Jeronimo Soffer – Diretor de Fotografia
Sempre que os movimentos totalitários tomavam o poder, todo esse grupo de simpatizantes era descartado antes mesmo que o regime passasse a cometer os seus piores crimes. A iniciativa intelectual, espiritual e artística é tão perigosa para o totalitarismo como a iniciativa de banditismo da ralé, e ambos são mais perigosos que a simples oposição política. A uniforme perseguição movida contra qualquer forma de atividade intelectual pelos novos líderes da massa deve-se a algo mais que o seu natural ressentimento contra tudo o que não podem compreender. O domínio total não permite a livre iniciativa em qualquer campo de ação, nem qualquer atividade que não seja inteiramente previsível. O totalitarismo no poder invariavelmente substitui todo talento, quaisquer que sejam as suas simpatias, pelos loucos e insensatos cuja falta de inteligência e criatividade é ainda a melhor garantia de lealdade. (ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. (1951) São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 389.)

Cena do filme “Cabra marcado para morrer” de Eduardo Coutinho
A Cinemateca queimando ilustra muito bem a desolação que vive a cultura, em particular a indústria cultural no país. Não é um processo novo! Já beira seus cinco anos e também já aconteceu antes: tanto a cinemateca já se incendiou antes (cinco vezes, começando em 1957), como o país já viu sua produção cultural destroçada também. É bem verdade que o cinema sempre teve uma relação e tanto com o fogo. Afinal, todo filme fotográfico era, até 1951, feito de celuloide, o primeiro plástico sintético e um parente próximo da nitroglicerina e da dinamite, que queima até debaixo d’água.
Essa relação aparece das mais variadas formas ao longo do tempo. Uma anedota excelente é a história do que ficou conhecido como o primeiro filme documental da história — Nanook of the North —, que sofreu, durante sua edição, um incêndio provocado por um desleixado cigarro do próprio diretor. Sem desistir da empreitada, Robert Flaherty volta ao Polo Norte e re-encena o documentário que ele já havia captado espontaneamente.
É um retrato fiel? O documentário nasce encenado, mas nasce das chamas. Só que essas cinzas salgam a terra em vez de fertilizá-la. A Segunda Guerra Mundial trouxe, além de um plástico indeflagrável, a noção de viés de sobrevivência à consciência popular. É um conceito um tanto contraintuitivo, mas que fala muito sobre a nossa incapacidade de pensar os elementos que se perdem à história. Como explicou Diógenes quando perguntado se os barcos que retornavam de tempestades em mar não seriam a prova de um cuidado especial dos deuses: “Assim se dá, porque em nenhuma parte foram pintados aqueles que naufragaram e pereceram no mar.”
Vale constar que hoje, com toda a produção acontecendo em suportes digitais, os arquivos históricos dos filmes ainda acontecem em uma película fílmica. Inclusive, em triplicata monocromática, com as cores separadas. Por quê? Porque ainda é mais barato guardar uma lata de negativo que dura um século ou mais, em condições ideais, do que todo o sistema necessário para manter dados digitais legíveis pelo mesmo tempo.
Isto nos traz de volta ao acervo dá Cinemateca. Sim, aquele acervo não tinha tudo — afinal, como dizem os lacanianos, o Todo não existe —, mas se há algo que aprendemos na pesquisa histórica é que as leituras se estendem muito além da informação explícita no primeiro momento. Nesse sentido, perder qualquer parte de um acervo histórico envolve abrir mão de certo conhecimento que dali poderia ser derivado. É importante notar aqui que não foram apenas arquivos fílmicos que se perderam no incêndio; o andar em questão guardava uma parte do acervo fílmico mas também guardava o acervo documental das políticas públicas, desde o Instituto Nacional de Cinema até a Secretaria do Audiovisual, passando pela Embrafilme. Ali ficavam, também, os acervos documentais e fílmicos de Glauber Rocha, confiados pela sua família.
Há ainda um detalhe cruel: o mesmo andar tinha sofrido uma inundação em 2020 da qual ainda não se havia nem completado a análise dos danos. Como disse Carlos Augusto Calil, presidente da Sociedade Amigos da Cinemateca e seu ex-diretor: “o que a água começou, o fogo terminou.” Perdemos então, segundo vários relatos, quatro toneladas de documentos, 200 mil filmes, muitos equipamentos insubstituíveis, um telhado e 60 anos de história. Não é pouco, mas pode ser ainda pior: a Federação Internacional de Arquivos Fílmicos coloca a Cinemateca Brasileira com um dos três melhores repositórios de registros cinematográficos do planeta.
Se ao longo do tempo sofremos tantas catástrofes, qual a importância dessas últimas? Não foi um acidente, desta vez. Foi projeto. Isto me traz de volta àqueles cinco anos da desolação do primeiro parágrafo, que não por acaso é o aniversário do impeachment. Aquilo foi, para o setor, um verdadeiro golpe fatal no qual foram escanteadas as políticas públicas de fomento bem como as de preservação da história. Uma verdadeira catástrofe nasceu ali e tomou forma em 2018. Dentro de tanta destruição, tornamo-nos apenas um retrato dos sobreviventes. Todos que se perderam no caminho viraram cinza.
Há uma grande frustração em todos os envolvidos porque tínhamos muitos e muitos sinais do progresso da indústria em passos largos; ocupávamos o mesmo espaço no PIB da indústria farmacêutica e havíamos feito muito progresso na nossa capacidade técnica e produtiva nas últimas duas décadas. Além de tudo isso, havia uma consolidação de normativas e uma forma de pensar a relação das telecomunicações em geral, seja usando a televisão aberta (uma das mais avançadas do planeta, e com elementos autóctones) até um possível canal nacional de VoD (Video on Demand), sem perder aportes estrangeiros interessantes.
Aqui, julgo importante trazer alguns números para ilustrar: se em 1990 apenas Os Trapalhões e a árvore da juventude passou da marca de um milhão de espectadores, Dona Flor e seus dois maridos, em 1976, alcançou mais que 11 milhões. Se a crise econômica da reabertura, aliada à popularização do videocassete e das videolocadoras, foi um entrave à produção nacional, é com a subida de Collor que veio a destruição nominal, com a dissolução da Embrafilme, da Fundação do Cinema Brasileiro, do Concine e do Ministério da Cultura. Apenas a partir de 1995 começa o que chamamos de Cinema de Retomada, a saída da crise, emblematizado em Carlota Joaquina, primeiro filme realizado através da Lei do Audiovisual. Em 2006, nasce o Fundo Setorial do Audiovisual, sucedido pela Lei da TV Paga, em 2011, e ambos os mecanismos alavancam mais ainda a produção nacional. Em 1992, último ano de Collor, apenas três filmes brasileiros chegaram ao cinema. Em 2010, tivemos 74, com nove deles superando a marca de um milhão de espectadores. Em 2018, foram 183.*
Qualquer professor, historiador, antropólogo ou profissional da cultura tem uma boa noção do que implica apagar o passado desta forma, e, acredito, ninguém o pensou como Arendt, mas queria destacar, para encerrar, as palavras de Débora Betruce, presidente da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual: “Este patrimônio é de todo mundo. Não é só do audiovisual. (…)”.