Louise Lhullier
No Movida Zadig realizado em Florianópolis no dia 6 de agosto último, Romildo do Rego Barros afirmou: “A psicanálise é incompatível com o fascismo.”
Impossível discordar de Romildo, há argumentos de sobra para sustentar essa afirmação. No entanto, gostaria de destacar o que ele situa como ponto-chave dessa incompatibilidade, ou seja, que é no campo do sentido e da linguagem que a psicanálise e o fascismo se excluem mutuamente.
Penso que no Brasil atual essa é uma questão fundamental, que extrapola outros debates concernentes à liberdade de expressão que visam sobretudo, os limites dessa liberdade, ou, em termos muito simples, se todo mundo pode falar o que lhe der na telha, onde e quando quiser. Embora esse seja um debate importante e necessário, a intervenção sobre o campo da palavra por meios mais sutis pode ser tão ou mais nociva à democracia. Tanto ou mais que a censura, a degradação da palavra afeta a própria capacidade de pensar. Além disso, a resistência a essas práticas insidiosas se mostra muito mais complexa.
Um exemplo recente desse tipo de intervenção pode ser lido em uma entrevista em vídeo que o fundador do movimento Gays com Bolsonaro concede a uma colunista do Jornal Gazeta do Povo. É facilmente localizável no youtube. Basta buscar por Dom Lancelotti, nome fictício do entrevistado, acrescido de Gazeta do Povo.
A chamada para o vídeo da entrevista[1] anuncia: Fundador do “Gays com Bolsonaro” derruba narrativas do movimento LGBT e homenagem ao pai desmistifica homofobia. Durante a entrevista, uma frase pode ser lida na parte de baixo da tela: Movimento LGBT é intolerante e homofóbico. Logo ao início, a entrevistadora explica que o convidou
Porque o Dom fez uma belíssima homenagem para o pai no Dia dos Pais, revelando como foi a reação do pai quando ele revelou que era homossexual e depois, conforme os anos se passaram, o pai foi aceitando melhor aquela informação. Belo exemplo de como se combate a homofobia, como se combate a intolerância e como se aceita as diferenças de opinião.[2]
Esta abertura estabelece o tom da entrevista, posicionando Dom como paradigma dos gays de família, que se pautam por valores conservadores, em oposição aos que defendem a causa LGBT, que seriam de esquerda, promíscuos, preconceituosos, intolerantes e segregacionistas em relação àqueles que têm opinião diferente. Aliás esta é uma primeira redução importante: trata-se o tema em termos de mera diferença de opinião. Ao mesmo tempo, cria-se dois campos adversários. De um lado, o movimento LGBT e seus militantes e simpatizantes, de outro, os gays que entendem e aceitam pessoas associadas a uma figura fictícia muito popular, o tiozão do pavê – também conhecido como tiozão do churrasco, que não mede suas palavras, meio sem noção ou antiquado, mas, assim mesmo, aceito ou tolerado porque diz o que pensa e “porque é da família”. Ouçam o que diz o entrevistado a certa altura:
Meu pai tem quase a mesma idade do Jair. Tudo que Jair disse já ouvi de meu pai. Assim que me assumi estava com meu pai no carro e pensei que a gente fosse morrer. Ele acelerava e gritava: “prefiro ter um filho morto do que um filho gay”. […] Jair e meu pai foram criados na mesma época, com as mesmas ideias, sem conhecimento sobre determinadas coisas. Além disso, tinham como referência a promiscuidade que o movimento LGBT virou. Eu entendo completamente que um tiozão do pavê, como meu pai e o presidente, tenha esses pensamentos. Isso não significa que a pessoa não possa mudar.
Vejam, que a referência ao presidente da república pelo prenome não é à toa, assim como a insistência, a repetição do significante pai, ao dia dos Pais e também ao tiozão do pavê. Tudo isso contribui para deixar a figura de Bolsonaro, rejeitada por mais da metade dos eleitores brasileiros, mais familiar, alguém que, devido ao seu “jeitão espontâneo”, fala coisas que se deve aceitar como diferenças de opinião, entender e procurar mudar seguindo o que a entrevistadora qualificou como belo exemplo dado por Dom. Assim, o campo das relações intrafamiliares, uma solução individual é confundido com o campo da política e das lutas pelos direitos das minorias. Assim, as declarações homofóbicas do presidente têm sua importância relativizada, e, em paralelo, Dom ataca o movimento LGBT, acusando-o de só atrapalhar a vida dos homossexuais por ser intolerante, por querer impor suas pautas a quem pensa diferente, homofóbico, defensor da promiscuidade e contra a família. Além disso, própria definição de homofobia é colocada em xeque, na medida em que comentários homofóbicos dessas figuras antiquadas – pai, tiozão, Jair – são invalidados como manifestações de homofobia e a acusação de homofobia é invertida. Uma falsa questão é introduzida nas discussões das redes sociais: quem é homofóbico, Bolsonaro ou o movimento LGBT? Ou ambos, pergunta uma terceira corrente? E assim, a confusão vai se instalando ou, para usar um termo retomado por Guy Briole em seu artigo O discurso sombrio, publicado na revista Opção Lacaniana número 82, se opera um acinzentamento do discurso que caminha para uma noite onde todos os gatos são pardos, as diferenças se tornam mais indistintas, apagadas.
Segundo Briole, chega-se a isso através da interferência sobre a palavra, de forma intencional e com objetivo definido. Não se trata de silenciar sobre os fatos ocorridos e fartamente documentados. Não. Trata-se, ao contrário, de falar, de escrever e incansavelmente, passo a passo, operar a distorsão, mascarando a prestidigitação semântica em jogo[3]. O sinal emitido vai sendo distorcido pela interferência de maneira tão sutil, a cada vez, que isso passa despercebido. Se trata de truque, de prestidigitação, que serve como uma luva ao não querer saber nada disso que prolifera no campo das subjetividades em nossa época. Briole se refere ao discurso dos negacionistas do horror do holocausto e da colaboração com a ocupação nazista durante a II Guerra Mundial. No entanto, parece ajustar-se muito bem ao que vivemos hoje no Brasil. Vale a pena ler seu artigo, assim como vale a pena escutar as vozes dissonantes.
Nosso colega Gil Caroz destaca que vergonha e responsabilidade são “dois termos para designar posições subjetivas que fazem barreira à pulsão de morte”[4]. Vergonha e responsabilidade têm relação com os ideais, em queda livre ante a ascensão do objeto, que comanda nosso tempo em aliança com o não querer saber nada disso, que serve para manter à distância a vergonha e a angústia[5]. Não desviar o olhar ante tudo isso, sem o véu da ignorância, da indiferença e do sectarismo, requer coragem.