
imagem do site da Cinemateca Brasileira http://cinemateca.org.br
Cínthia Busato – Membro da EBP-AMP
Tanto os incêndios nas florestas quanto nos museus causam-me uma dor insuportável. Num primeiro impulso, fecho os olhos para proteger-me um pouco. Nem assim, é um arder dentro. Dizer isso, pode até ser uma blasfêmia, mas nem a pandemia com seus horrores sociais, políticos e mortíferos causa-me este tipo de dor. Também é dor, ver a dor de cada um causar nenhum constrangimento nas hordas governamentais; dói, e não é pouco. Perdi agora um cão, que viveu conosco 18 anos, doeu, dói, doerá ainda, sei bem. Mas a dor das imagens das chamas devorando o verde, com toda a diversidade de vida que ali existe, e das chamas ardendo objetos, livros, filmes que testemunham e contam a nossa história, a história de tantas vidas, contém um elemento que me é intolerável.
As imagens tocam o real,e “não se pode falar do contato entre a imagem e o real sem falar de uma espécie de incêndio.”[1] A imagem extrapola o dizer, revela-se e nos desvela o olhar selvagem, um transbordamento do pulsional. As imagens tocam um olhar que é corpo, tocam o corpo sem imagem. Tocam o real que faz fissura na realidade, essa que é o nosso olhar domesticado. É por tocar nesse ponto do real que a arte tem uma vocação política, subversiva, assim como a psicanálise. Nesse ponto, ou o horror ou a arte.
Enric Berenguer[2], em um texto orientador das XX Jornadas da ELP nomeadas Marcas Del trauma,interroga porque o trauma é um e as marcas são várias. Ele parte da definição do que chamamos traumático: “a insuficiência do simbólico para tratar o real, a efração na experiência do corpo que responde a essa mesma insuficiência e a separação entre o que irrompe e a consistência do corpo imaginário na qual o sujeito se reconhece”.
No primeiro ensino de Lacan, onde o significante tinha um lugar privilegiado, o que ficava fora do sentido, foi denominado mancha, resto, a Coisa, objeto a, no Seminário 10[3]. Somente no Seminário 11[4], não por acaso depois do Seminário sobre a angústia, a pulsão passa a ser um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise e a conceituação de gozo foi tomando a forma que tomou em seu último ensino. “As pulsões são no corpo o eco do fato que há um dizer”[5], esse mistério original se inscreve no corpo, se fixa, não faz ficção, se opõe a todo pensamento, existe e é o que Lacan chama de letra. “É a irrupção de algo que não pode apelar ao Outro para sua restituição e não pode reconstruir uma origem”[6].
Esse ponto selvagem à domesticação do sentido também esteve presente nas pesquisas de Freud, no que ele pode ouvir das primeiras histéricas, e foi por não tomar como mentira suas invenções que ele pode perceber que essas invenções tinham a função de velar um ponto opaco dentro da narrativa histórica de cada um. Assim, a fantasia ocupa o lugar do fato e o efeito a posteriori remodela as lembranças, conferindo-lhes uma significação que não possuíam. As lembranças não emergem prontas, elas são formadas, construídas a partir de traços mnêmicos. Com isso, todas as lembranças contêm algo de autêntico, mesmo não correspondendo à impressão original. A realidade que vivemos é um recorte do real orientado por essa marca que fica de fora, ex-tima.
Em 1891, no texto Sobre a concepção das afasias[7], Freud apresenta um modelo teórico para o aparelho da linguagem em que há duas modalidades de formação de imagens: representação-objeto (Objektvorstelung) e representação-palavra (Wortvorstelung).
Para ele, a percepção não nos apresenta objetos que em seguida serão nomeados pelas palavras. A percepção nos oferece imagens elementares – visuais, táteis, acústicas -que vão formar o que ele chamou de associações de objeto. Essas associações de objeto não formam ainda um objeto, isto é, algo com uma unidade e um significado, elas constituem um disperso sensível, a partir do qual o objeto será constituído. E isso só ocorre pela articulação desse conjunto de imagens sensoriais com a palavra. É a palavra que confere às imagens sensoriais dispersas uma unidade e um significado, é ela que transforma as associações de objeto em representação-objeto. Essa é uma linguagem assimbólica e está invariavelmente aberta à novas associações, uma vez que o homem se encontra imerso em um mundo de estímulos que o afetam a todo momento.
