Lucíola Macêdo
Cada época tem seu fascismo e a isso se chega de muitos modos, não necessariamente com o terror da intimidação policial, mas também negando ou distorcendo informações, corrompendo a justiça, paralisando a educação, divulgando de muitas maneiras sutis a saudade de um mundo no qual a ordem reinava soberana, e a segurança dos poucos privilegiados se nutria do trabalho e do silêncio forçado da maioria. (Primo Levi)

28 Millimètres, Women Are Heroes, Action in Favela Morro da Providencia, Maria de Fatima, day view, Rio de Janeiro, 2008
A linguagem está para o corpo da civilização assim como a língua, como órgão do corpo libidinal, está para o corpo dos falasseres que a habitam. Os usos da linguagem num determinado tempo e lugar dizem muito e até mais que os sentidos e significações que circulam por meio do conjunto dos enunciados que marcam uma época. Seus meios de escoamento em tempos obscurantistas, que vão do uso da máquina política para silenciar vozes discordantes (tão consubstancial aos regimes totalitários e estilos autoritários de gestão) às fake news e sua proliferação neste início de século, fazem da linguagem o combustível para os aparelhos da pulsão de morte. O silêncio cumpre, nessas circunstâncias, no primeiro caso, funções de sobrevivência e no segundo, de não proliferação.[1]
O tema deste número de Correio Express nos convoca a revisitar as vicissitudes da linguagem e do silêncio no contexto do nazismo, mais especificamente dos campos de concentração. A epígrafe a este texto foi extraída do artigo intitulado “Um passado que acreditávamos não mais voltar” e publicado em 1974, passadas três décadas do fim da guerra, em resposta às teses negacionistas que ganhavam terreno na Europa. Isso quer dizer que a Coisa retorna, basta olharmos ao redor. Levi defendia a tese de que entre o campo de concentração e a vida cotidiana transcorrida em sua banal regularidade não havia abismos intransponíveis. Neste ponto, ele se aproxima de Lacan. Não me parece irrelevante que no texto “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola” o campo de concentração apareça textualmente como um dos pontos de fuga em perspectiva do nó que ata a psicanálise em extensão à psicanálise em intensão: o mito edipiano como facticidade simbólica; a sociedade psicanalítica e a estrutura de grupo fundada nas identificações segundo o modelo do exército e da Igreja, como facticidade imaginária; e o campo de concentração como precursor do remanejamento e universalização dos grupos sociais pela ciência como facticidade real e gatilho para uma ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação.[2] Não sem a ressalva para o fato de que, o que antes foi um sítio de refúgio, poderia se tornar, no momento seguinte, um polo segregador[3]. Como bem argumenta Christiane Alberti, Lacan teve em conta o laço social e as suas transformações, a ponto de registrá-lo, em sua teoria, como um real que devemos levar em consideração, e, mais que isto, apontando o campo de concentração e os testemunhos dos sobreviventes como os fatos históricos tributários da integração do real à sua teoria.[4]
Incomunicabilidade não é o mesmo que silêncio
No contexto do Lager, a incomunicabilidade e a mudez, fossem elas voluntárias ou impostas por falta de um entendimento da “língua do Terceiro Reich”, levavam rapidamente à morte. Saber ou não o idioma dos algozes era um divisor de águas entre os que sucumbiram e os que sobreviveram, pois quando se compreendia o alemão e lhes respondia de modo minimamente articulado, instaurava-se uma aparência de relação. A quem não os compreendia, a ordem era repetida em alta e enfurecida voz, aos berros, “com golpes, sopapos e murros, como se fazia com as vacas e as mulas”[5].
Levi relata que em sua memória ficaram impressos sob a forma de um filme desfocado e frenético, cheio de som e fúria, carente de significado, um caleidoscópio de personagens sem nome nem face, imerso em um contínuo e ensurdecedor rumor de fundo, sobre o qual a palavra humana não aflorava. Um filme em cinza e negro, sonoro, mas não falado. No lugar do vazio cavado pela impossível comunicação, quarenta anos mais tarde, Levi ainda recordava a forma puramente acústica de algumas frases pronunciadas em línguas desconhecidas. Irrompia à memória, perfurando as barreiras do tempo e do espaço, não o seu número de controle, mas aquele do prisioneiro que lhe precedia na listagem de certo alojamento cuja língua oficial era o polonês, idioma nativo dos distribuidores de sopa. Quando se ouvia o próprio número, era preciso estar pronto e com o prato estendido para não perder a vez. Condicionara-se a levantar ao ouvir stergishi stéri, que passou a funcionar como a campainha para os cães de Pavlov, provocando uma imediata secreção de saliva. Só após a liberação dos campos, descobriu que essas duas palavras juntas queriam dizer quarenta e quatro.
Do rumor de fundo dos primeiros dias de confinamento, emergiram também, com inaudita insistência, outras palavras que não reconhecia como alemãs. Mais tarde, um amigo polonês lhe explicara os significados: queriam dizer “cólera”, “sangue de cão”, “raios”, “filho da puta” e “fodido”. Esses sons estrangeiros grudaram em sua memória como em uma fita magnética em branco. Não era o sentido o que os fazia retornar, pois desconhecia seu sentido. Eram imprecações, blasfêmias ou frases cotidianas repetidas com frequência, que, quando compreendidas, funcionavam como fragmentos arrancados à indistinção, fruto de um esforço inútil de conferir algum sentido ao absurdo.
