A impaciência do desejo será melhor do que o tédio da fruição…
(Baltazar Gracian: Arte da prudência)
Ao aceitar o convite para vir falar aqui acerca da defesa do infinito de Aragon, em sua leitura por Pierre Naveau, minha primeira preocupação foi a de não incomodar vocês com uma palestra infinita. Para falarmos acerca de algo, nos limites de nosso discurso, necessitamos, antes de tudo, constituir uma cerca. Nesse sentido, falar acerca do infinito parece demandar, de nossa parte, a construção paradoxal de uma cerca em torno do incerceável, de um discurso em torno de algo que não se pode contornar.
Para cercear, portanto, o infinito de Louis Aragon no interior de algum contorno discursivo, eu vou me servir do recurso topográfico do qual se vale Pierre Naveau, na página 108 de seu livro, em sua versão brasileira. Resumirei inicialmente dizendo que quando Pierre Naveau convoca o poeta Louis Aragon, é no intuito de se haver com algo que se nomeia como uma geometria simbólica do sexo feminino, segundo a expressão formulada por Freud em sua análise do segundo sonho de Dora. Ao interpretar o segundo sonho de Dora, em que ela se adentra numa floresta espessa em que se divisam ninfas, Freud compara a imagem da floresta com o sexo feminino, na qual as ninfas (die Nymphe) representam os pequenos lábios (die kleinen Labien) da vulva que efetivamente assim se nomeiam na língua alemã. Ao ler o texto freudiano, Pierre Naveau se permite aproximar essa geografia com uma outra, extraída de A defesa do infinito, de Louis Aragon, em que a abordagem do sexo feminino é metaforizada pela caravana que atravessa um oásis no deserto, contendo ninfas à beira de um chafariz (NAVEAU, 2014, p. 109).
Seja qual for o valor poético dessa imagem de Aragon, que talvez soe um tanto kitsch aos nossos ouvidos contemporâneos, importa dizer que se Pierre Naveau convoca o poeta em relação ao ponto indicado pelo psicanalista, é na medida em que o que está em questão, nessa tentativa de se estabelecer uma geometria simbólica do sexo feminino, diz respeito à impossibilidade de se constituir um saber acerca da feminilidade. A sexualidade feminina se apresenta para ambos na forma do infinito potencial incerceável pelo saber, que se presentifica na resistência do enigma. Nesse sentido, a escolha de Louis Aragon me parece particularmente bem vinda, visto que dentre os poetas surrealistas, ele se destaca pela importância que concede ao enigma do amor em sua relação com a sexualidade feminina.
Para Aragon o enigma do amor, como bem diz o biógrafo Philippe Forest, é a grande pergunta que se coloca em seus laços afetivos. Homem de várias mulheres, Aragon é também o homem de uma só mulher, além de ser o homem que amava outros homens. Diferentemente de seu parceiro André Breton, cuja homofobia era proverbial, Aragon sempre manifestou uma abertura irrestrita em matéria de sexualidade. Para ele, no campo da experiência sexual, nenhuma norma deve prevalecer. Feminista avant-la-lettre, Aragon defendia a igualdade dos gêneros tanto no domínio privado do erotismo quanto do comportamento público. Sabemos, além disso, o quanto Aragon desprezava a mitologia da virilidade triunfante, tão frequente entre seus colegas surrealistas. Ao ouvir seus pares ostentarem proezas sexuais, Aragon se recolhia dizendo que o que lhe chocava era menos a vulgaridade dessas exibições, do que a intuição clara de que o enigma do amor aponta para algo radicalmente diverso das conquistas alardeadas por esses homens triunfantes (FOREST, 2015, p. 182).
Interessante notar que este homem galante se comprazia em adotar o que em sua época seria uma posição feminina nos jogos de sedução: Aragon gostava de deixar a iniciativa às mulheres, colocando-se como o objeto da conquista. Foi num desses momentos que conheceu, em 1926, Nancy Cunard, uma jovem poetisa rebelde e independente, rica herdeira de uma das maiores fortunas da época, que o encontra em Montparnasse e o seduz, e por quem ele se apaixona desesperadamente. Sistematicamente infiel, entretanto, a Aragon, Nancy Cunard mantinha ligações com André Breton que o deixavam em estado de intensa angústia; dessa exasperação culminou o colossal esforço literário referido por Pierre Naveau, “a defesa do infinito”. Ao se sentir preterido, Aragon reagiu tentando produzir um romance monstro de milhares de páginas que deveria rivalizar com as maiores produções romanescas da época, mas decide queimá-las diante de Nancy Cunard, na lareira de um hotel em Madrid, a fim de lhe mostrar até onde ia seu desejo por ela.
