Henri Kaufmanner
Notícia veiculada pela Globo News[1] informa que de janeiro de 2019 a maio de 2021, houve um crescimento de 270% de grupos neonazistas no Brasil. Seriam hoje 530 núcleos extremistas e mais de 10 mil integrantes. Os meios de comunicação pelo mundo vêm mostrando como que os movimentos anti-vacina se transformaram em espaço para estes grupos e suas manifestações antissemitas. O mesmo ocorre em nosso país, e além do antissemitismo, o ódio é também dirigido aos negros, à comunidade LGBTQIAP+, nordestinos e imigrantes, entre outros.
Não nos é absolutamente surpreendente o avanço dessas bandeiras da segregação. Lembramos com Laurent[2] que Lacan estragou a festa ao final dos anos 1970, ao assinalar que diante dos hedonismos que se anunciavam de maneira otimista com o avanço dos mercados comuns, e o fim do patriarcado estaríamos diante de uma sociedade de irmãos e uma nova religião do corpo. Laurent recupera a citação de Lacan presente no seminário 19:
“Quando voltamos à raiz do corpo, se revalorizarmos a palavra irmão, (…), saibam que o que vem aumentando, o que ainda não viu suas últimas consequências e que, por sua vez, se enraíza no corpo, na fraternidade do corpo, é o racismo.”[3]
Temos cada vez mais constatado essas consequências anunciadas por Lacan. Não é também difícil reconhecer como o nazismo tem no racismo um de seus pilares. Contudo, embora nunca tenha de fato deixado de existir, como entender esse seu recente e exponencial aumento?
Lacan faz uma breve referência ao Mein Kampf no seminário 2[4]. Afirma que pela qualidade da escrita, ele deve ter tido outra autoria que não a de Hitler, e destaca como que naquele momento o livro andava meio desatualizado. Embora o bigodinho de Hitler continue uma sombra a nos visitar, tentaremos pensar o avanço do nazismo a partir do que Lacan aponta no prosseguimento de suas ideias no referido seminário.
Chama atenção a escolha que ele faz do Mein Kampf para inaugurar esse momento em que fala da relação entre os homens, como se fosse uma relação entre as luas. Logo em seguida, ele denuncia a tendencia às vezes presente de fazermos uma psicanálise das luas, apontando que as coisas são bem diferentes disso, diferença que por sinal desenvolve ao longo desse seminário. A pergunta que o orienta nesse momento é: Por que os planetas não falam? Se os planetas não falam, uma psicanálise das luas acaba por desconsiderar o valor da fala.
Assim, em contraponto aos planetas, Lacan interroga porque somente os homens jogam dados. Naquele momento de seu ensino, entrava em cena a propriedade do simbólico de fazer existir o que não existe. Por sermos cativos dessa existência assinalada como desejo, caberia ao humano rolar os dados movido por seu próprio desconhecimento.
Por que então essa tendência a esquecer essa diferença que temos dos planetas, e de sermos levados a pensar como se fossemos luas, calculando-lhe as massas e a gravitação? Introduzia-se naquele momento a noção de Grande Outro, essa alteridade que nos marca e incide como nossa divisão. Pouco importa se até então isso se referisse ao inconsciente como linguagem. O que já se mostra fundamental é o declínio da noção de intersubjetividade e a derrisão da experiência circular no humano.
Essa experiência circular é ilustrada por Lacan por meio da Síndrome de Cotard, quadro melancólico marcado pelo delírio de negação. Numa experiência de imortalidade o sujeito identifica-se a uma imagem sem qualquer hiância. Falta qualquer vazio permeável ao desejo, é uma imagem fora do tempo. Deste modo, não haveria aí lugar para qualquer mudança, nem mesmo para a morte. Estes sujeitos seriam mortos imortais.
Trata-se de uma aproximação daquilo que viria a ser o real, o que volta sempre no mesmo lugar. A humanidade travou conhecimento dessa insistência precocemente em sua visualização das estrelas. Contudo, cativada pela boa forma, acreditou numa articulação direta do simbólico com essa presença real. Acreditou que os símbolos “jorram do real”[5]. Assim passou-se a ver ursos ou cinturões na disposição da luminosidade visível das estrelas. Se isso marcou a aurora da humanidade, e de certa maneira se perpetuou, diz Lacan, não é o suficiente para explicar as maneiras como se agrupou as constelações.
Foi a partir de Newton, na medida em que foram reduzidos à teoria do campo universal, que os planetas deixaram de falar. A dimensão universal do discurso humano, silenciou os astros, embora nunca se saiba bem o que pode acontecer com a realidade. Note-se aqui uma distinção fundamental entre a fala e linguagem. A redução a uma linguagem universalizaste corresponderia ao silenciamento, ao fim das possibilidades da fala.
