Cleyton Andrade
TALQUEI?
Você tem fome de que? De liberdade? De palavras? De saber? Fome de democracia? Se está lendo e preenchendo com os significantes de sua fome, talvez seja sinal de que não está com a barriga vazia. É um privilégio poder ler e pensar a fome transformada em diversos semblantes que instigam. Contudo, quem passa fome não tem tempo de ler o que escrevo. Nem interesse. É bem verdade que existem as Carolina Maria de Jesus, que, passando fome, ainda se colocaram a escrever e a dizer, num esforço ou de poesia ou de testemunho, de que a fome tem cor… é amarela.
Luciano de Oliveira Rosa, motoboy, entregador de comida por aplicativos (reportagem da BBC News Brasil de 28 de setembro de 2022, intitulada : O relato de entregador de comida que dorme nas ruas de SP) depois de uma longa jornada de trabalho, tem que passar a noite dormindo na rua para ter como enviar dinheiro ao filho pequeno e ainda ter o que comer. Como muitos, carrega comida nas costas com a barriga vazia. No Brasil, 15,5% da população passa fome, enquanto outros 15,2% se alimentam em quantidade e qualidade insuficientes.
A significação imposta, ideia que aparecerá em mais de um dos textos deste número, não se limita à univocidade. Ela visa alterar a própria realidade. Só assim um líder fascista poderia dizer e repetir que não há fome no Brasil.
No deslocamento entre compaixão, caridade, indiferença e finalmente o ódio, como nos lembra Valéria Ferranti em seu texto, talvez o essencial na avaliação da compaixão e sua irmã, a caridade, seja tornar aparente a sua verdade inaparente: a indiferença e o ódio. O caridoso que se vale da fome para exercer sua compaixão com a cesta básica, é capaz de gravar vídeos expondo publicamente a verdade de seu gozo. A cena, como num quadro de guerra, congela a imagem em que caridade e ódio não se diferenciam. Afinal, a indiferença é em relação ao outro. Um modo fascista de dizer que o outro não existe. E, ao mesmo tempo, reiterar o Outro que existe de modo totalitário, Todo, sob a forma da utopia fascista.
Termo trazido, cirurgicamente, no texto de Romildo do Rêgo Barros; os fascistas nutrem uma utopia. O que não é o caso nem do conservador nem da própria direita. Como podemos depreender do texto de Romildo, o conservadorismo juntamente com o liberalismo e o socialismo, compõem os três principais movimentos políticos da modernidade. O conservadorismo visa a manutenção ou no máximo pequenas reformas, e, nesse sentido, não são mobilizados em torno de uma utopia. Embora haja pontos de interseção entre o conservador e o fascista – uma posição anti-igualitária com estratificações entre aqueles que são superiores frente à uma minoria, consequentemente assumindo semblantes misóginos, segregacionistas, racistas, classicistas; posição anti-socialista; posição refratária a movimentos sociais emancipatórios; e por fim ambos têm uma posição anti-racionalista, onde a fé e os afetos são estratégias prioritárias em relação à razão – ainda assim, são distintos. Ou seja, o conservadorismo, o liberalismo e o socialismo, em que pese quaisquer críticas em qualquer direção, são legítimos dentro de um processo democrático. Ao contrário do fascismo que tem uma posição antagônica com a Democracia.
O fascista é movido pelo anseio de uma mudança que visa a introdução de seu programa, de sua verdade inquestionável, superior e unívoca, enfim, de sua utopia, pela via da destruição do outro. Visa exterminar os semblantes que não são os seus, os modos de vida, a poesia, a arte, a ciência, a política. E para aqueles que não têm a possibilidade de uma segunda morte, preservando o corpo, ao contrário, serão expostos à fome, à COVID, à falta de merenda escolar, etc. Aos privilegiados, o fascismo implementa a segunda morte. Às minorias, atinge primeiro o corpo…mata de fome, bala perdida ou achada, falta de vacinas. São privados da própria vida. O fascismo traça uma linha de destruição. De um lado a morte simbólica, da palavra, do sentido, das formas de vida. De outro lado, para a minorias, não atinge apenas a forma de vida, é a própria vida que é destruída.
Em meio ao pesar dos nossos últimos anos, e com a alegria da possibilidade de resposta à altura, não tenho como esconder a satisfação de imprimir em letras o que já se encontra em áudio e vídeo. As palavras ditas com a justa medida do tempo para não virem a reboque da história. A EBP realizou um debate fundamental que agora ganha o contorno impresso. Posso dizer que um dos pontos essenciais, além do cuidado dos textos que merecem ser lidos, relidos e até estudados, são textos de uma posição que não teme dizer seu nome.
A Democracia é a expressão do desacordo com a posição viril de ostentação denegatória, cujo exibicionismo é sinal evidente da debilidade e impotência, como nos diz o texto de Jesus Santiago. Ele mostra com clareza, como os semblantes da tradição patriarcal que compõem um líder patético e misógino, são na verdade faces de um totalitarismo que foge da democracia, não como o diabo foge da cruz, mas sim, como um projeto supremacista que não suporta o feminino-infamiliar da política. A Democracia, no seu movimento pendular às voltas com o vazio, pode ser o ato que desarticula o programa totalitário numa abertura ao feminino.