Um ano mais tarde, em 1927, ele parte com Nancy Cunard para Veneza, num período de graves dificuldades financeiras. Aragon perdera apoio de um rico mecenas, de quem era secretário, ao se inscrever no partido comunista francês, quando decide não mais depender da fortuna de um empresário burguês. Se encontra na mais extrema pobreza, ao mesmo tempo que se sente obrigado a satisfazer uma mulher cujo nível social excede suas possibilidades; nessa situação, ele se obriga a vender seu único objeto de valor, um grande e precioso quadro de Braque, “Le grand nu bleu”, adquirido a conselho de A. Bréton num momento em que Braque mal era conhecido. Se não bastasse, ainda em Veneza, Nancy Cunard se apaixona por um pianista negro americano, a quem toma como amante diante dos olhos de Aragon. Sua audácia era de fato notável: em plenos anos 20, após se envolver com os poetas surrealistas, essa filha de um milionário americano decide se tornar amante de um pianista negro. Aragon dessa feita se desespera e decide suicidar-se ingerindo medicamentos, quando um de seus amigos o encontra já desfalecido no quarto de hotel. Dessa desventura dramática originaria o lancinante “Poema a se gritar na ruína”, um dos maiores monumentos da literatura francesa (FOREST, p. 243).
Alguns dias após esta situação desesperada, Aragon vai encontrar finalmente em Paris aquela a quem chamaria de a mulher de sua vida, Elsa Triolet. Elsa é russa, casada com um francês que lhe deu tanto seu nome (Triolet) quanto sua nacionalidade francesa. Ela nutria intensa paixão pelo grande poeta da revolução russa, Vladimir Maiakovski, que, no entanto, escolheu sua irmã como consorte. Também exasperada por se ver preterida, Elsa abandona a Rússia e se instala na Europa ocidental, em Paris, em Montparnasse, em lugar também frequentado pelo poeta Maiakovski. No mesmo bar, de nome Acropole, em Montparnasse, Aragon conhecera Maiakoski, e ela se arranja para conhecer o escritor francês. Tem-se, então, um momento mitológico tanto na existência de Aragon quanto na própria história da literatura francesa do século XX, construído em torno desse encontro com Elsa, que ele descreve como um coup de foudre, uma paixão imediata e devastadora. Incipit vita nova, se exprime Aragon, retomando a fórmula de Dante em seu encontro com Beatriz, Elsa é para ele a experiência amorosa do renascimento, no momento mesmo em que havia se aproximado da morte.
Interessante, então, notar como se exprime o amor, ao longo da obra de literária de Aragon, nas versões antagônicas que ele constrói acerca do enigma do feminino. Em sua obra se alternam, observa P. Forest, a versão pornográfica da paixão libertina com a visão ideal e sublimada do amor. Duas passagens ilustram claramente tal contradição.
O primeiro título, escandaloso, “le con d’Irène”, cuja tradução usual “a vagina de Irene”, perde totalmente de vista a vulgaridade que a palavra “con” comporta na língua francesa, é uma das partes principais de A defesa do infinito, parcialmente destruída na lareira do hotel em Madrid, em espetáculo para Nancy Cunard. Vale ainda lembrar que do termo “con”, que em francês designa obscenamente a vulva, deriva o não menos vulgar adjetivo “connard” (corruptela em que se associam “con” e “cornard” – cornudo) usualmente empregado para designar o sujeito estúpido, e que é perfeitamente homófono ao sobrenome inglês de Nancy. Tem-se, ali, em “le con d’Irène”, um estranho texto pornográfico onde Aragon encena uma feminilidade luxuriosa e exuberante, com sua descrição poética e crua da vagina. Aragon chega nesse momento a sustentar, na esteira do Marquês de Sade, que o universo é um grande bordel, sendo, aliás, mais tarde revelado, em 1969, que o projeto da parte final de A defesa do infinito era o de reunir todos os personagens no décor de um magnífico lupanar: “toda essa multidão se encontraria, cada um pela lógica ou pelo ilogismo do destino, numa espécie de grande bordel, em que se operaria entre eles a crítica e a confusão, a dissolução de todas as regras morais numa imensa orgia” (ARAGON, [1969] 1997, p. 45).
