
Johnson Tsang. “Here and There” Lucid Dream II. Em: https://johnsontsang.wordpress.com/
Por Carmen Silvia Cervelatti
As elaborações de Freud nos textos sobre a sexualidade humana[1] e os enigmas que a ele se apresentavam quanto ao “dark continent” culminaram nos dois textos sobre a sexualidade feminina (1931 e 1933). Várias vezes ele confessou falta de conhecimento suficiente, contar somente com elaborações parciais e não poder afirmar com clareza qual o caminho da pulsão até o declínio do complexo de Édipo na menina, diferentemente do menino, cujo ápice da castração reside na escolha pelo órgão, deixando como resto o Supereu. No entanto, ao final, coloca em nossas mãos seu pensamento sobre a sexualidade feminina, seus ensinamentos da clínica do feminino observáveis até hoje e a matéria fecunda que extraiu de tantas décadas escutando as mulheres em suas análises e, inclusive, dos trabalhos que as psicanalistas produziram sobre o feminino.
Freud nunca quis esconder o furo com o qual se defrontou nesse campo, tentou resolvê-lo com a inveja do pênis e com a recusa da feminilidade para os dois sexos quando examinou a finitude das análises. Isso indubitavelmente trouxe consequências importantes para a psicanálise. Lacan ressaltou esse ponto dizendo que Freud, diferentemente dele, não tinha nada a guiá-lo no tocante às mulheres e “foi justamente isso que lhe permitiu avançar tanto ao escutar as histéricas que ‘bancavam homem’”[2]. Disse preferir não impor às mulheres a obrigação de usar a mesma medida da castração; o significante falo, para Lacan, não cabe para as mulheres significarem seu “estojinho encantador”. A castração é o ponto de partida na empreitada edípica feminina e aí reside a dificuldade do declínio do Édipo, ocasionando, na maioria das vezes, uma elaboração infinita. Também infinita é a demanda de amor. A menina teme é a perda do amor, que pode ser vivida de maneira feroz.
Mais além da diferença anatômica entre os sexos e suas consequências subjetivas – uma disjunção nas posições frente à castração e ao falo –, o grande passo deixado por Freud reside, no meu entender, na genial constatação de que o enigma da feminilidade tem sua raiz no pré-edípico e no desamparo, na relação da menina com seu primeiro objeto de amor e de demanda, o Outro primitivo – a mãe caprichosa, devoradora, devastadora para grande parte das mulheres. Resultado da docilidade de Freud em escutar suas analisantes, essa proposição foi fundamental para a psicanálise avançar tendo em vista o mais-além do Pai, do Édipo, que hoje chamamos de feminização do mundo, efeito do Outro barrado.
Parceiro-devastação e gozo feminino
“A elucubração freudiana do complexo de Édipo, que faz da mulher peixe na água, pela castração ser nela ponto de partida (Freud dixit), contrasta dolorosamente com a realidade de devastação que constitui, na mulher, em sua maioria, a relação com a mãe, de quem, como mulher, ela realmente parece esperar mais substância que do pai – o que não combina com ele ser segundo nessa devastação.”[3]
Assim, diferentemente dos meninos, em virtude da ausência da angústia de castração, pois nelas o complexo de castração somente prepara o complexo de Édipo, Freud postulou um Supereu frágil para a mulher. Ele ”não atinge a intensidade e a independência que lhe conferem a sua importância cultural”[4], que “nunca se torna tão implacável, tão impessoal, tão independente de suas exigências afetivas como o exigimos do homem”.[5] Nada de falta-a-ter, Ⱥ mulher nada na falta-a-ser, querelante e dependente do amor materno, que retorna nos laços nos quais repete a mesma estrutura de demanda de amor ao Outro que não responde e, se responde, sempre é de maneira insatisfatória, nada na falta em seu ser. O amor intenso com o primeiro objeto, também fonte de ódio e hostilidade, é transferido para o pai e também aos parceiros amorosos, Freud constatou.
Miller chamou de parceiro-devastação[6] ao parceiro do falasser feminino por ser dela a estrutura do não-todo. Desde essa posição, dirige a demanda de amor infinita ao Outro, barrado então, para que diga incessantemente que a ama, retornando ao parceiro feminino como devastação. ‘Um homem pode ser uma devastação para uma mulher, mas pode, também, ser o modo como acontece seu deslumbramento.”[7], podendo de tudo dispor, inclusive de seus objetos a. “O homem é para uma mulher uma aflição pior que um sinthoma […] trata-se mesmo de uma devastação”[8]. Dentre outras, a devastação, o deslumbramento, a demanda infinita de amor, o misticismo são algumas formalizações de Lacan do gozo na posição feminina. Medéia, Madeleine (Gide), Santa Teresa, Antígona, Lol V.Stein (Marguerite Duras), Marie de la Trinité são exemplos que encontramos no ensino de Lacan e de Miller.
