Da surpresa do encontro com Ce qui de la rencontre s’écrit, encontrei Pierre Naveau, em sua casa, no dia 5 de janeiro de 2017, em Paris. Levava comigo o convite para ele vir ao Brasil, em Belo Horizonte e São Paulo, para nossas jornadas daquele ano. Ele logo me perguntou: “Por que me convidam?” Antes de ir, escrevera a ele um e-mail encorpado dizendo-lhe o tema das jornadas e sua articulação com o seminário que estava sob sua direção na ECF. Mas sua pergunta me surpreendeu e me forçou a ir mais além. Falo com algum esforço… “Li o seu livro…” e como uma lâmina cortante sua voz interrompe meu balbucio: “Qu’est-ce que vous y avez rencontrez?” A intromissão daquela letra (y), aí, perturbou o curso de minha resposta. O que eu encontrei aí? Como dizê-lo?
Eu lera seu livro, em francês, e o que dele ainda guardara, sabia contaminado pela desordem de passagens aleatórias pinçadas de uma leitura prévia, íntima e solta, na trilha de equívocos. E o seu olhar, ali na minha frente, aguardava uma resposta. Minha memória, que nunca me ajuda, saiu correndo. Só tinha flashes de Claudel, “Le Partage de Midi”, a solidão do gozo idiota do poeta no metrô de Paris e aquele outro gozo do qual não se solta uma palavra… E Camille Claudel? Ah não, ele não escreveu sobre ela… Eu enfrentava ali, no insondável daquele instante, o forçamento de uma leitura cruzada, num vai e vem entre as passagens de Lacan e Aragon… o infinito guardado nas cartas de almor e da coragem. É preciso “coragem”!
Com meu francês precário, solto a voz: “Encontrei no seu livro uma dança.” A surpresa agora estava com ele. Sem como recuar, entreguei-lhe o que me passava pela cabeça… “O que quis dizer é que seu livro convida o leitor a entrar na dança entre a clínica e a literatura, vai um passo pra lá e outro passo pra cá… e esse par e passo me permitiu aproximar do que eu ainda não tinha alcançado lendo o Seminário 20 de Lacan, um jeito novo de ler a relação que não existe e o gozo…” Foi mais ou menos assim minha resposta e antes que eu caísse num insosso blá-blá-blá, ele ri ao dizer… “Ce que de la rencontre s’écrit… encore… en corps… dansant…”
Pronto, encontramo-nos no salão… conversamos mais alguns minutos e ele disse sim às nossas jornadas. Eu desci as escadas sentindo-me acolhida, ridícula e decidida a propor a publicação de seu livro na EBP. Foi nosso único encontro, en corps. Trocamos ainda alguns e-mails sobre sua vinda para a Jornada da EBP-MG, detalhes sobre a publicação de seu livro. Respondia-me com frases curtas, quando uma palavra qualquer soprava uma surpresa na formalidade da resposta. Sobre a programação da jornada: “La souplesse est en effet de mise». Sobre a escolha da capa para seu livro: “Il y a une sorte de mystère. Les visages ne se touchent pas.” E, por fim, quanto à cor: “Sans hésiter. Le bleu est quelque chose que j’aime bien.” Suas últimas palavras escritas do nosso encontro… le bleu, qualquer coisa. Um amor!
Uma surpresa! Sua presença en corps em nossas Jornadas não aconteceu, mas seu texto vibrou entre nós, vivamente!
Afinal, há relações contingentes, não necessárias, que deixam marcas. O que se escreve, Naveau transmite em seu livro, decorre da “desordem de uma contingência” que queima e marca, quiçá… um “rubor”, um “desfalecimento”, um “arrebatamento”, um “acontecimento de corpo”… Sim, Pierre Naveau: o encontro tem o tempo de um instante e “a condição do encontro é, portanto, que o sujeito dividido aceite que sua defesa contra o infinito seja perturbada pelo que, justamente, o divide, ou seja, pelo que o surpreende.” Eis o que encontramos aí!
Do nosso encontro, guardo a potência da surpresa, a clareza do ato e a acolhida do que existe no ridículo para dar textura e forma à transmissão de um encontro que no fundo escreve a letra de uma transferência impossível de dizer. Um lindo esclarecimento que devolve a cada um o seu exílio, no mundo no qual nos abandonamos.
“Ora, o que se faz no discurso analítico?” – pergunta Pierre Naveau a Lacan. Resposta de Lacan: “Fala-se de amor”. “Tenho em meu ouvido esta afirmação de Lacan”, diz Naveau.
Hoje, nesta linda manhã de julho, o céu está azul.
Aquele abraço, Pierre Naveau.