Cleyton Andrade

Filme: Cabra marcado para morrer de Eduardo Coutinho
imagem com o rosto de Elisabete Teixeira
O incêndio marcado para o 07 de Setembro de 2021, não passou de labaredas esparsas. Mas as chamas de onde elas partiram continuam queimando não só árvores, florestas, direitos, economia, saúde, democracia. Elas queimam carne, palavras e memórias. O corpo do indígena, do negro, do subalterno, que este regime de gozo ainda insiste em medir por arrobas. O incêndio não passou. Ele ainda se faz presente na fumaça do projétil de arma de fogo, expelida pelo zero dois em um clube de tiros com inúmeras insígnias nazistas, nome de cão em homenagem a tanque de guerra alemão, com a exposição obscena de um lema codificado com o número 1488, onde, no “88” se lê, via homofonia, a saudação “HH” que me recuso a reproduzir.
O fogo consome por covid19, plano sênior genocida, barriga vazia, tratamento precoce ou preventivo, falta de vacina, ao mesmo tempo que transforma em cinzas as palavras. Algo que a psicanálise tanto preza. As chamas queimam o sentido que poderiam promover laço. O significado de liberdade segue encarcerado em frases com calibres e poder de fogo variados. Liberdade de expressão, tratamento, ciência, ideologia, são alguns exemplos de escombros feitos na língua.
O incêndio ainda queima tudo, apesar dos olhos fechados e línguas mortas cobertas de cinzas dentro da boca. Mas, e se essa boca, enfim, se abrir? O que veremos? Qual filme estará em cartaz na sala da boca escancarada? Trimetilamina?
Já faz algum tempo que a Cinemateca Brasileira foi atingida pelo fogo. Mas expresso não precisa ser só o rápido, como um café. Pode ser a expressão. Nesse sentido, queremos falar disso que queima, ou arde. Para isso alguns colegas, psicanalistas e não psicanalistas participam desse número da Correio Express. Cada um, atravessado de um modo ou de outro pelo cinema e pela psicanálise.
Cristiane Barreto, como contribuição da Rede FAPOL de Cinema e Psicanálise, num belíssimo texto, nos diz que “uma cinemateca é um acervo vivo” e que, portanto, “houve vítimas”. E que este incêndio queimou até mesmo a memória do que nunca assistimos, do que nem passou pelas nossas retinas. Isso mostra, entre outras coisas, a implicação estreita não só entre a política e a cinemateca, mas, sobretudo, de uma política da memória. Abre a cena de como é próprio da barbárie atear fogo e destruir Budas, bibliotecas, florestas, Torres Gêmeas, etc. Mostrando que o semblante do bárbaro pode vir de um verde e amarelo patriota envaidecido de identidades extremistas e nacionalistas, como se isso fosse virtude. Afinal, quem se assusta com os talibãs no Afeganistão não olhou para a nossa pátria armada Brasil.
Ao ler o texto de Cristiane podemos ter saudade de ver e rir de filmes nacionais, bons ou ruins, de poder reclamar do áudio ruim, onde algumas frases se perdiam. Mas, pelo menos, ainda havia o nosso esforço para ouvir.
Nesta edição contamos também com a colaboração de Jeronimo Soffer, diretor de fotografia. Ele nos mostra as relações do cinema com o fogo e com parentes próximos da dinamite. Muito embora o que nasce das cinzas não tenha que retornar a elas como modo destrutivo de imagens, de memória, de conhecimento e de políticas públicas. O incêndio da Cinemateca Brasileira não foi um mero acidente, foi mais um golpe, fatal.
Ainda me valendo das imagens verbais de Jeronimo, enquanto expectadores de tanta destruição, acabamos nos tornando um retrato dos sobreviventes sobre as cinzas. São fumaças e cinzas que ainda têm cheiro, embolam e coçam a garganta, asfixiam, ardem os olhos até termos de fechá-los, assim como, novamente, a boca.
Nesse sentido o texto de Jeronimo nos coloca uma questão: seremos imagens inertes numa fotografia de sobreviventes melancólicos sobre as cinzas? Ou se seremos capazes de colocar imagens em movimento diante de uma política de destruição?
O texto de Cinthia Busato começa com um depoimento de experiências dolorosas e de como um certo encontro entre imagem e real, pode causar dor e incêndios, não necessariamente nesta ordem. As lembranças, a memória, são autênticas, mesmo que não sejam originais. Cinthia conversa, sem saber, com o texto de Jerónimo, e ressoa, com as palavras de Clarice Lispector, a respeito da resposta ao silêncio que contemple um querer falar, como um meio de se ter um futuro.
Temos um breve depoimento de mais um artista que é também ator, produtor e espectador do cinema, a respeito do desprezo pela memória. Cauã Reymond express, ou expressa, sua leitura desse descaso.
O que ressoa destes incêndios, agora, é por nossa conta.