Romildo do Rêgo Barros
Esta expressão foi usada por Lacan em 1946 para se referir aos nazistas, recém derrotados na Segunda Grande Guerra.
Ela indica que o nazismo não era para Lacan uma simples facção política ou mesmo uma organização do tipo seita, religiosa ou não, ou alguma outra dessas paixões que buscam a hegemonia. Os inimigos do gênero humano não buscam propriamente alcançar a hegemonia política, o que é o objetivo de qualquer facção, mas atentar contra o próprio universal, mesmo se consideramos que ele é fictício ou utópico.
Conta-se que Hitler, no final da guerra, dizia que os alemães deveriam ser destruídos, por terem sido incapazes de dizimar os judeus, sua verdadeira missão histórica. A ser verdadeira, é uma frase que vai além do mero nacionalismo: não interessaria tanto a Hitler o predomínio germânico que viria em consequência de uma guerra vitoriosa, mas a dominação permanente de uma raça, por mais difícil que seja conceituar uma raça humana, mesmo para um nazista.
A ação dos nazistas, que se estendeu por quase toda a Europa e a pôs de joelhos (Lacan falava na “humilhação de nossa época”[2]), mostrava ao mundo que era perfeitamente possível promover uma destruição geral para alimentar uma fantasia, que ia bem além da conquista do espaço vital para a construção de um novo império, ou de vingar a derrota de 1918.
Tratava-se de constituir um novo universal humano desembaraçado de algumas partes suas, que passaram a ser consideradas dejetos simplesmente por terem sido nomeadas como tais. Entre elas, como se sabe, estavam ativistas políticos, como os anarquistas, comunistas e socialdemocratas, práticas religiosas e orientações sexuais vistas como desvios, e os sujeitos tidos como não-arianos (o que quer que possa significar um ariano…), como os ciganos, eslavos, e os não europeus em geral. E, acima de todos, os judeus.
O império de uma fictícia raça pura pode ser situado no passado remoto ou no futuro. Ou nos dois… ou nunca. Este é o seu caráter utópico, que servirá como horizonte para os atos de violência do aqui e agora, que se tornam, assim, desde já justificados.
Para os nazistas, a palavra raça funciona como significante-mestre, e sequer é preciso que demonstrem que a raça de fato atua na base das diferenças humanas. Ou sequer que existe raça na nossa espécie.
No Brasil
Vem-se constatando no Brasil um aumento do número de células e organizações inspiradas no nazismo. Neonazistas, conforme a expressão surgida após a guerra. Segundo algumas pesquisas, esse aumento teria atingido 270% nos últimos três anos, sobretudo nos estados do sul do país. A eleição de Jair Bolsonaro para Presidente da República serviu sem dúvida de autorização, senão de incentivo direto a esse avanço.
O acréscimo do prefixo neo diminuirá o horror associado, com toda razão, ao nazismo? O neonazismo dará menos frio na espinha do que a imagem daqueles milhares de jovens marchando a um só passo, cujos gestos de liturgia pagã foram perenizados por Leni Riefenstahl em O Triunfo da Vontade?
Em suma, que sentido tem o prefixo? Que diferença introduz? Traz algo de novo?
Servirá para atualizar o nazismo, torná-lo pensável fora da Alemanha dos anos trinta e quarenta, com sua iconografia e seu kitsch tão próprios? Será que a aposição do prefixo busca universalizar o nazismo, tornando-o adaptável a países como o Brasil, que não é nem louro e nem homogêneo, mas, pelo contrário, multiforme, multicor, multirreligioso…?
A política do nazismo, que inspirou a sua espantosa violência, se define pelo que ela exclui. Esta é uma contribuição teórica do jurista nazista Carl Schmitt, que distinguia a democracia (que ele considerava compatível com a ditadura) e o liberalismo[3].
Como o processo de exclusão, fundado numa utopia (o “Reich de mil anos”, por exemplo), tem uma duração praticamente infinita, não há um momento em que a “missão histórica” do povo dito ariano se completaria. No horizonte da política nazista não está, portanto, a purificação racial do povo (purificação e raça, sintagma em que ambos os elementos mentem), mas uma forma de assassinato permanente. A violência contra as minorias será, portanto, contínua, e a luta contra ela será necessariamente antinazista.
No Brasil, ninguém, ou muito pouca gente, se define como ariano. Algum nostálgico da estética do Reich, talvez. Mas isto não impede que alguém se inclua em uma elite, seja qual for a diferença que faz dela uma elite: origem geográfica, padrão econômico ou financeiro, religião etc. A inspiração nazista virá então do fato de que cada uma das várias elites terá o seu próprio objeto a ser excluído: certos cristãos atacarão com violência as religiões afro, seus partidários e instalações de culto; pessoas do sul e sudeste fariam de tudo para que os nordestinos não existissem ou fossem mandados para longe; parte do aparelho policial do estado atua como se os negros pobres fossem inimigos; outros sonhariam com a concentração das comunidades indígenas em zoológicos humanos etc…
Haverá um significante-mestre ou aparelho institucional que juntaria as várias elites e seus inimigos, de tal maneira a constituir uma política unitária? Será esta a missão da extrema direita brasileira…? Não como herdeira direta das simbologias hitleristas, das suas manifestações, hinos e cerimônias, mas como unificação de várias camadas sociais marginais por enquanto dispersas.[4]