Após Freud ter localizado o gozo feminino no período que antecede o complexo de Édipo – na primariedade dos processos psíquicos, antes da inscrição do Simbólico, do Nome-do-Pai e da significação fálica – e se o Supereu é seu herdeiro nos falasseres masculinos, como podemos pensar o Supereu feminino? E a pulsão de morte? Um Supereu implacável encarnado na ferocidade da mãe-crocodilo?
Pulsão de morte e gozo
“Além do princípio do prazer” denota algo que ignora a busca de prazer no aparelho psíquico, a homeostase. Fenômenos clínicos tais como a compulsão à repetição, a reação terapêutica negativa, bem como alguns sonhos encontrados nos neuróticos de guerra foram índices para Freud daquilo que não conduz ao prazer – a pulsão de morte, ou seja, aí não há limite para a satisfação, para o gozo que persiste, o excesso e sua nocividade. Também é notável que Freud ao falar de pulsão de morte utilizou a repetição observada na fala de dois significantes fort-da. A ordem simbólica – “a palavra mata a coisa” – “tende para além do princípio do prazer, fora dos limites da vida e é por isto que Freud a identifica ao instinto de morte.”[9].
Freud disse que os instintos de vida: “se apresentam perturbando a paz, trazendo tensões cuja eliminação é sentida como prazer, enquanto os instintos de morte parecem realizar seu trabalho discretamente. O princípio do prazer parece mesmo estar a serviço dos instintos de morte; é certo que vigia também os estímulos de fora, avaliados como perigosos pelas duas espécies de instintos, mas sobretudo os aumentos de estímulos a partir de dentro, que chegam a dificultar a tarefa de viver.”[10] Só há progresso marcado pela morte.
Freud descobriu a existência de um saber articulado; falando, as histéricas teciam o saber inconsciente que poderia também ser repelido: não quero saber nada disso. Necessariamente, disse Lacan, isso o conduziu para o além do princípio do prazer. “Eis o essencial do que determina aquilo com que lidamos na exploração do inconsciente – é a repetição.” E continua: “Eis porque podemos conceber que o prazer seja violado em sua regra e seu princípio, porque ele cede ao desprazer […] não quer dizer outra coisa senão o gozo.”[11] Isso não se dá sem a incidência do significante no corpo, o gozo enquanto “diz-mansão do corpo”, disse Lacan no Seminário 20 – “Aonde isso fala, isso goza”[12] porque há corpo, que goza de objetos a – “esse objeto constitui o nó elaborável do gozo”[13], fora do gozo opaco ao sentido.
A relação entre pulsão de morte e gozo está implícita na formulação freudiana da pulsão, ela sempre busca e produz satisfação, não importa se há prazer ou não – satisfaz-se! “Nada força ninguém a gozar, senão o superego. O superego é o imperativo do gozo – Goza!”[14]. Com isso nos aproximamos mais da intimidade entre a pulsão de morte, o gozo e o Supereu. Podemos dizer então que não importando muito se pré-edípico, herdeiro do Isso, ou se herdeiro do complexo de Édipo, o Supereu para Freud é o correlato da pulsão de morte e em Lacan é imperativo de gozo, embora não haja uma continuidade entre as duas formulações.
No último ensino de Lacan, a pulsão de morte diz respeito ao real. “A pulsão de morte é o real na medida em que ele só pode ser pensado como impossível. […] o fato da morte não poder ser pensada é o fundamento do real.”[15] No entanto, na escrita do nó borromeano no texto “A terceira”, a palavra vida está localizada no círculo do real e morte no simbólico.
E o Supereu feminino…
A dependência do sujeito ao Outro e a angústia da perda de amor é a condição para o nascimento do Supereu[16], eis a dimensão do Isso que diz respeito ao Supereu feminino. Em sua formulação difere do Supereu enquanto lei, pois está sob os auspícios da significação fálica e da circunscrição do gozo advindas da renúncia à satisfação e o Édipo é dessexualizado. A demanda de amor infinita encontrada no feminino parece estar fora desse limite, ligada ao que há de mais devastador e fascinante nas experiências primitivas, o Supereu feroz, figura originada do troumatisme. Seria originário do Supereu materno que, enquanto mulher, está sujeita ao gozo não-todo fálico?
O próprio do feminino é o gozo não-todo, não localizado nem localizável. Querendo fazer a relação sexual existir, o falasser feminino fala, por vezes muito, talvez sempre do mesmo, de uma dor de existir, tentando cernir o impossível de dizer na sua estreita vizinhança com o real, com a lalíngua, com o sinthoma, com a posição do analista. Do gozo infinito, numa análise, é possível ceder do gozo da devastação para dar lugar ao desejo enquanto causa; uma modulação da voz do Supereu, não mais entoando a mesma toada: fragilzinha! Do furo, fazendo furinhos pela “ajuda contra” do analista, um tecido tramado vai se tecendo entre o real e o imaginário, o tecido do inconsciente[17] trançado na (a)temporalidade das sessões: que o Supereu feminino possa ser mesmo uma das máscaras do não-todo do gozo feminino.[18]