Mas se o primeiro Aragon é o escritor da libertinagem e do bordel, há o segundo Aragon, da coletânea poética composta durante a segunda guerra, no momento da resistência, intitulada “Os olhos de Elsa”, que dele se demarca radicalmente. Entre “a vagina de Irene” e “os olhos de Elsa”, algo se modifica. Passa-se de um primeiro polo erótico, que se apresenta na expressão crua da volúpia pornográfica, a um segundo que seria a expressão sublimada do amor. Do lado de Elsa, encontramos agora uma ligação com o feminino de outra natureza, que remonta a Beatriz de Dante, ou seja, à mulher que excita um desejo que não pode ser sexualmente satisfeito, reabilitando a mitologia do amor cortês dos trovadores medievais. No lugar antes habitado pelas mulheres luxuriosas do bordel magnífico, temos a mulher divina tomada como musa inspiradora de um Aragon que agora se considera herdeiro da poesia cantada dos provençais. Tal construção poética do feminino reluz especialmente em “Le fou d’Elsa”, da qual Lacan cita uma belíssima passagem no Seminário XI. Nesse poema que evoca a queda de Granada tomada pelos católicos, Aragon encena um poeta louco que canta a imagem da mulher idealizada.
Mas se Aragon (assim como Breton e Elouard) se lança ao infinito do feminino nessa mitologia idealizada do amor cortês, é para em seguida deplorar a impossibilidade de se alcançar, no encontro dos corpos sexuados, a plenitude da satisfação erótica. O que se encontra em questão no enigma do amor, é algo para além de toda satisfação que se pode obter, com a ressalva de que esse para-além, na perspectiva surrealista, não se situa fora do mundo, como no caso da adoração religiosa. O para-além surrealista, lembra-nos F. Alquié, não comporta nada de religioso; trata-se, antes, de um para-além imanente, a ser desvelado no cerne de sua experiência (ALQUIÉ, 1955, p. 116). Mas por ser o amor essencialmente insatisfeito – como bem formula Lacan, no S. XX, ao situá- lo no nível de sua demanda por “Mais ainda” -, deplorar que não haja amor feliz, como diz o poema de Aragon, é não querer se haver com o dado estrutural de que a promessa de encontro no nível do gozo sexual não se realiza jamais. É por essa razão que, para Lacan, o gozo do corpo do Outro somente se promove pela infinitude (LACAN, 1975, p. 13). A defesa do infinito, assim pensada, nada mais faz do que transpor o impossível encontro dos sexos na metáfora do inalcançável. Não se pode gozar com o Outro corpo: o gozo que o encontro dos corpos permite jamais será o gozo do Outro corpo, visto que o gozo é sempre gozo do corpo próprio.
É nesse perspectiva, e aqui retomamos finalmente o texto de Pierre Naveau, que a fantasia onanista de Aragon, descrita num texto à margem de “A defesa do infinito”, não por acaso chamado de “O instante”, agora se coloca em defesa do finito contra o infinito, a serviço do gozo do Um. Diante da impossibilidade de alcançar o para-além da volúpia feminina, Louis Aragon evoca o Instante como resposta ao Infinito, na forma do gozo brusco que lhe permite uma prática sexual perversa que ele confessa a seu leitor. Aragon nos fala de seu hábito de se masturbar no metrô, visando obter um gozo furtivo e solitário, oculto na multidão, que em seguida desqualifica como “desprezível método, idiotice cômica” (ARAGON, 1997, p. 639, APUD IN NAVEAU, 2017, p. 115). O poeta do encontro não resiste à masturbação como gozo do idiota, gozo privativo do idios, por nela encontrar um meio de não se haver com a impossibilidade de se alcançar o gozo do Outro sexo.
É que não existe onanismo cortês: não há, o rediz Lacan, grande coisa a se fazer com o gozo, mas somente com o desejo que o amor provoca. Por isso, a fantasia masturbatória de um tocar anônimo, ocasional e progressivo, é a de um gozo que surpreende sem dizer nada, ou seja, que não articula a palavra ao desejo do Outro (NAVEAU, 2017, p. 116). Se o heroísmo da sedução masculina consiste em se defrontar com o enigma do desejo do Outro sexo, sem reduzi-lo ao fetiche anônimo da satisfação brusca, o onanista dispensa a sedução. Sua impostura, conclui P. Naveau, é que o poeta do encontro visa na verdade se evadir do encontro para se ligar apenas a sua fantasia privativa. E, de fato, nosso poeta do mentir-vrai finalmente confessa, fantasmaticamente, só querer uma coisa: não se chocar com o não encontro como ponto impossível tanto da luxúria quanto do amor cortês.
Por Antônio Teixeira