Quase num movimento orquestrado, Iordan Gurgel inicia lembrando que a psicanálise começou com a injução de uma mulher pela liberdade do dizer: “Deixe-me falar!”. Não restam dúvidas: no uso da palavra, psicanálise e fascismo estão em campos opostos. Não há conciliação possível aí, nem ao preço de malabarismos pseudo-teóricos e oportunistas. Iordan convida Amós Oz para chamar atenção sobre uma dimensão ética impossível de recuar: “Quando algumas pessoas chamam outras de ‘estrangeiros indesejáveis’, ‘elementos negativos’,‘câncer social’ ou ‘parasitas’”(…) torna-se seu dever “trabalhar como o corpo de bombeiros do idioma, ou como um detector de fumaça… é preciso gritar fogo! – como um alerta, porque sempre essas palavras vão gerar violência”. O silêncio ou neutralidade não é uma opção.
A incompatibilidade entre psicanálise e fascismo é uma das conclusões convergentes nos textos trazidos aqui. Aparece literalmente também nos textos de Romildo do Rêgo Barros, e no de Louise Lhullier. Em seu texto, Louise desdobra e ressoa a diferença entre psicanálise e fascismo em torno da questão do sentido. Para isso, tem a fineza de recolher as palavras e o sentido veiculado pelo movimento Gays com Bolsonaro. A torção semântica é de tal ordem, que chegam a interrogar quem de fato seria homofóbico…Jair ou os movimentos LGBT? Jair, sim… É assim como se referem a esta figura, entre o tiozão sem noção e o pai violento. O contorcionismo com o sentido chega ao ponto de ser menos uma interrogação feita a um discurso claramente homofóbico de semblantes ultra viris, mas sim como uma forma de interrogar a comunidade LGBT, que, em resumo, deveria aceitar o jeitão sem jeito, mesmo que bronco, desse paizão Jair. Se por um lado a vergonha e a responsabilidade têm relações com os ideais, por outro lado, não querer saber nada disso mantém a distância da própria vergonha e da angústia.
Glacy Gorsky, na Alemanha de meados da década de 1970 traz reflexões não sem esse corpo atravessado. Desse lugar hibrido de quem experimentou resíduos de uma Alemanha pós segunda Guerra e de uma psicanalista que se inquieta com seu tempo, destaca de Lacan do seminário 18, que “não é necessária uma ideologia para que haja racismo, é suficiente um mais-de-gozar. Ou seja, o que sustenta o racismo é um mais-de-gozar. Lacan previu que esta seria – e, infelizmente constatamos o veredito – a grande ameaça da civilização, convergindo para a barbárie.” Seja qual for o momento em que estiver lendo este número, poderá, simultaneamente, encontrar notícias de novas agressões, homicídios ou ataques de uma horda que parece reafirmar a ideia de Freud, de que o processo civilizatório é um ganho, mas é também uma conquista que tem que ser mantida e reiterada como decisão coletiva, uma vez que a barbárie espreita por novas possibilidades. Diante do líder bárbaro não importa o conteúdo da fala, mas o poder da voz como objeto pulsional. A pulsão de morte, nos lembra Glacy, pode estar tanto nos rumos da destruição quanto na raiz de qualquer criação. É, novamente, uma questão ética termos clareza de nossa posição.
O texto de abertura de Romildo do Rêgo Barros já é um editorial deste número, tornando caduco este que só por ofício é o editorial. Retomo o que já apontei acima do texto de Romildo a respeito da utopia fascista, cuja síntese é a destruição dos adversários transformados em inimigos. Sejam eles os tais “comunistas” que só existem para estes fascistas, mas também qualquer minoria. Sim, mulheres, pobres, negros, indígenas, quilombolas, LGBTs, são seus inimigos. Se a síntese é essa, a tradução literal tem nas palavras do presidente sua maior materialidade.
É a favor da ditadura, do pau de arara e da tortura para quem pesa sete arrobas e não serve para procriar, para índio isolado como animal no zoológico sem direito a terras demarcadas, para homossexual que seria melhor morto, para as mulheres efeito de fraquejadas, para a Amazônia igual à época do descobrimento. Pau de arara para a ciência, vacina, educação e professores. Para que livros se tivermos CACs? Policial bom tem que matar, pois bandido bom é bandido morto. Herói é o torturador, o miliciano e o assassino com medalha no peito, inspirando o povo armado que não será escravizado. Agoniza o SUS, asfixia o sistema de saúde, faz show de horrores com pantominas obscenas de uma saturação baixa diante de milhares de mortes pela falta de ar, de políticas públicas, de vacinas, de cuidados, de dignidade. Mas, e daí? Não é coveiro, é Messias, mas não faz milagres. É Deus, Pátria, Família e Liberdade, todos imbrocháveis diante das minorias morríveis.
Eu poderia seguir o Hino ao Inominável tomando a letra de Carlos Rennó. Mas com a música de Chico Brown e Pedro Luís, essa letra que interpreta o gozo mortífero e o vínculo pelo ódio ressoam mais diretamente no apêndice. É, a digestão fica difícil, bem como as defesas. Ainda bem que, se na carência de células linfoides podemos nos defender com a Democracia, com o voto em urnas eletrônicas, com amor, libido, música, poesia, psicanálise e uma série de coisas que nos ajudam a dizer um basta!
Não dá para não dizer mais algumas palavras deste hino, àqueles que se inquietam em nome de uma suposta neutralidade que não se diz fascista: “A turba cega-surda surta, insuportável, e grita ‘mito!’, “eu autorizo!’ e pede ‘bis’!” … “A horda lamentável”.
Chega Democracia, vem! Seja bem-vinda, bom retorno!
À horda, chega!