Essa articulação lacaniana se dá quando ele busca atravessar um ideal daquilo que podemos chamar de misticismo do Eu: O esforço dos pós freudianos em unir o sujeito da fala ao Eu, uma integração que manteria o “planeta unido”, portanto, silencioso.
Um planeta não fala, não exatamente por ser real, mas, por “não ter tempo em seu sentido literal” porque é redondo. “O corpo circular pode fazer tudo o que quiser, que permanece sempre igual a si mesmo”. Essa é a denúncia de Lacan: buscavam dar a forma esférica ao eu, que assim integraria todas as suas disfunções, toda a inquietude pulsional numa corrida para o ego triunfante. A cada ego seu objeto. A esfera reinaria plena em sua solidão, combinando em si mesmo a eternidade num mesmo lugar com o movimento eterno. A esfera, aquela em que todos os lados são semelhantes a si mesmo.
Mein Kampf portanto, revela para Lacan a crença na eternidade e atemporalidade das esferas, uma maneira de se acreditar semelhante a si mesmo.
Para Nancy e Lacoue-Labarthe o nazismo é um mito. Para eles, o avanço do nazismo na Alemanha dizia respeito a uma apropriação dos meios de identificação[6], sendo o mito a força agregadora para tal. Sustentam esta afirmação inspirados na leitura de Mein Kampf de Adolf Hitler e de O Mito do Século XX de Alfred Rosemberg, este último conhecido como o grande filosofo do Nacional Socialismo. Eles mostram como que ambos os livros se caracterizam por uma acumulação afirmativa e quase nunca argumentativa. Isso que hoje chamaríamos de pós-verdade e que não parece muito diferente do que escutamos no discurso da extrema direita, ou naquilo que nomeamos de maneira genérica como fake news.
A intensão é a construção de um mito, que mais que um objeto ou representação, é uma potência capaz de unir povos numa “identidade subterrânea, invisível e não empírica”[7], afirmando assim uma diferença própria. O que está em jogo é a projeção de uma imagem absoluta com a qual se possa identificar. Cito Rosenberg: “(…) o signo de nosso tempo é: afastamento do absoluto ilimitado (…) renúncia a um valor único que ultrapassa tudo o que pode ser experiência, tudo o que é orgânico que o Eu solitário outrora fundou, a fim de produzir, pacífica ou violentamente, uma comunidade sobre-humana das almas de todos.”[8] São muitas as citações pelas quais poderíamos verificar nesses livros a aposta no absoluto, na construção dessa comunidade sobre-humana das almas de todos.
A concisão necessária ao Correio Express me faz escolher apenas mais uma citação. Trata-se de um esclarecimento dado pelos responsáveis pela edição brasileira do livro de Rosemberg. É, portanto, efeito de suas ideias. Consiste numa pequena explicação para o subtítulo do livro: “Uma valoração da lutas anímico-espirituais das formas em nosso tempo”. “Para Rosenberg, as formas (Gestalten) não são teórico-abstratas, mas percepções concretas, manifestações histórico-políticas vivas da alma racial de grupos humanos que carregam a marca biológica e cultural de sua peculiaridade”[9]
É possível identificar como buscam fazer do real um imaginário absoluto, um real de onde jorram os símbolos, unindo corpo e alma a partir da peculiaridade racial. Para o nazismo o que faz o absoluto é o sangue e o território. Falar a mesma língua é por demais derrisório para os fins de um ego triunfante. Para constituir uma fraternidade dos corpos desconsidera-se a fala.
Em tempos em que impera o não-todo, a segregação como exclusão do Outro gozo dissemina-se na multiplicidade das esferas. A recente eclosão da guerra na Ucrânia e seu horror, acaba nos mostrando como que mais além dos temores diante dos riscos e da complexidade do conflito, há uma proximidade que nos toca e que não se explica apenas por uma razão geográfica. Diferente dos conflitos no Afeganistão, Iraque, Líbia, Iêmen e tantos outros, a guerra na Ucrânia está dentro de nossa esfera. Ao atingir brancos, loiros e na maioria cristãos, atinge intensamente a crença da supremacia ocidental, revela a falácia da imortalidade do ser supostamente igual a si mesmo.
Jacques Allain Miller vem afirmando que hoje em dia estamos diante de uma certa torção do cógito. Se a psicanálise opera com o “sou onde não penso”, o que por si só, já é uma torção produzida por Lacan no cógito cartesiano do “penso logo existo”; nossos tempos dominados pelas identidades e pelas performances, produzem um novo cógito: “sou aquilo que digo que sou”. Assim, sou igual ao que acredito ser, restabelecendo-se a lógica circular, atemporal e o desconhecimento da alteridade e da divisão. Algo bem de acordo com os tempos marcados pela dominância da Pulsão de morte. O Nazismo, como delírio prêt a porter, fornece um circuito de ódio que parece servir muito bem a essa realidade.