As representações-palavra (Wortvorstellung) são concebidas como efeito da associação de duas imagens específicas de representação-objeto: a imagem visual e a acústica. Esta linguagem simbólica caracteriza-se por sua dimensão fechada, fruto de uma relação arbitrária, ela expressa o próprio código linguístico e, portanto, o signo linguístico.
Por ocorrer um desmembramento inicial das imagens constituintes da representação-palavra, sua apreensão é desvinculada do código linguístico, e essa afecção deixa na topografia corporal impressões sensoriais ou marcas de quantidade duradouras e invariáveis que se vinculam aquelas imagens. São estas marcas as precursoras da representação-objeto e só parte delas é aderida, via representação palavra. É possível dizer que Freud parte do pressuposto de que, ao afetar o corpo do sujeito, uma percepção é apreendida por sensações, as quais, no encontro com o Outro, fundam um processo de inscrição rudimentar, ainda não ligada ao signo linguístico, mas aberta a ele.
No texto sobre as lembranças encobridoras[8], Freud afirma que as mesmas são formadas a partir de traços mnêmicos cujo registro é permanente e indelével, constituindo o “material bruto utilizável” para a construção da imagem. Novamente, duas dimensões do traço se apresentam nesse texto, de um lado, ele é utilizável, entra em associações, articula-se à fantasia através de elos simbólicos intermediários, além de traduzir-se em imagens e cenas. De outro, o traço permanece inacessível enquanto elemento primitivo, “o material cru dos traços de memória, a partir do qual a lembrança foi forjada, permanece desconhecido para nós em sua forma original.”[9] Enfim, é a essa matéria-prima peculiar, definitivamente inacessível enquanto impressão original, entre impressão e inscrição, que Freud recorre para não destituir as recordações de toda autenticidade. Quanto à impressão original que não se introduz na consciência, ela tampouco pode ser recuperada pela análise, choca-se com algo de incognoscível, o furo.
Em Resposta ao comentário de Jean Hyppolite[10], Lacan assinala que o que Freud designa por afetivo não tem nada a ver com uma qualitas occulta psicológica para designar essa vivência: O afetivo, nesse texto de Freud é concebido como aquilo que, de uma simbolização primordial, conserva seus efeitos até mesmo na estruturação discursiva. Essa estruturação, dita ainda intelectual, é própria para traduzir, sob a forma de desconhecimento o que essa primeira simbolização deve à morte. Ele afirma que o esquecimento é um modo de localizar o encontro do simbólico com o real. No encontro entre o símbolo e a coisa, em seu caráter primordial, está uma “forma que renega a si mesmo”[11], isto é, não vai participar do sentido, da história que o símbolo , na conjugação com a imagem, logo vai tramar. Fica fora da ação do recalque (Verdrängung), pois o recalque não pode se distinguir do retorno do recalcado pelo qual aquilo de que o sujeito não pode falar, ele o grita por todos os poros de seu ser.[12] Esta forma que renega a si mesmo, é opaca e silenciosa.
Enquanto o recalcado sempre retorna, esta expulsão primeira não abre nenhuma via de historização. Essa expulsão é uma abolição simbólica sobre a qual não se pode formular nenhum juízo de existência, é como se ela nunca houvesse existido. Segue Lacan: “A Verwerfung, portanto, corta pela raiz qualquer manifestação da ordem simbólica, isto é, da Bejahung, que Freud enuncia como o processo primário em que o juízo atributivo se enraíza, e que não é outra coisa senão a condição primordial para que, do real, alguma coisa venha a se oferecer à revelação do ser.”[13]
Berenguer[14] coloca uma questão fundamental: Troumatisme, neologismo de Lacan para vincular furo e trauma, nomeia o trauma no singular, que entendemos melhor a partir da centralidade do conceito de lalíngua que situa o mais essencial no trou que esta provoca no corpo. Isso nos afeta e nos deixa sem palavras, é o reverso do trauma, “revelar o furo do trauma permite reduzir o brilho de suas marcas”, as quais podem ser reconduzidas a sua condição de semblante, fazendo furo na consistência imaginária e revelando o trajeto da invenção sintomática do sujeito.
Para isso, precisamos tomar as palavras como objetos, arrancando delas o que não é oferecido de saída, em direção ao real, como escreveu Clarice Lispector[15]:“Minhas desequilibradas palavras são o luxo do meu silêncio. Escrevo por profundamente querer falar. Embora escrever só esteja me dando a grande medida do silêncio… Quero a palavra última que também é tão primeira que já se confunde com a parte intangível do real. A invenção de hoje é o meu único meio de instaurar o futuro.”
A palavra que contém silêncios trata o que é incêndio. Inventa.