Ainda que limitadíssimo, reconhecia que seu Wortschatz, seu pequeno “tesouro de palavras”, se tornara um fator decisivo para a sua sobrevivência, e que os prisioneiros não sofriam da mesma maneira com a impossibilidade de comunicação. Não sofrer, aceitando o eclipse da palavra, prenunciava a aproximação da indiferença definitiva:
Alguns poucos, solitários por natureza, ou acostumados ao isolamento já em sua vida “civil”, não davam mostras de sofrer; mas a maior parte dos prisioneiros […] buscava defender-se, cada qual a seu modo: uns mendigando migalhas de informação, outros propalando sem discernimento notícias triunfais ou desastrosas, verdadeiras, falsas ou inventadas, outros ainda esticando os olhos e os ouvidos para captar e tentar interpretar todos os sinais oferecidos pelos homens, pela terra e pelo céu.[6]
A irritação de Levi diante do elogio à incomunicabilidade, muito em voga nas vanguardas nos anos 1970, tinha suas raízes mergulhadas nesta experiência radical de incomunicabilidade, em que o silêncio, a mudez e a ausência de comunicação foram fatais. Não se apresentavam ao modo dos equívocos de uma língua viva, ou ainda do impossível de dizer como efeito do próprio exercício significante. O murmúrio, o balbucio, o urro, rompiam a densa barreira da ausência de linguagem, desprendendo-se como resíduos fônicos de uma não-língua. Levi não amava a incomunicabilidade, pois havia experimentado o estrangulamento da língua em doses mortíferas durante o tempo de confinamento, encarnada na mais pura expressão de uma existência intersticial de “seres desprovidos do inconsciente”, cujas sibilações refletiam o mundo desolador ao seu redor. Era suficiente um léxico composto de uma dezena de signos, fossem eles acústicos, táteis ou visuais. A linguagem havia sido condenada a funcionar como mero ruído informe em meio a uma babel de línguas.
A vida das palavras, depois da catástrofe
As primeiras notícias sobre os campos de extermínio nazistas começaram a difundir-se no ano crucial de 1942. Eram notícias vagas, mas convergentes entre si: delineavam um massacre de proporções amplas, de uma crueldade tão extrema, de motivações tão intrincadas que o público tendia a rejeitá-las em razão de seu próprio absurdo. Tal rejeição havia sido prevista em antecipação pelos agentes do extermínio: Seja qual for o fim desta guerra, a guerra contra vocês nós ganhamos; ninguém restará para dar testemunho, mas, mesmo que alguém escape, o mundo não lhes dará crédito.[7]
Uma das faces mais nefastas do horror, aquela perpetrada sob a égide do que Levi nomeou como “zona cinzenta”, pesou de modo inaudito sobre os sobreviventes: o nazismo delegou às próprias vítimas uma parte do trabalho indispensável ao funcionamento da indústria da morte, ao encarregar os próprios prisioneiros do transporte dos cadáveres das câmaras de gás para os fornos crematórios. Como viver após Auschwitz? Indagavam-se os que retornaram. O testemunho permitiu a alguns dar ao que aconteceu um lugar no Outro, sem o qual a carga de angústia que acompanhara os que sobreviveram tenderia a ficar à deriva e se perpetuar em uma incessante busca de inscrição. É preciso ressaltar que ao considerar o corpus dos escritos e relatos de cunho testemunhal, que tomo aqui na perspectiva do sintoma, já não se trate da crueza sem palavras do horror padecido, mas do traumatismo tomado na dimensão da fala, da escrita, ou seja, no âmbito de uma experiência de linguagem. No caso do primeiro, qualquer aproximação interpretativa recairá na impostura. Apenas a segunda é passível de alguma leitura.[8]
Há ainda a dimensão inapreensível do vivido, que se articula ao que, no Seminário 16, De um Outro ao outro, Lacan aponta ao postular que, em situações-limite, gozo e corpo se separam[9]. Jacques-Alain Miller enfatiza que “é essa separação entre o gozo e o corpo que faz com que o gozo seja, antes, do Outro”. Ele diz: “sabemos dos traumatismos devidos ao fato de um Outro ter forçado ou imposto seu gozo ao nosso corpo. Esse regime de violação… é certamente o que há de mais traumático”. E agrega: “somos forçados aqui, a colocar entre aspas a palavra fantasia e conceder crédito a esse traumatismo”, e em sua estrutura, separar o corpo e o gozo, quando é o gozo do Outro que se impõe.[10]
O testemunho não poderá jamais se fundar num relato totalizador em torno do vivido/padecido. É sob o paradoxo entre o que se transmite e a impossibilidade de dizê-lo que ele se forja. O texto interpõe em sua própria materialidade uma resistência à interpretação. Tal resistência se desenha, tão sutil quanto concretamente, através de vias e vozes oblíquas que não se esforçam por recompor ou preencher as lacunas e os vazios, substituindo-os por figuras saturadas de sentido.[11] Nesse horizonte de fala e de escritas, não se trata de relatar as experiências do ser a fim de constituir-se uma nova ontologia, nem tampouco projetar-se numa zona que supostamente estaria fora da linguagem. É de um forçamento dos seus limites e contornos de que se trata ao dar voz à cesura, à ressonância, ao fragmentário, às fraturas entre significante e significado. A linguagem acontecendo entre fala e silêncio, desterro e morada, a cada vez… até o fim.