enunciados são passíveis de contestação e seus fundamentos suscetíveis de serem reinventados. Se a democracia inaugura formas variadas de experiências que buscam lidar com o real indomável e marcado pela indeterminação; prevalece, nela, o sentido da livre diferenciação de modos de existência, de modos de agir, da manifestação e do conflito das opiniões frente as formas de autoridade supostamente detentoras do poder social[13]. Esse aspecto da indeterminação da democracia e do poder que emerge no lugar vazio aponta para o regime do “não-todo fálico” do corpo feminino. Em outros termos, no interior do processo de desincorporação do poder falocêntrico, surge a democracia que, a exemplo da mulher, se vê encoberta por mistérios e pela opacidade de suas formas de existir, de uma tal maneira que não há saber definitivo e pronto sobre como lidar com ela.
A imagem do corpo também está a serviço do movimento político totalitário, de viés neofascista, que se implantou, em nosso país, nos últimos quatro anos. Nesse caso, o líder desse movimento se vale de uma imagem que se constrói com o concurso do corpo de um homem branco, heterossexual e portador de uma presumível potência viril, conclamada aos quatro ventos. Não é menos importante o fato de que a potência desse personagem patético esteja, frequentemente, associada ao uso de uma arma apontada para o outro qualificado como estrangeiro e inimigo. A lucidez do psicanalista não se furta em explicitar o caráter denegatório dessa insistência arrogante em querer apresentar-se por meio de sua suposta força viril. Quero dizer que esse exibicionismo é sinal evidente de sua debilidade e impotência que, no fundo, revelam o seu desdém e ódio pelo feminino. Se o totalitarismo em seu afã de uniformização da vida coletiva por meio do retorno dos semblantes da tradição patriarcal torna-se misógino, a democracia segue, por sua vez, o curso da desincorporação destes semblantes e, por consequência, ela é abertura para o feminino infamiliar. Enfim, o feminino infamiliar é a política!